Tuesday, September 30, 2008

Nevasca em Marte é observada pela primeira vez

Publicado em 30.09.2008, às 20h56

A sonda americana Phoenix detectou neve caindo sobre Marte. O anúncio foi feito nesta terça-feira (30) pela Nasa, a agência espacial norte-americana.

Um instrumento de laser, projetado para analisar as interações entre a atmosfera e a superfície do solo marciano, identificou neve proveniente de nuvens a quatro mil metros de altitude sobre o local de aterrissagem da Phoenix, segundo o comunicado divulgado pela Nasa.

"Nunca vimos nada parecido antes em Marte", destacou Jim Whiteway, da Universidade York de Toronto, cientista da estação meteorológica canadense instalada na sonda Phoenix.

"Vamos buscar indícios para saber se a neve alcançou o solo", acrescentou.

Segundo as primeiras observações, os flocos de neve evaporaram antes de chegar à superfície de Marte.

Experimentos realizados com os instrumentos da Phoenix, que pousou no Ártico marciano no dia 25 de maio, também revelaram rastros de reações químicas entre minerais do solo marciano e água líquida, semelhantes às que ocorrem na Terra, explicaram os cientistas.

"Isto aponta para momentos no passado de Marte quando corria água líquida pelo solo", afirmou William Boynton, da Universidade do Arizona, um dos cientistas da missão.

Fonte: Diário do Grande ABC

Saturday, September 27, 2008

Atrás desse pensamento veio outro. Olhei a meia dúzia de figurinhas que ainda me seguiam. Então, num lampejo, percebi que todas se vestiam da mesma forma, tinham o mesmo rosto imberbe e delicado, as mesmas formas redondas de meninas. Pode parecer inconcebível que eu não tivesse notado isso antes. Mas tudo era tão diferente! Agora eu percebia as coisas com a maior clareza. No trajar, e em todas as características e maneiras que hoje distinguem os dois sexos, essas criaturas do futuro eram exatamente iguais. As crianças, por sua vez, pareciam-me simples miniaturas de seus pais. Disso concluí que as crianças dessa época futura eram extremamente precoces, pelo menos fisicamente, e mais tarde encontrei provas abundantes dessa opinião.

O bem-estar e a segurança em que vivia essa gente faziam certamente esperar, pensei, que os dois sexos acabassem se parecendo tanto; pois a robustez do homem e a delicadeza da mulher, a instituição da família e a diferenciação de ocupações são meras exigências de uma era de força física. Quando a população é numerosa e equilibrada, um elevado índice de nascimentos é antes um mal do que uma bênção para o Estado; quando a violência é rara e a prole está segura, há menos necessidade — na verdade, não há necessidade alguma — de uma família organizada como tal, e a especialização dos sexos com referência às necessidades dos filhos termina por desaparecer. Disso já encontramos alguns indícios em nossa própria época, e no futuro esse quadro social estará completo. Devo lembrar a vocês que essa era a especulação que eu fazia naquela hora. Porque mais tarde iria descobrir como estava longe da realidade.

H. G. Wells - capítulo 5 - A Máquina do Tempo - Tradução de Fausto Cunha


Tuesday, September 23, 2008

Uma questão de interesse mais grave e universal é a possibilidade de outro ataque dos marcianos. Acho que não se está a dar a devida atenção a este aspecto do caso. Actualmente, o planeta Marte está em conjunção, mas prevejo, pela minha parte, uma renovação da sua aventura em todas as oposições. De qualquer modo, devíamos estar preparados. Parece-me que seria possível definir a posição da arma que dispara os cilindros, manter em vigilância contínua essa parte do planeta e prever o início do próximo ataque.
Em qualquer caso, o cilindro poderia ser destruído com dinamite ou artilharia antes que estivesse suficientemente arrefecido para permitir a saída dos marcianos, ou poderiam ser massacrados mal se desenrascasse um parafuso. Creio que perderam uma vantagem considerável ao falhar a sua primeira surpresa. Provavelmente, encaram o problema da mesma maneira.
Lessing expôs razões excelentes para supor que os marcianos tenham conseguido, na verdade, efectuar um desembarque no planeta Vénus. Há sete meses, Vénus e Marte encontravam-se em alinhamento com o Sol; isto é, do ponto de vista de um observador de Vénus, Marte estava em oposição. Imediatamente a seguir, uma luminosidade peculiar e marcas sinuosas apareceram na parte não iluminada do planeta e, quase que ao mesmo tempo, uma débil mancha escura de características igualmente sinuosas foi detectada numa fotografia do disco marciano. É preciso observar os esboços destes fenómenos para apreciar inteiramente a notável semelhança das suas características.
De qualquer modo, esperemos ou não outra invasão, os nossos pontos de vista acerca do futuro da Humanidade devem sofrer uma grande modificação em consequência destes acontecimentos. Sabemos agora que não podemos olhar este planeta como uma fortaleza e um lugar onde o Homem poderá residir em segurança; nunca podemos prever o bem ou o mal que pode chegar de súbito até nós, vindo do espaço; é possível que nos mais latos desígnios do universo esta invasão dos marcianos se venha a mostrar benéfica para os homens: roubou-nos aquela serena confiança no futuro que é a mais fértil fonte de decadência; os dons que ofertou à ciência humana são enormes e contribuiu grandemente para promover a concepção da comunidade humana. É possível que os marcianos, através da imensidade do espaço, tenham observado o destino destes seus pioneiros, tenham aprendido a sua lição e que tenham achado no planeta Vénus uma colónia mais segura. No entanto, seja como for, não haverá decerto, durante muitos anos, afrouxamento do exame ansioso do disco marciano e aquelas setas ígneas do céu, as estrelas cadentes, trarão com elas, ao caírem, um temor inevitável a todos os filhos do Homem.
O alargamento das concepções do homem que daqui resultou não podia ser maior. Antes da queda do cilindro, havia uma convicção generalizada de que nas profundezas do espaço não existia vida, salvo na superfície insignificante da nossa diminuta esfera. Agora vemos mais longe. Se os marcianos podem alcançar Vénus, não há razões para supor que os homens o não possam fazer e, quando o lento arrefecimento do Sol tornar a Terra inabitável, como deve acontecer por fim, é provável que a corrente de vida que aqui brotou transborde e capture o nosso planeta irmão nas suas redes.
É confusa e maravilhosa a visão que imaginei da vida a expandir-se lentamente deste pequeno leito do sistema solar, através da vastidão inanimada do espaço sideral. Mas é um sonho longínquo. Por outro lado, pode ser que a destruição dos marcianos seja apenas uma trégua. O futuro destina-se a eles, talvez, e não a nós.
Devo confessar que o perigo e a tensão daquela época deixaram na minha mente uma duradoura sensação de dúvida e de insegurança. Estou sentado no meu escritório, a escrever à luz do candeeiro e, de súbito, vejo novamente, lá em baixo, o vale a arder em chamas bruxuleantes, e sinto atrás de rnim e à minha volta a casa vazia e abandonada. Saio para a Byfleet Road e os veículos passam por mim, o rapaz de um talho numa carroça, um cabriole cheio de visitantes, um operário numa bicicleta, crianças a caminho da escola e, bruscamente, tudo se torna vago e irreal e eu corro de novo, com o artilheiro, através do silêncio abafado de uma atmosfera tempestuosa. De noite, vejo a poeira negra escurecendo as ruas silenciosas, e os corpos contorcidos, amortalhados por aquela coberta, erguem-se diante de mim rasgados e mordidos pelos cães. Por fim algaraviam e enfurecem-se, mais lívidos, mais medonhos, loucas distorções de homens, e eu acordo, gelado e triste na escuridão da noite.
Vou para Londres e vejo as multidões atarefadas em Fleet Street e no Strand, e imagino que são apenas os fantasmas do passado, assombrando as ruas outrora silenciosas e abandonadas, andando de aqui para ali, fantasmas numa cidade morta, o arremedo de vida num corpo galvanizado. E também é estranho deter-me em Primrose Hill, como o fiz no dia anterior àquele em que escrevi este último capítulo, a ver o grande número de casas, escuras e azuladas, através do fumo e do nevoeiro, desvanecendo-se finalmente num vago céu mais baixo, ver as pessoas andar de um lado para o outro entre os leitos de flores da colina, ver os excursionistas perto de uma máquina marciana que ainda se encontra ali, ouvir a algazarra das crianças a brincar e recordar o tempo em que vi isto tudo brilhante e distinto, opressivo e silencioso, na alvorada daquele último grande dia...
E o mais estranho de tudo é apertar de novo a mão da minha mulher e pensar que a julguei, como ela me julgou, entre os mortos.

H. G. Wells - Epílogo - A Guerra dos Mundos

Sunday, September 21, 2008


Islamabad, Paquistão, 20 de setembro de 2008

Wednesday, September 17, 2008

Sunday, September 14, 2008

Saturday, September 13, 2008

Wednesday, September 10, 2008

LUTO E MELANCOLIA

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Quanto ao marcante traço particular da melancolia que mencionamos, a proeminência do medo de ficar pobre, parece plausível supor que se origina do erotismo anal que foi arrancado de seu contexto e alterado num sentido regressivo.

A melancolia ainda nos confronta com outros problemas, cuja resposta em parte nos escapa. O fato de desaparecer após certo tempo, sem deixar quaisquer vestígios de grandes alterações, é uma característica que ela compartilha com o luto. Verificamos, à guisa de explanação, que, no luto, se necessita de tempo para que o domínio do teste da realidade seja levado a efeito em detalhe, e que, uma vez realizado esse trabalho, o ego consegue libertar sua libido do objeto perdido. Podemos imaginar que o ego se ocupa com um trabalho análogo no decorrer de uma melancolia; em nenhum dos dois casos dispomos de qualquer compreensão interna (insight) da economia do curso dos eventos. Na melancolia, a insônia atesta a rigidez da condição, a impossibilidade de se efetuar o retraimento geral das catexias necessário ao sono. O complexo de melancolia se comporta como uma ferida aberta, atraindo a si as energias catexiais - que nas neuroses de transferência denominamos de ‘anticatexias’ - provenientes de todas as direções, e esvaziando o ego até este ficar totalmente empobrecido. Facilmente, esse complexo pode provar ser resistente ao desejo, por parte do ego, de dormir.

O que provavelmente é um fator somático, fator este que não pode ser explicado psicologicamente, torna-se visível na melhoria regular da condição, que se verifica por volta do anoitecer. Essas considerações nos levam a perguntar se uma perda no ego, independentemente do objeto - um golpe puramente narcisista contra o ego -, não bastará para produzir o quadro de melancolia, e se um empobrecimento da libido do ego, diretamente por causa de toxinas, não será capaz de produzir certas formas da doença.

A característica mais notável da melancolia, e aquela que mais precisa de explicação, é sua tendência a se transformar em mania - estado este que é o oposto dela em seus sintomas. Como sabemos, isso não acontece a toda melancolia. Alguns casos seguem seu curso em recaídas periódicas, entre cujos intervalos sinais de mania talvez estejam inteiramente ausentes ou sejam apenas muito leves. Outros revelam a alteração regular de fases melancólicas e maníacas que leva à hipótese de uma insanidade circular. Veríamo-nos tentados a considerar esses casos como não sendo psicogênicos, se não fosse o fato de que o método psicanalítico conseguiu chegar a uma solução e efetuar uma melhoria terapêutica em vários casos precisamente dessa espécie. Não é apenas permissível, portanto, mas imperioso, estender uma explanação analítica da melancolia também à mania.

Não posso prometer que essa tentativa venha a ser inteiramente satisfatória. Mal nos leva além da possibilidade de tomarmos nossa orientação inicial. Temos duas coisas a empreender: a primeira é uma impressão psicanalítica; a segunda, o que talvez possamos chamar de um tema de experiência econômica geral. A impressão que vários investigadores psicanalíticos já puseram em palavras é que o conteúdo da mania em nada difere do da melancolia, que ambas as desordens lutam com o mesmo ‘complexo’, mas que provavelmente, na melancolia, o ego sucumbe ao complexo, ao passo que, na mania, domina-o ou o põe de lado. Nosso segundo indicador é proporcionado pela observação de que todos os estados, tais como a alegria, a exultação ou o triunfo, que nos fornecem o modelo normal para a mania, dependem das mesmas condições econômicas. Aqui, aconteceu que, como resultado de alguma influência, um grande dispêndio de energia psíquica, de há muito mantido ou que ocorre habitualmente, finalmente se torna desnecessário, de modo que se encontra disponível para numerosas aplicações e possibilidades de descarga - quando, por exemplo, algum pobre miserável, ganhando uma grande soma de dinheiro, fica subitamente aliviado da preocupação crônica com seu pão de cada dia, ou quando uma longa e árdua luta se vê afinal coroada de êxito, ou quando um homem se encontra em condições de se desfazer, de um só golpe, de alguma compulsão opressiva, alguma posição falsa que teve de manter por muito tempo, e assim por diante. Todas essas situações se caracterizam pela animação, pelos sinais de descarga de uma emoção jubilosa e por maior disposição para todas as espécies de ação - da mesma maneira que na mania, e em completo contraste com a depressão e a inibição da melancolia. Podemos aventurar-nos a afirmar que a mania nada mais é do que um triunfo desse tipo; só que aqui, mais uma vez, aquilo que o ego dominou e aquilo sobre o qual está triunfando permanecem ocultos dele. A embriaguez alcoólica, que pertence à mesma classe de estados, pode (na medida em que é de exaltação) ser explicada da mesma maneira; aqui, provavelmente, ocorre uma suspensão, produzida por toxinas, de dispêndios de energia na repressão. A opinião popular gosta de presumir que uma pessoa num estado maníaco desse tipo se deleita no movimento e na ação porque ela é muito ‘alegre’. Naturalmente, essa falsa conexão deve ser corrigida. O fato é que a condição econômica na mente do indivíduo, mencionada acima, foi atendida, sendo essa a razão por que ele se acha tão animado, por um lado, e tão desinibido em sua ação, por outro.

Se reunirmos essas duas indicações, encontraremos o seguinte. Na mania, o ego deve ter superado a perda do objeto (ou seu luto pela perda, ou talvez o próprio objeto), e, conseqüentemente, toda a quota de anticatexia que o penoso sofrimento da melancolia tinha atraído para si vinda do ego e ‘vinculado’ se terá tornado disponível. Além disso, o indivíduo maníaco demonstra claramente sua liberação do objeto que causou seu sofrimento, procurando, como um homem vorazmente faminto, novas catexias objetais.

Essa explicação certamente parece plausível, mas, em primeiro lugar, é por demais idefinida, e, em segundo, dá margem a mais novos problemas e dúvidas do que podemos responder. Não fugiremos a um exame dos mesmos, embora não possamos esperar que esse exame nos leve a uma compreensão nítida.

Em primeiro lugar, também o luto normal supera a perda de objeto, e também, enquanto persiste, absorve todas as energias do ego. Por que, então, depois de seguir seu curso, não há, em seu caso, qualquer indício da condição econômica necessária a uma fase de triunfo? Acho impossível responder a essa objeção diretamente. Também chama a nossa atenção para o fato de que nem sequer conhecemos os meios econômicos pelos quais o luto executa sua tarefa. Possivelmente, contudo, uma conjectura nos ajudará aqui. Cada uma das lembranças e situações de expectativa que demonstram a ligação da libido ao objeto perdido se defrontam com o veredicto da realidade segundo o qual o objeto não mais existe; e o ego, confrontado, por assim dizer, com a questão de saber se partilhará desse destino, é persuadido, pela soma das satisfações narcisistas que deriva de estar vivo, a romper sua ligação com o objeto abolido. Talvez possamos supor que esse trabalho de rompimento seja tão lento e gradual, que, na ocasião em que tiver sido concluído, o dispêndio de energia necessária a ele também se tenha dissipado.

É tentador continuar a partir dessa conjectura sobre o trabalho do luto e tentar apresentar um relato do trabalho da melancolia. Aqui, de início, nos defrontamos com uma incerteza. Até agora, quase não consideramos a melancolia do ponto de vista topográfico, nem perguntamos a nós mesmos, nesse meio tempo, em que ou entre que sistemas psíquicos o trabalho de melancolia se processa. Que parte dos processos mentais da doença ainda se verifica em conexão com as catexias objetais inconscientes abandonadas, e que parte em conexão com seu substituto, por identificação, no ego?

A resposta rápida e fácil é que ‘a apresentação (da coisa) inconsciente do objeto foi abandonada pela libido’. Na realidade, contudo, essa apresentação é composta de inumeráveis impressões isoladas (ou traços inconscientes delas) e essa retirada da libido não é um processo que possa ser realizado num momento, mas deve, por certo, como no luto, ser um processo extremamente prolongado e gradual. Se ele começa simultaneamente em vários pontos ou se segue alguma espécie de seqüência fixa não é fácil decidir; nas análises, torna-se freqüentemente evidente que primeiro uma lembrança, e depois outra, é ativada, e que os lamentos que soam sempre como os mesmos, e são tediosos em sua monotonia, procedem, não obstante, cada vez de uma fonte inconsciente diferente. Se o objeto não possui uma tão grande importância para o ego - importância reforçada por mil elos -, então também sua perda não será suficiente para provocar quer o luto, quer a melancolia. Essa característica de separar pouco a pouco a libido deve, portanto, ser atribuída de igual modo ao luto e à melancolia, sendo provavelmente apoiada pela mesma situação econômica e servindo aos mesmos propósitos em ambos.

Como já vimos, contudo, a melancolia contém algo mais que o luto normal. Na melancolia, a relação com o objeto não é simples; ela é complicada pelo conflito devido a uma ambivalência. Esta ou é constitucional, isto é, um elemento de toda relação amorosa formada por esse ego particular, ou provém precisamente daquelas experiências que envolveram a ameaça da perda do objeto. Por esse motivo, as causas excitantes da melancolia têm uma amplitude muito maior do que as do luto, que é, na maioria das vezes, ocasionado por uma perda real do objeto, por sua morte. Na melancolia, em conseqüência, travam-se inúmeras lutas isoladas em torno do objeto, nas quais o ódio e o amor se digladiam; um procura separar a libido do objeto, o outro, defender essa posição da libido contra o assédio. A localização dessas lutas isoladas só pode ser atribuída ao sistema Ics., a região dos traços de memória de coisas (em contraste com as catexias da palavra). No luto, também, os esforços para separar a libido são envidados nesse mesmo sistema; mas nele nada impede que esses processos sigam o caminho normal através do Pcs. até a consciência. Esse caminho, devido talvez a um certo número de causas ou a uma combinação delas, está bloqueado para o trabalho da melancolia. A ambivalência constitucional pertence por natureza ao reprimido; as experiências traumáticas em relação ao objeto podem ter ativado outro material reprimido. Assim, tudo que tem que ver com essas lutas devidas à ambivalência permanece retirado da consciência, até que o resultado característico da melancolia se fixe. Isso, como sabemos, consiste no abandono, por fim, do objeto pela catexia libidinal ameaçada, só que, porém, para recuar ao local do ego de onde tinha provindo. Dessa forma, refugiando-se no ego, o amor escapa à extinção. Após essa regressão da libido, o processo pode tornar-se consciente, sendo representado à consciência como um conflito entre uma parte do ego e o agente crítico.

No trabalho da melancolia, portanto, a consciência está cônscia de uma parte que não é essencial, e nem sequer é uma parte à qual possamos atribuir o mérito de ter contribuído para o término da doença. Vemos que o ego se degrada e se enfurece contra si mesmo, e compreendemos tão pouco quanto o paciente a que é que isso pode levar e como pode modificar-se. De forma mais imediata, podemos atribuir tal função à parte inconsciente do trabalho, pois não é difícil perceber uma analogia essencial entre o trabalho da melancolia e o do luto. Do mesmo modo que o luto compele o ego a desistir do objeto, declarando-o morto e oferecendo ao ego o incentivo de continuar a viver, assim também cada luta isolada da ambivalência distende a fixação da libido ao objeto, depreciando-o, denegrindo-o e mesmo, por assim dizer, matando-o. É possível que o processo no Ics. chegue a um fim, quer após a fúria ter-se dissipado, quer após o objeto ter sido abandonado como destituído de valor. Não podemos dizer qual dessas duas possibilidades é a regular ou a mais usual para levar a melancolia a um fim, nem que influência esse término exerce sobre o futuro curso do caso. O ego pode derivar daí a satisfação de saber que é o melhor dos dois, que é superior ao objeto.

Mesmo que aceitemos esse conceito a respeito do trabalho da melancolia, ele ainda não proporciona uma explanação do único ponto que nos interessa esclarecer. Esperávamos que a condição econômica para o surgimento da mania, após a melancolia ter seguido o seu curso, fosse encontrada na ambivalência que domina essa afecção, e nisso encontramos um apoio proveniente de analogias em vários outros campos. Mas existe um fato diante do qual essa expectativa tem de se render. Das três precondições da melancolia - perda do objeto, ambivalência e regressão da libido ao ego -, as duas primeiras também se encontram nas auto-recriminações obsessivas que surgem depois da ocorrência de uma morte. Indubitavelmente, nesses caso é a ambivalência que constitui a força motora do conflito, revelando-nos a observação que, depois de determinado o conflito, nada mais resta que se assemelhe ao triunfo de um estado de mente maníaco. Somos levados assim a considerar o terceiro fator como o único responsável pelo resultado. O acúmulo de catexia que, de início, fica vinculado e, terminado o trabalho da melancolia, se torna livre, fazendo com que a mania seja possível, deve ser ligado à regressão da libido ao narcisismo. O conflito dentro do ego, que a melancolia substitui pela luta pelo objeto, deve atuar como uma ferida dolorosa que exige uma anticatexia extraordinariamente elevada. - Aqui, porém, mais uma vez, será bom parar e adiar qualquer outra explicação da mania até que tenhamos obtido certa compreensão interna (insight) da natureza econômica, primeiro da dor física, depois da dor mental análoga a ela. Conforme já sabemos, a interdependência dos complicados problemas da mente nos força a interromper qualquer indagação antes que esta esteja concluída - até que o resultado de uma outra indagação possa vir em sua ajuda.


S. Freud - A História do Movimento Psicanalítico, Artigos Sobre Metapsicologia e Outros Trabalhos - 1914 - 1917

Sunday, September 07, 2008

LUTO E MELANCOLIA

4

A conclusão que nossa teoria exigiria - a saber, que a tendência a adoecer de melancolia (ou parte dessa tendência) reside na predominância do tipo narcisista da escolha objetal - infelizmente ainda não foi confirmada pela observação. Nas observações introdutórias deste artigo, admiti que o material empírico em que se fundamentou este estudo é insuficiente para as nossas necessidades. Se pudéssemos presumir um acordo entre os resultados da observação e o que inferimos, não hesitaríamos em incluir em nossa caracterização da melancolia essa regressão da catexia objetal para a fase oral ainda narcisista da libido. Também nas neuroses de transferência as identificações com o objeto de modo algum são raras; na realidade, constituem um conhecido mecanismo de formação de sintomas, especialmente na histeria. Contudo, a diferença entre a identificação narcisista e a histérica pode residir no seguinte: ao passo que na primeira a catexia objetal é abandonada, na segunda persiste e manifesta sua influência, embora isso em geral esteja confinado a certas ações e inervações isoladas. Seja como for, também nas neuroses de transferência a identificação é a expressão da existência de algo em comum, que pode significar amor. A identificação narcisista é a mais antiga das duas e prepara o caminho para uma compreensão da identificação histérica, que tem sido estudada menos profundamente.

A melancolia, portanto, toma emprestado do luto alguns dos seus traços e, do processo de regressão, desde a escolha objetal narcisista para o narcisismo, os outros. É por um lado, como o luto, uma reação à perda real de um objeto amado; mas, acima de tudo isso, é assinalada por uma determinante que se acha ausente no luto normal ou que, se estiver presente, transforma este em luto patológico. A perda de um objeto amoroso constitui excelente oportunidade para que a ambivalência nas relações amorosas se faça efetiva e manifesta. Onde existe uma disposição para a neurose obsessiva, o conflito devido à ambivalência empresta um cunho patológico ao luto, forçando-o a expressar-se sob forma de auto-recriminação, no sentido de que a própria pessoa enlutada é culpada pela perda do objeto amado, isto é, que ela a desejou. Esses estados obsessivos de depressão que se seguem à morte de uma pessoa amada revelam-nos o que o conflito devido à ambivalência pode alcançar por si mesmo quando também não há uma retração regressiva da libido. Na melancolia, as ocasiões que dão margem à doença vão, em sua maior parte, além do caso nítido de uma perda por morte, incluindo as situações de desconsideração, desprezo ou desapontamento, que podem trazer para a relação sentimentos opostos de amor e ódio, ou reforçar uma ambivalência já existente. Esse conflito devido à ambivalência, que por vezes surge mais de experiências reais, por vezes mais de fatores constitucionais, não deve ser desprezado entre as precondições da melancolia. Se o amor pelo objeto - um amor que não pode ser renunciado, embora o próprio objeto o seja - se refugiar na identificação narcisista, então o ódio entra em ação nesse objeto substitutivo, dele abusando, degradando-o, fazendo-o sofrer e tirando satisfação sádica de seu sofrimento. A autotortura na melancolia, sem dúvida agradável, significa, do mesmo modo que o fenômeno correspondente na neurose obsessiva, uma satisfação das tendências do sadismo e do ódio relacionadas a um objeto, que retornaram ao próprio eu do indivíduo nas formas que vimos examinando. Via de regra, em ambas as desordens, os pacientes ainda conseguem, pelo caminho indireto da autopunição, vingar-se do objeto original e torturar o ente amado através de sua doença, à qual recorrem a fim de evitar a necessidade de expressar abertamente sua hostilidade para com ele. Afinal de contas, a pessoa que ocasionou a desordem emocional do paciente, e na qual na doença se centraliza, em geral se encontra eu seu ambiente imediato. A catexia erótica do melancólico no tocante a seu objeto sofreu assim uma dupla vicissitude: parte dela retrocedeu à identificação, mas a outra parte, sob a influência do conflito devido à ‘ambivalência’, foi levada de volta à etapa de sadismo que se acha mais próxima do conflito.

É exclusivamente esse sadismo que soluciona o enigma da tendência ao suicídio, que torna a melancolia tão interessante - e tão perigosa. Tão imenso é o amor de si mesmo do ego (self-love), que chegamos a reconhecer como sendo o estado primevo do qual provém a vida instintual, e tão vasta é a quantidade de libido narcisista que vemos liberada no medo surgido de uma ameaça à vida, que não podemos conceber como esse ego consente em sua própria destruição. De há muito, é verdade, sabemos que nenhum neurótico abriga pensamentos de suicídio que não consistam em impulsos assassinos contra outros, que ele volta contra si mesmo, mas jamais fomos capazes de explicar que forças interagem para levar a cabo esse propósito. A análise da melancolia mostra agora que o ego só pode se matar se, devido ao retorno da catexia objetal, puder tratar a si mesmo como um objeto - se for capaz de dirigir contra si mesmo a hostilidade relacionada a um objeto, e que representa a reação original do ego para com objetos do mundo externo. Assim, na regressão desde a escolha objetal narcisista, é verdade que nos livramos do objeto; ele, não obstante, se revelou mais poderoso do que o próprio ego. Nas duas situações opostas, de paixão intensa e de suicídio, o ego é dominado pelo objeto, embora de maneiras totalmente diferentes.

S. Freud - 1917

Joseph Mallord William Turner (English, 1775–1851)
Mortlake Terrace, the Seat of William Moffatt, Esq.; Summer's Evening, exhibited 1827
Oil on canvas; 36 1/4 x 48 1/8 in. (92 x 122 cm)
National Gallery of Art, Washington, Andrew W. Mellon Collection, 1937

Joseph Mallord William Turner (English, 1775–1851)
Fishermen at Sea, exhibited 1796
Oil on canvas; 36 x 48 1/8 in. (91.4 x 122.2 cm)
Tate, London, Purchased 1972

Em um país onde a bandeira do politicamente correto se impõe a ponto de encobrir a visão, um vício trivial como o cigarro já pode ser enxergado como uma emocionante transgressão.
Foi nessa "aventura" que embarcou Tom Chiarella, hoje com 47 anos: um adulto norte-americano aprender a fumar tabaco.
Ciente dos males do tabagismo, que matou cerca de 5,4 milhões de pessoas em 2005, segundo a Organização Mundial da Saúde, Chiarella, que é professor no departamento de inglês da Universidade DePauw, em Indiana, passou um mês fumando e conta a experiência no texto abaixo, publicado originalmente na revista "Esquire".

Aprendendo a fumar
TOM CHIARELLA

Há cinco semanas, eu estava me exercitando no aparelho, meus pés vibrando naquelas curvas desagradáveis. O aparelho inteiro ofegava, repetindo o mantra matinal: para baixo, para baixo, para baixo.
Assim que alcancei um certo limiar de transpiração, parei, peguei minha bolsa e saí ao ar frio de inverno, ainda ofegante.
Procurei no bolso meu maço de cigarros, amassado ao lado das chaves do carro, como um macinho úmido de dinheiro.
A fumaça encheu meu peito, e meus ombros se ergueram tanto que minhas chaves chegaram a mexer dentro do bolso do meu paletó. Era como se minha boca estivesse repleta de algo viscoso e metálico. Minha garganta pareceu irradiar calor para a frente e para trás no espaço em que eu estava. Havia um sabor que lembrava um pouco pipoca queimada.
Encostei a língua no céu da boca, um gesto que visava acalmar a tosse incipiente; ela ficou ali, um pouco elétrica. Traguei mais fumaça, trazendo também o vento frio para meu rosto, e de repente ela encharcou meus pulmões já sensibilizados pelo exercício recente.
A luz do mundo caiu sobre mim, solúvel e absoluta, e olhei em volta para ver se alguém estava observando, quase esperando que estivesse. Eu estava um pouco alto, uma sensação que lembrava um pouco todas as outras formas que conheço de ficar chapado.

Errado e certo

O choque provocou um corte em meus pulmões. Dois pensamentos aleatórios passaram por minha cabeça: "Alguma coisa está errada" -o chão subiu em minha direção rapidamente, e pensei que eu poderia cair- e "alguma coisa está certa" -eu estava eufórico, ansioso para ver o que iria acontecer.
Abaixei-me sobre um joelho. Inalei outra vez. O céu parecia maior, meu carro, mais distante, e fiquei em pé novamente, cambaleando um pouco.
Levantei o cigarro, traguei novamente, e o sol pareceu ser puxado para o alto, como um peixe por uma linha de pesca. Andei até meu carro, muito devagar, saboreando o friozinho glacial em minha boca, a sensação de queimação no peito.
Eu era fumante havia uma semana apenas, e esse era o primeiro cigarro que funcionava de fato. Acho que não devia ter inalado corretamente antes. Mas agora, sim. Pela primeira vez, consegui sentir.
Vivi 46 anos antes de fumar meu primeiro cigarro. Bom, talvez eu tenha feito de conta, de vez em quando, mas nunca tinha dado uma tragada de fato. Então me converti em fumante por 30 dias, propositadamente.
Esta não é uma história sobre parar de fumar. É sobre começar. E começar, para mim, incluiu 34 marcas diferentes de cigarros, 11 isqueiros, revelações espirituais e momentos de clareza, reuniões em becos, encontros com estranhos nas ruas de várias cidades, momentos passados encolhido numa varanda decrépita, observando o acender de um fósforo durante uma tempestade de neve, protegido por uma mão.
Uma dor de garganta perpétua, pequena tosse irritante, várias sessões de vômito, dor de cabeça que se prolongou por seis dias, aumento de apetite, um momento de vertigem e um caso perverso do que só posso chamar de confusão moral.
Também envolveu o ingresso em uma espécie de clube, ser criticado impiedosamente pela posição hegemônica, tentar me enquadrar e não querer me enquadrar.
Eu queria chegar a um maço por dia -a medida arbitrária pela qual todos os fumantes se medem- em um mês. Então eu deixaria de fumar. Se isso me fizesse ficar doente, tudo bem. Eu queria sentir isso. Se apresentasse sintomas de abstinência, ok, eu lidaria com isso. Eu precisava entender.
Além disso, imaginei que eu perderia um pouco de peso.
Assim, no amanhecer daquele dia, decidi começar a fumar.
Até a hora do jantar já tinha fumado seis cigarros American Spirit Light. Fumei aquele primeiro maço em dois dias. Fumei o primeiro enquanto voltava para casa, percorrendo a pé os quatro longos quarteirões desde a escola onde leciono.
Eu não sabia segurar aquela coisa. Meus dedos, agarrando aquele pequeno cigarro, pareciam gordos como os de um porco, grandes demais, mal posicionados.
A fumaça, leve e cheia de cinzas, encheu minha boca e fez meus olhos lacrimejarem. Eu tossia a cada tragada, apesar de quase não inalar.
Encobri tudo isso caminhando rápido, achando que com isso eu passaria a impressão de ser um homem ocupado, alguém que precisa ir a vários lugares e para quem fumar é um dos fatos do cotidiano, e não um dilema, em vista das pequenas questões de estilo que me obcecavam: o cigarro estava bem aceso? Quão profundamente eu deveria tragar?
Por algum motivo eu me preocupava com isso, como algum adolescente idiota.
Daquele momento em diante, tentei fumar a cada duas horas, mais ou menos.
Em uma semana já tinha chegado a 12 cigarros por dia. Ia até a loja, comprava um maço novo e, após fumar, o jogava sobre a geladeira. Experimentei todas as marcas que encontrei. Depois de 30 dias, cheguei a um março por dia. No 31º dia, fumei 22 cigarros.
Assim, posso honestamente afirmar que fumei mais de um maço por dia. Por um dia.
Ainda no início do experimento, minha insegurança me levou a telefonar para uma empresa de cigarros e pedir algumas orientações.
Abri caminho em meio ao atendimento eletrônico da Santa Fe Natural Tobacco Company, fabricante da marca American Spirits, até conseguir falar com um atendente humano chamado Shawn, que, pelo menos por algum tempo, pareceu bastante receptivo.
"Acabo de começar a fumar", eu disse, "e acho que estou fazendo errado. Alguma coisa não está certa."
"Senhor...?"
"Não seguro o cigarro do jeito certo, não trago totalmente, não sei como jogar as cinzas, nunca sei onde jogar as bitucas. Quando você começa a fumar já velho, ninguém quer ensiná-lo. Vocês têm alguém que poderia me ajudar a aprender a fumar?"
Uma pausa longa se fez. Eu podia imaginar a expressão do sujeito. Quase conseguia ouvi-lo franzindo os lábios.
"Não damos conselhos a fumantes novos", ele respondeu. Então respirou fundo. Coitado. Ele devia receber ligações de trote o dia todo.
"Quando trago, sinto dor", falei. "O cigarro me faz tossir."
"Sim, senhor", ele disse.
"Só estou buscando uma pequena ajuda", disse. "Vejo essas pessoas fumando na televisão, e dá para ver quando não estão tragando, sabe? Sei que estão fazendo de conta. Eu não quero fazer de conta. Quero tragar."
Pausa.
"Na verdade, não há instruções disponíveis", disse ele. "Não há nada que eu possa fazer para ajudá-lo."
"Parece que ninguém quer me ajudar", disse eu.
"Sim, senhor."

"Isto é coisa séria"

Minha namorada fuma há 20 anos, parando e recomeçando ao longo desse tempo. Ela não fuma muito -seis ou sete cigarros por dia. Passou anos sem fumar, mas descobriu que lhe é impossível parar para sempre.
Ficou horrorizada diante da minha idéia de começar a fumar aos 46 anos. Temia que eu estivesse zombando dela ou tentando provar algo.
Estávamos caminhando quando ela segurou o cigarro entre os dedos, como uma prova apresentada em um tribunal. "Isto é coisa séria. E você não a está levando a sério."
Peguei o maço do bolso de seu casaco, tirei um cigarro, pedi fogo e fiz uma piada sem graça. Um cigarro, imaginei, me ajudaria a fugir de qualquer tipo de constrangimento.
Minha namorada se voltou contra mim. "Você vai usar isso contra mim?" perguntou, brava. Ela chegou a formar um punho com sua mão, com o cigarro encerrado no meio. "Você não pode imaginar que eu gosto disso. Não pode."
"De quê? De eu fumar?"
"Não. De eu mesma fumar."

"Isso é uma loucura"

A revolta contra mim também era profunda entre os não-fumantes. Meu filho mais jovem, que é asmático e atleta -um sujeito mais honrado e corajoso seria difícil de imaginar- suplicou pra mim: "Você não pode fazer isso!", reagiu, quando lhe disse o que estava fazendo. "Você vai se viciar."
"Que nada", falei. Estávamos voltando de carro de um posto de combustível onde eu comprara três tipos diferentes de Pall Mall e um isqueiro cor de laranja. "Estou fazendo isso só para saber como é. Estarei de volta, sem fumar, antes de você perceber."
Mas o magoava o fato de eu cogitar a idéia. "É uma loucura, pai. Não há nada para experimentar. O que você precisa saber sobre fumar? Leia um livro. Isso é burrice."
Ele olhou pela janela. Passávamos por um posto depois de outro, cada um deles, como eu sabia, com enormes prateleiras de cigarros organizados por cor, intensidade, tamanho da dose. Cada janela gritava o preço feio e indistinguível de um maço ou pacote. Ele suspirou. "Você acha que isso é legal."
Então, com o mundo de ponta-cabeça -o filho repreendendo o pai por fumar-, optei pela freqüência mais baixa de discussão. "Cary Grant fumava para parecer legal", falei baixinho. "Sigourney Weaver também, em "Alien"."
Primeiro cigarro num bar: um Kool, com um sujeito com quem eu me encontrei para falar de trabalho. Um bar num subsolo em Indianápolis. "Você fuma?", ele perguntou.
"Acabei de começar."
"Você acabou de começar...", disse ele, ecoando meu pouco caso. Foi obrigado a repetir a pergunta para ele mesmo: "Você fuma?"
Quando procurei seu maço de Kool, tinha sumido. Ele o tinha escondido quando eu não estava olhando. "Você fuma", falei, apontando para o cinzeiro. "Eu vi seus cigarros."
Ele os tirou do bolso e balançou o maço de um lado para outro, como um sino. "Acabei de recomeçar", contou.
Ele pôs um cigarro no canto da boca e semicerrou o olho. "É sempre legal encontrar outro fumante."
Acendi um fósforo. "Estou começando a perceber que é como um clube."
Ele sacudiu a cabeça e soprou um túnel de fumaça no bar escurecido. "É, como o Rotary", falou.
Ele deu de ombros e olhou para o maço de Kool. "E não deixa de ter seus encantos."

Chaminé e maçaneta

Comecei a jogar um joguinho. Na minha cabeça, dei um nome diferente a cada tipo de tragada. Quando tentava tragar mais fundo, dava o nome de chaminé de fogão -me fazia passar mal, ter acessos de tosse.
Eu não tinha vomitado em 20 anos -nem me recordava da última vez. Depois de vomitar, sempre me obrigava a tragar ao menos mais uma vez, porque era melhor naquele momento.
Mais tarde, quando aprendi a tragar direito -inalando rápido e fundo, exalando rápido e macio-, chamei isso de levantamento de peso deitado. E havia a tragada de maçaneta de porta, que eu fazia na presença de fumantes de fato.
Virava a cabeça (como uma maçaneta) para exalar na outra direção, porque o fumante de fato sabe que a fumaça inalada sai em névoa e com alguma velocidade, não em pequenos anéis tênues, como eu fazia.
Dei nome a todas elas. Enxerguei isso como um novo nível de consciência do fumar.
Sendo uma pessoa que gosta de seus vícios, eu já tinha sofrido danos permanentes suficientes para uma vida.
Eu precisava saber se, fumando cigarros, estaria me matando. Telefonei para Mehmet Oz, cirurgião cardíaco e redator médico da "Esquire". A primeira coisa que me perguntou foi sobre a "dosagem". Foi totalmente analítico, tratando meu experimento impensado como se fosse um estudo clínico.
"Deveríamos ter feito você usar emplastro. Deveríamos ter começado aos poucos. Como está se sentindo agora?"
"Doente", respondi. "Fumar me dá vertigem e dor de cabeça. A primeira tragada, ou as duas primeiras, são fáceis. Depois disso, é diferente a cada vez."
"Você está se intoxicando com nicotina. O corpo leva algum tempo para aprender a lidar com isso. Você está indo rápido demais. Seu cérebro ainda não aprendeu a produzir a dopamina necessária para causar dependência. A nicotina não está ativando a alavanca correta em seu cérebro. Um fumante usa os cigarros em momentos determinados do dia para produzir dopamina, como meio de se automedicar."
Perguntei a ele se eu acabaria meus dias falando por meio de um buraco no pescoço.
"Depois de um mês? Não. Não se os fatores de risco já não estiverem presentes. Você está percorrendo terreno não mapeado. Ninguém começa na sua idade. Mas, se você parar, seu corpo vai reparar os danos em pouco tempo. Isso é o legal sobre parar de fumar. Os pulmões se consertam sozinhos."

Caras amarradas

Eu lhe contei que na noite anterior tinha tragado o mais fundo possível, até o centro de meu peito. Isso me fizera vomitar. Durante três dias eu consegui vomitar no momento em que quisesse. Era como fazer um truque com baralho.
Mostrei para minha faxineira. Falei que eu limparia a sujeira. Ela é fumante inveterada.
"Pensei que o sr. não quisesse que ninguém fumasse aqui", ela me falou depois, olhando atônita para o cigarro em minha mão.
"Acredito", disse o dr. Oz, falando de meu macete para vomitar. "Isso eu gostaria de ver." Ele falou com a curiosidade de um cientista.
Numa terça-feira, acendi um cigarro no aeroporto de Detroit. Queria fumar, mas também queria ver o que aconteceria. Rarará. Isso me pareceu um ato perigoso, sim, e muito possivelmente estúpido, mas algo de cujas conseqüências eu conseguiria me safar, apresentando algum argumento fajuto.
Em situações como essa, o cigarro me dava coragem.
Coloquei-me no canto mais distante de uma área de portão -a dez metros de qualquer outro passageiro e ainda mais longe de qualquer pessoa com autoridade suficiente para atirar um dardo em meu pescoço e me fazer embarcar no vôo das 7h05 para Guantánamo.
Então peguei meu isqueiro e, com muita calma, acendi um Virginia Slim, a marca que estava fumando naquele dia (horrível, por sinal).
O que acontece quando você acende um cigarro num aeroporto -porque eu o aconselho a nunca tentar isso- é que uma série de reações se processa mecanicamente, como em uma ficção científica, como se o consciente coletivo do lugar fosse dividido igualmente entre todos os presentes, gerando uma única reação, como se fosse a de um zumbi.
Ao som do isqueiro acionado, as cabeças se voltam, e corpos se deslocam imediatamente em sua direção.
Dei duas tragadas fundas, porque agora um faxineiro tinha aparecido de lugar nenhum e se aproximava rapidamente pela direita. Um agente do portão estava caminhando rápido à distância, e uma mulher com um bebê no colo se aproximava, de cara amarrada.
Dois outros homens ficaram em pé para acompanhar a cena melhor.
"Você não pode fumar aqui!", me disse a mulher, virando o bebê para longe de mim, como se o estivesse protegendo do calor de um incêndio.
"Apague isso, senhor", me disse o agente da Northwest, me alcançando num trote.
"Sinto muito", eu disse a todos, apagando o cigarro contra a sola do sapato, as cinzas se espalhando pelo carpete como faíscas de um maçarico.
"Acabo de começar a fumar. Eu não sabia."
O zelador franziu os lábios. Trinta e cinco segundos se passaram. Seguranças do aeroporto chegaram. Fui cercado. "É proibido fumar aqui", disse um guarda. Olhei para cada um deles. Quatro rostos, ou cinco, contorcidos em um espasmo de insatisfação e espanto.
"Me desculpem", falei. "Eu não sabia."
"Não sabia?" disse o funcionário do portão, afastando-se mas me olhando nos olhos. "Quem é que não sabe disso? Isto aqui é um aeroporto!"

Confusão moral

Quando não era fumante, achava que fumar fosse um ato de auto-indulgência descontrolada. Mas há algo de palpável na necessidade do cigarro, mesmo quando é autocriada. É boa a sensação de precisar de alguma coisa. Existe também uma confusão moral -preciso disso ou apenas quero?
Depois de três semanas, em um dia em que tinha fumado 14 cigarros, percebi que finalmente poderia curtir um cigarro depois do sexo. Fumar deixara de ser uma tarefa ou um desafio. Eu gostava de fumar. Dopamina? Eu não sabia. Não me importava. Eu simplesmente queria fumar.
Mas o cigarro também ampliava as coisas prazerosas. Tudo parecia mais potente, mais iluminado.
O sexo, a cerveja que estávamos dividindo, a maçã que eu deixara do lado da cama, até mesmo a brisa fria que subia por baixo do cobertor, retesando meu escroto.
Naquele momento, eu era uma fábrica de dopamina.
"Quando você fuma, sempre soa como se doesse", disse ela. "Aquela tossezinha... Isso soa ruim. Não pode ser bom."
Mais uma semana e deixaria de fumar, disse. Mais uma semana e ela poderia continuar a doer sozinha. Mas, agora que eu entendia a dor suprema daquela dependência, queria estar de volta ao tempo em que não tinha interesse em tudo isso.
Ela tinha razão. Doía quando eu fumava. Cada vez.
No ano passado meu filho mais velho me revelou que fumava. Em minha ira reflexiva, eu gritei, ameacei com a retirada de privilégios, mas ele persistiu.. Eu me senti ludibriado, como se alguém estivesse agindo por trás de minhas costas.
Malditos fabricantes de cigarros, maldito Joe Camel.
Tentei expulsar o cigarro de sua vida -proibindo-o de fumar em casa, no carro, no quintal-, até os limites do mundo que eu controlava para ele.
Achei que ele talvez estivesse apenas brincando com isso, representando um papel.
Mas ele continuou. E eu me dei conta de que às vezes, ou pelo menos agora, a desaprovação -mesmo que seja de um comportamento de seu filho- não é realmente um comando, mas uma observação. Meu filho fuma. Tentei digerir o fato.
Eu o observei fumar, ficando ao seu lado diante de restaurantes e, quando cedi, no quintal de minha própria casa. Isso foi antes de eu ter fumado um único cigarro.
Percebi que fumar o modificava um pouquinho, como uma correção de rumo feita ao mar -um grau de diferença, em direção a um novo ponto do horizonte. Sua expressão se abrandava, o cigarro parecia amortecer a infelicidade que às vezes pesava sobre sua vida.
Fiquei triste, irritado, um pouco ciumento. Disse a ele que ele era um tolo, mas depois me arrependi. Que ninguém se engane: fumante ou não, é horrível ver seu filho dando uma tragada num cigarro como se isso significasse algo para ele.
É nesse momento que um cigarro não se parece tanto com um conforto casual em um mundo frio, mas mais com um abismo, um logro sombrio.
Eu sou responsável por minha própria estupidez. Este é meu filho, e eu, de certo modo, não posso fazer mais do que testemunhar. Meu filho, fumando como algum beberrão qualquer.
É nessa hora que você sente vontade de estrangular um executivo de empresa de cigarros.
Um dia encontrei meu velho amigo Wade, correndo para não se atrasar para alguma reunião, levando um sanduíche numa embalagem plástica. Eu o conhecera como fumante durante 17 anos. "Ei", falei, esperançoso. "Quer fumar um cigarro comigo?"

Gesto de respeito

Ele pareceu estarrecido.
Contei a ele sobre meu experimento, e era isso o que eu buscava desde o início: aquela experiência elementar, altamente social, sempre surpreendente de tirar tempo para fumar um cigarro com um velho amigo. É que não tenho muitos amigos que ainda fumam.
"Você está começando a fumar?", ele disse, sua voz se levantando no verbo, acentuando a aquisição do hábito.
Wade é biólogo. Ele riu e indicou com o queixo o bolso de minha camisa, onde se divisava o maço de cigarros.
"Eu parei", ele falou. Fiz que "sim" com a cabeça e pus o maço de Pall Mall de volta no bolso. Um gesto de respeito.
Ele olhou para a direita, depois para a esquerda. "Bem, estou diminuindo, de qualquer maneira." Jesus. Diminuindo?
"Quer dizer que está economizando seu um cigarro para o momento em que não estiver aqui com um velho amigo?
Qual é, cara! O cigarro serve para quê, afinal? Sente aqui comigo neste banco e fume, cara." Eu sei, eu sei. Sou um canalha, um sujeito que enfraquece a determinação dos outros.
Mas Wade se sentou comigo e ficou 15 minutos. Fumamos dois cigarros e falamos de sua filha, de Richard Dawkins, dos assentos que Wade tinha nas partidas de futebol americano.
Olhei para ele e disse: "Você está atrasado para sua reunião".
Certa tarde, em Nova York, aprendi algo sobre coisas que não estavam claras para mim. Fazia frio. Era final de outono, e, a cada vez que saía à rua para fumar, eu me via na mesma esquina com um grupo de sujeitos que também saíam de seus escritórios para fumar. Eu gostava da energia deles, de sua determinação em transgredir.
Alguns deles fumavam como se tivessem nascido fumando.
Eu ainda parecia uma estudante universitária em seu primeiro fim de semana longe de casa.
Tinha comprado um maço de cigarros caros, Nat Sherman, que ofereci aos outros. Eles gostaram do que eu estava fazendo, aprendendo. E então, espontaneamente, sem que eu tivesse pedido, começaram a me dar dicas.
Me senti como se estivesse num grupinho de mamães de primeira viagem.
"Nunca faça gestos com o cigarro", disse um deles. Os outros riram, concordando. "Não jogue a cinza com jeito muito agressivo", disse outro.
"Dá a impressão de que mal pode esperar para ir embora."
"Não trague à francesa. Isso é ridículo demais."
Exalamos no ar frio, passando o peso do corpo de uma perna para outra.
"O que você está fazendo parece maluquice", falou um deles. "Mas vinha observando você para ver com que freqüência vinha para a rua. Queria ver se estava fumando pra valer."
Pus o cigarro na boca e traguei fundo. "E estou?", perguntei, apertando o cigarro entre o polegar e o dedo indicador, um gesto que aprendi com De Niro em "Cassino".
Mas então tossi. Tossi de novo. Mesmo depois de três semanas, a fumaça ainda doía. E isso fez todo mundo rir, até mesmo eu, com a cabeça ainda zumbindo depois da tragada.
As ruas estavam cheias de carros, sob a chuva. Uma mulher passou por nós, pedindo dinheiro. Empurrava um carrinho de bebê, mas não vi nenhum bebê. Ela pediu 20 dólares a um dos fumantes. Ele fez que não com a cabeça. Ofereci um maço de Winston que tinha sobrado do dia anterior.
"Tome", falei, oferecendo o maço enquanto procurava US$ 1 no meu bolso. Mas a mulher virou as costas. "Não fumo", ela falou, e continuou andando. "Não sou estúpida."

Mente contorcida

Eis alguma coisa que escrevi depois de fumar 22 cigarros, no último dia de meu experimento, quando eu estava zunindo.
Minha mente estava contorcida. Eu tinha fumado aquele último maço após beber, caminhar, andar, ficar parado em esquinas. No dia seguinte eu iria parar. Não seria tão difícil assim. Sentiria falta do cigarro.
Sentiria aquele puxão em minhas costelas depois de comer uma carne ou tomar um uísque.
Mas eu não sofreria aquela necessidade constante. Ainda não tinha feito aquela adaptação mencionada pelo dr. Oz.
Mesmo assim, senti que eu conseguira enxergar algo que não enxergara antes, algo ao qual não conseguia dar nome.
Então, como um oráculo fumante, tive a revelação.
Os EUA vivem um cabo-de-guerra constante entre a ordem e o caos. Quando você fuma, isso fica aparente, inegável. As pessoas olham feio. Elas passam apressadas. Não-fumantes. Para elas, o fato de eu fumar representa falta de consideração e desrespeito à lei. A insensatez de um animal.
Houve uma época em que a ordem do mundo ficava contida no prazer calmante absoluto de um cigarro.
Mas reordenaram o mundo, e agora o cigarro é o fator desorganizador. Os fumantes ficam parados em esquinas, à margem de tudo, apagando seus soldados mortos com as solas de seus sapatos.
Quando passo por eles de carro, eu os sinto. É meu país que está ali. Eles me lembram a tragada, a chaminé de calor, eles me fazem ter vontade de fumar. E até gosto, sim, da tosse. Chego a gostar da dor no peito. O cigarro ilumina meu cérebro. Mas isso é apenas porque sou fumante recente.
Para o fumante de fato, o cigarro traz calma, traz ordem em meio ao caos de suas vidas.
Colombo! Ele não descobriu nada, exceto o cigarro. Não havia cigarros na Europa antes dele. M... de homem!
E os puritanos! Aqueles sujeitos traçaram regras. Eles queriam criar ordem no país e abolir tudo o que não compreendiam. São os responsáveis pela proibição ao fumo.
Preto e branco. O fumo é o refrão americano essencial: a necessidade de ordem moral em contraposição ao instinto de exploração.
Depois daquele experimento maluco, parei. Passei seis dias dentro de casa, jogando videogame. Vivo, incapaz de pensar, incapaz de escrever, incapaz de sair de uma dor de cabeça interminável. De alguma maneira eu engordara quase cinco quilos e começara a beber demais.
Parece que o fumar tinha intensificado todas minhas outras dependências, ressaltando todas minhas outras falhas.

"Tudo muda"

Apesar disso, eu sentia falta do cigarro. Sentia falta de sair para fumar lá fora. Gostava do cheiro de tabaco nas pontas dos meus dedos, até mesmo em minhas toalhas. Sentia falta do peso do maço cheio e da tensão do maço vazio. Sentia saudades de meus novos amigos, obrigados a ficar na rua, impenitentes.
Sobretudo, sentia falta do impulso que o cigarro me proporcionava, o ímpeto de um cigarro para o outro, ao longo do dia. Você passa por eles, como pontos de referência. Senti falta disso. Ainda sinto.
Perto do final do experimento, na quadra de esportes da escola onde leciono, fumei um cigarro com uma professora de economia que eu conhecera durante anos como fumante inveterada.
Na época em que eu não fumava, eu costumava passar por ela sem parar, dando apenas um pequeno aceno.
Desde que começara a fumar, eu começara também a parar e acender um cigarro com ela.
Era o tipo de encontro fortuito que eu não tivera em meus 46 anos de vida anteriores. Ela nunca se mostrava avessa à minha companhia nem eu à dela.
Esses são os melhores cigarros, aqueles que se fumam devido ao acaso feliz, marcados pela descoberta.
A professora me disse que ia parar de fumar quando se aposentasse.
"Quanto tempo falta?"
"Um ano e meio", ela me disse. "Venho planejando isso. Preciso parar."
Fiquei perplexo. "Por que esperar?", perguntei. "Por que não parar agora?"
Sacudiu a cabeça, como se houvesse algo que eu não entendesse. "Já parei outras vezes, e é sempre a mesma coisa. Não consigo falar ou mandar e-mails nem falar ao telefone.
Vou precisar passar por seis meses de confusão para me livrar disso de uma vez por todas.
Sem cigarros, não consigo trabalhar. Tudo muda."
"É a mesma coisa para quem começa", falei. Ela riu e soprou um cordão de fumaça que se desvaneceu no ar.
Dei uma tragada tão funda que parecia tão doce e reveladora quanto uma mordida em um pêssego.
"Você acha que vai ser assim comigo? Acha que vou me sentir um pouco assim?"
Ela fez que não com a cabeça.
Mas então me olhou, reconsiderando. "Talvez você tenha alguma idéia de como é", falou.
"Talvez tenha alguma idéia de como é profunda a coisa." Olhamos para o lado - ela, procurando um cinzeiro, eu, um banco. Eu estava zonzo outra vez. Havia gelo cobrindo a calçada.
Senti que poderia cair.

Tradução de Clara Allain. +MAIS!

Saturday, September 06, 2008

LUTO E MELANCOLIA

3

Antes de passarmos a essa contradição, detenhamo-nos um pouco no conceito que a perturbação do melancólico oferece a respeito da constituição do ego humano. Vemos como nele uma parte do ego se coloca contra a outra, julga-a criticamente, e, por assim dizer, toma-a como seu objeto. Nossa desconfiança de que o agente crítico, que aqui se separa do ego, talvez também revele sua independência em outras circunstâncias, será confirmada ao longo de toda a observação ulterior. Realmente, encontraremos fundamentos para distinguir esse agente do restante do ego. Aqui, estamo-nos familiarizando com o agente comumente denominado ‘consciência’; vamos incluí-lo, juntamente com a censura da consciência e do teste da realidade, entre as principais instituições do ego, e poderemos provar que ela pode ficar doente por sua própria causa. No quadro clínico da melancolia, a insatisfação com o ego constitui, por motivos de ordem moral, a característica mais marcante. Freqüentemente, a auto-avaliação do paciente se preocupa muito menos com a enfermidade do corpo, a feiúra ou a fraqueza, ou com a inferioridade social; quanto a essa categoria, somente seu temor da pobreza e as afirmações de que vai ficar pobre ocupam posição proeminente.

Há uma observação, de modo algum difícil de ser feita, que leva à explicação da contradição mencionada acima [no fim do penúltimo parágrafo]. Se se ouvir pacientemente as muitas e variadas auto-acusações de um melancólico, não se poderá evitar, no fim, a impressão de que freqüentemente as mais violentas delas dificilmente se aplicam ao próprio paciente, mas que, com ligeiras modificações, se ajustam realmente a outrem, a alguém que o paciente ama, amou ou deveria amar. Toda vez que se examinam os fatos, essa conjectura é confirmada. É assim que encontramos a chave do quadro clínico: percebemos que as auto-recriminações são recriminações feitas a um objeto amado, que foram deslocadas desse objeto para o ego do próprio paciente.

A mulher que lamenta em altos brados o fato de o marido estar preso a uma esposa incapaz como ela, na verdade está acusando o marido de ser incapaz, não importando o sentido que ela possa atribuir a isso. Não há por que se surpreender com o fato de haver algumas auto-recriminações autênticas difundidas entre as que foram transpostas. Permite-se que estas se intrometam, uma vez que ajudam a mascarar as outras e a tornar impossível o reconhecimento do verdadeiro estado de coisas. Além disso, elas derivam dos prós e dos contras do conflito amoroso que levou à perda do amor. Também o comportamento dos pacientes, agora, se torna bem mais inteligível. Suas queixas são realmente ‘queixumes’, no sentido antigo da palavra. Eles não se envergonham nem se ocultam, já que tudo de desairoso que dizem sobre eles próprios refere-se, no fundo, à outra pessoa. Além disso, estão longe de demonstrar perante aqueles que o cercam uma atitude de humildade e submissão, única que caberia a pessoas tão desprezíveis. Pelo contrário, tornam-se as pessoas mais maçantes, dando sempre a impressão de que se sentem desconsideradas e de que foram tratadas com grande injustiça. Tudo isso só é possível porque as reações expressas em seu comportamento ainda procedem de uma constelação mental de revolta, que, por um certo processo, passou então para o estado esmagado de melancolia.

Não é difícil reconstruir esse processo. Existem, num dado momento, uma escolha objetal, uma ligação da libido a uma pessoa particular; então, devido a uma real desconsideração ou desapontamento proveniente da pessoa amada, a relação objetal foi destroçada. O resultado não foi o normal - uma retirada da libido desse objeto e um deslocamento da mesma para um novo -, mas algo diferente, para cuja ocorrência várias condições parecem ser necessárias. A catexia objetal provou ter pouco poder de resistência e foi liquidada. Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o ego. Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado. Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação.

Uma ou duas coisas podem ser diretamente inferidas no tocante às precondições e aos efeitos de um processo como este. Por um lado, uma forte fixação no objeto amado deve ter estado presente; por outro, em contradição a isso, a catexia objetal deve ter tido pouco poder de resistência. Conforme Otto Rank observou com propriedade, essa contradição parece implicar que a escolha objetal é efetuada numa base narcisista, de modo que a catexia objetal, ao se defrontar com obstáculos, pode retroceder para o narcisismo. A identificação narcisista com o objeto se torna, então, um substituto da catexia erótica, e, em conseqüência, apesar do conflito com a pessoa amada, não é preciso renunciar à relação amorosa. Essa substituição da identificação pelo amor objetal constitui importante mecanismo nas afecções narcisistas; Karl Laudauer (1914), recentemente, teve ocasião de indicá-lo no processo de recuperação num caso de esquizofrenia. Ele representa, naturalmente, uma regressão de um tipo de escolha objetal para o narcisismo original. Mostramos em outro ponto que a identificação é uma etapa preliminar da escolha objetal, que é a primeira forma - e uma forma expressa de maneira ambivalente - pela qual o ego escolhe um objeto. O ego deseja incorporar a si esse objeto, e, em conformidade com a fase oral ou canibalista do desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja fazer isso devorando-o. Abraham, sem dúvida, tem razão em atribuir a essa conexão a recusa de alimento encontrada em formas graves de melancolia.

S. Freud - 1917

Thursday, September 04, 2008

LUTO E MELANCOLIA

2

Seria igualmente infrutífero, de um ponto de vista científico e terapêutico, contradizer um paciente que faz tais acusações contra seu ego. Certamente, de alguma forma ele deve estar com a razão, e descreve algo que é como lhe parece ser. Devemos, portanto, confirmar de imediato, e sem reservas, algumas de suas declarações. Ele se encontra, de fato, tão desinteressado e tão incapaz de amor e de realização quanto afirma. Mas isso, como sabemos, é secundário; trata-se do efeito do trabalho interno que lhe consome o ego - trabalho que, nos sendo desconhecido, é, porém, comparável ao do luto. O paciente também nos parece justificado em fazer outras auto-acusações; apenas, ele dispõe de uma visão mais penetrante da verdade do que outras pessoas que não são melancólicas. Quando, em sua exacerbada autocrítica, ele se descreve como mesquinho, egoísta, desonesto, carente de independência, alguém cujo único objetivo tem sido ocultar as fraquezas de sua própria natureza, pode ser, até onde sabemos, que tenha chegado bem perto de se compreender a si mesmo; ficamos imaginando, tão-somente, por que um homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie. Com efeito, não pode haver dúvida de que todo aquele que sustenta e comunica a outros uma opinião de si mesmo como esta (opinião que Hamlet tinha a respeito tanto de si quanto de todo mundo), está doente, quer fale a verdade, quer se mostre mais ou menos injusto para consigo mesmo. Tampouco é difícil ver que, até onde podemos julgar, não há correspondência entre o grau de autodegradação e sua real justificação. Uma mulher boa, capaz e conscienciosa, não terá palavras mais elogiosas para si mesma, durante a melancolia, do que uma que de fato seja desprovida de valor; realmente, talvez a primeira tenha mais probabilidades de contrair a doença do que a segunda, a cujo respeito também nós nada teríamos a dizer de bom. Por fim, deve ocorrer-nos que, afinal de contas, o melancólico não se comporta da mesma maneira que uma pessoa esmagada, de uma forma normal, pelo remorso e pela auto-recriminação. Sentimentos de vergonha diante de outras pessoas, que, mais do qualquer outra coisa, caracterizariam essa última condição, faltam ao melancólico, ou pelo menos não são proeminentes nele. Poder-se-ia ressaltar a presença nele de um traço quase oposto, de uma insistente comunicabilidade, que encontra satisfação no desmascaramento de si mesmo.

O ponto essencial, portanto, não consiste em saber se a autodifamação aflitiva do melancólico é correta, no sentido de que sua autocrítica esteja de acordo com a opinião de outras pessoas. O ponto consiste, antes, em saber se ele está apresentando uma descrição correta de sua situação psicológica. Ele perdeu seu amor-próprio e deve ter tido boas razões para tanto. É verdade que então nos deparamos com uma contradição que coloca um problema de difícil solução. A analogia com o luto nos levou a concluir que ele sofrera uma perda relativa a um objeto; o que o paciente nos diz aponta para uma perda relativa a seu ego.

S. Freud - 1917

Wednesday, September 03, 2008

LUTO E MELANCOLIA

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Tendo os sonhos nos servido de protótipo das perturbações mentais narcisistas na vida normal, tentaremos agora lançar alguma luz sobre a natureza da melancolia, comparando-a com o afeto normal do luto. Dessa vez, porém, devemos começar por fazer uma confissão, como advertência contra qualquer superestimação do valor de nossas conclusões. A melancolia, cuja definição varia inclusive na psiquiatria descritiva, assume várias formas clínicas, cujo agrupamento numa única unidade não parece ter sido estabelecido com certeza, sendo que algumas dessas formas sugerem afecções antes somáticas do que psicogênicas. Nosso material, independentemente de tais impressões acessíveis a todo observador, limita-se a um pequeno número de casos de natureza psicogênica indiscutível. Desde o início, portanto abandonaremos toda e qualquer reivindicação à validade geral de nossas conclusões, e nos consolaremos com a reflexão de que, com os meios de pesquisa à nossa disposição hoje em dia, dificilmente descobriríamos alguma coisa que não fosse típica, se não de toda uma classe de perturbações, pelo menos de um pequeno grupo delas.

A correlação entre a melancolia e o luto parece ser justificada pelo quadro geral dessas duas condições. Além disso, as causas excitantes devidas a influências ambientais são, na medida em que podemos discerni-las, as mesmas para ambas as condições. O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante. Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto; por conseguinte, suspeitamos de que essas pessoas possuem uma disposição patológica. Também vale a pena notar que, embora o luto envolva graves afastamentos daquilo que constitui a atitude normal para com a vida, jamais nos ocorre considerá-lo como sendo uma condição patológica e submetê-lo a tratamento médico. Confiamos em que seja superado após certo lapso de tempo, e julgamos inútil ou mesmo prejudicial qualquer interferência em relação a ele.

Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. Esse quadro torna-se um pouco mais inteligível quando consideramos que, com uma única exceção, os mesmos traços são encontrados no luto. A perturbação da auto-estima está ausente no luto; afora isso, porém, as características são as mesmas. O luto profundo, a reação à perda de alguém que se ama, encerra o mesmo estado de espírito penoso, a mesma perda de interesse pelo mundo externo - na medida em que este não evoca esse alguém -, a mesma perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor (o que significaria substituí-lo) e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que não esteja ligada a pensamentos sobre ele. É fácil constatar que essa inibição e circunscrição do ego é expressão de uma exclusiva devoção ao luto, devoção que nada deixa a outros propósitos ou a outros interesses. E, realmente, só porque sabemos explicá-la tão bem é que essa atitude não nos parece patológica.

Parece-nos também uma comparação adequada chamar a disposição para o luto de ‘dolorosa’. É bem provável que vejamos a justificação disso quando estivermos em condições de apresentar uma caracterização da economia da dor.

Em que consiste, portanto, o trabalho que o luto realiza? Não me parece forçado apresentá-lo da forma que se segue. O teste da realidade revelou que o objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto. Essa exigência provoca uma oposição compreensível - é fato notório que as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem mesmo, na realidade, quando um substituto já se lhes acena. Esta oposição pode ser tão intensa, que dá lugar a um desvio da realidade e a um apego ao objeto por intermédio de uma psicose alucinatória carregada de desejo. Normalmente, prevalece o respeito pela realidade, ainda que suas ordens não possam ser obedecidas de imediato. São executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de energia catexial, prolongando-se psiquicamente, nesse meio tempo, a existência do objeto perdido. Cada uma das lembranças e expectativas isoladas através das quais a libido está vinculada ao objeto é evocada e hipercatexizada, e o desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas. Por que essa transigência, pela qual o domínio da realidade se faz fragmentariamente, deve ser tão extraordinariamente penosa, de forma alguma é coisa fácil de explicar em termos de economia. É notável que esse penoso desprazer seja aceito por nós como algo natural. Contudo, o fato é que, quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido.

Apliquemos agora à melancolia o que aprendemos sobre o luto. Num conjunto de casos é evidente que a melancolia também pode constituir reação à perda de um objeto amado. Onde as causas excitantes se mostram diferentes, pode-se reconhecer que existe uma perda de natureza mais ideal. O objeto talvez não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto objeto de amor (como no caso, por exemplo, de uma noiva que tenha levado o fora). Ainda em outros casos nos sentimos justificados em sustentar a crença de que uma perda dessa espécie ocorreu; não podemos, porém, ver claramente o que foi perdido, sendo de todo razoável supor que também o paciente não pode conscientemente receber o que perdeu. Isso, realmente, talvez ocorra dessa forma, mesmo que o paciente esteja cônscio da perda que deu origem à sua melancolia, mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém. Isso sugeriria que a melancolia está de alguma forma relacionada a uma perda objetal retirada da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada existe de inconsciente a respeito da perda.

No luto, verificamos que a inibição e a perda de interesse são plenamente explicadas pelo trabalho do luto no qual o ego é absorvido. Na melancolia, a perda desconhecida resultará num trabalho interno semelhante, e será, portanto, responsável pela inibição melancólica. A diferença consiste em que a inibição do melancólico nos parece enigmática porque não podemos ver o que é que o está absorvendo tão completamente. O melancólico exibe ainda uma outra coisa que está ausente no luto - uma diminuição extraordinária de sua auto-estima, um empobrecimento de seu ego em grande escala. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego. O paciente representa seu ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível; ele se repreende e se envilece, esperando ser expulso e punido. Degrada-se perante todos, e sente comiseração por seus próprios parentes por estarem ligados a uma pessoa tão desprezível. Não acha que uma mudança se tenha processado nele, mas estende sua autocrítica até o passado, declarando que nunca foi melhor. Esse quadro de um delírio de inferioridade (principalmente moral) é completado pela insônia e pela recusa a se alimentar, e - o que é psicologicamente notável - por uma superação do instinto que compele todo ser vivo a se apegar à vida.

S. Freud - 1917