Wednesday, December 31, 2008


2009? molezinha; com um pé nas costas...

Monday, December 29, 2008

Ser jovem e continuar vivo
RUY CASTRO

RIO DE JANEIRO - Em 12 de novembro último, sob pretexto fútil, dezenas de alunos de uma escola do Belém, zona leste de São Paulo, promoveram um quebra-quebra das salas de aula. Ameaçaram as mestras, destruíram móveis e quebraram vidros arremessando cadeiras. Nas paredes, segundo o noticiário, picharam desenhos de armas, citações do Código Penal e a sigla do PCC, principal facção criminosa de São Paulo e, agora, do país. A escola chamou a polícia, também recebida com violência pelos jovens.

Oito dias depois, em Londrina, PR, 40 estudantes de medicina da universidade do Estado foram comemorar sua formatura num bar. De cara cheia, tarde da noite, invadiram o hospital universitário aos gritos, bebendo pelo gargalo, despejando nuvens de spray de espuma, soltando foguetes e ofendendo os pacientes petrificados. As câmeras identificaram 14 deles, que, supunha-se, não poderiam colar grau.

Na semana passada, um cruzeiro para universitários entre Santos e Rio foi palco do terror em tempo integral. Rapazes e moças jogaram malas de passageiros no mar, urinaram nos corredores, vomitaram sobre o bufê, fizeram sexo a céu aberto e lotaram a enfermaria com dezenas de intoxicações por álcool, ácido, cocaína e ecstasy.

Mas, desta vez, houve um acidente de percurso. Com a viagem ainda no começo, uma estudante de direito, Isabella, 22 anos, apareceu morta, talvez asfixiada pelo próprio vômito. O corpo foi removido em Ilhabela, e o passeio continuou, com a mesma e desesperada euforia.

Nunca foi tão difícil ser jovem e continuar vivo. Os apelos ao prazer são muitos e a facilitação, presente em todos os setores, maior ainda. Os vândalos de Londrina, por exemplo, colaram grau -pelo diploma, são médicos. Uma tragédia como a de Isabella talvez não sirva para nada.

Memorable quotes for That '70s Show

Steven Hyde: Guys, can we do something besides cruise? That's the third time tonight we've driven by that house.
Michael Kelso: I know what we could do. We could go skinny dipping.
[everyone looks at him]
Michael Kelso: Naked! That's the way God intended.
Jackie Burkhardt: No way.
Michael Kelso: Why not? It'd be fun.
Donna Pinciotti: Sure, it's fun for you guys, 'cause you can look at us, and that's a treat. But we just look at you. And that's nasty.
Eric: So, you don't want to do it?
Donna Pinciotti: Well... I don't care. I'll do it.
Eric: You... Okay, I'm in.
Fez: Naked is dirty.
[singing]
Fez: Dirty, dirty, dirty. Dirty, dirty, dirty.
All: Dirty, dirty, dirty. Dirty, dirty, dirty. Dirty, dirty, dirty.
Jackie Burkhardt: [the screen flips. Everyone is in the car, naked] This was such a great idea, Michael. This was so much fun. Oh, wait, except for the part when our clothes got stolen, you idiot!
Steven Hyde: By the way, Fez, nice tattoo, man.
Fez: Thank you. It is the Blessed Virgin of Yorba Linda. Do you want to see her dance?
All: No!
Eric: Guys, we need a plan. I'm not driving up to the house with a car full of naked people. Red hates you guys when you're dressed.
Steven Hyde: We can go to my house.
Michael Kelso: Yeah, your mom's used of having naked guys around.
Steven Hyde: She's not even home, you moron!
[Hyde punches Kelso on the shoulder]
Fez: Put on the top forty.
[Fez reaches over for the radio]
Steven Hyde: Whoa, sit down, Fez! I see London, I see Besticle!
Fez: Well, what do you want me to do about it?
Steven Hyde: I don't know. Tuck it in!

http://www.imdb.com/title/tt0165598/quotes

Já li todos os livros dele de trás para a frente, o que dá no mesmo. Paulo Coelho já se avantajou à glória de Santos Dumont na França. Só que ele não é daqui, mas do mundo global do facilitário da mente e da ignorância transformada em submagia. Nosso simpaticíssimo bruxinho serve a esse imaginário domesticado e sem sustos. Essa subcultura disfarçada de prosperidade encontrou seu autor exemplar. Não é um texto, mas um produto de loja de conveniência.

Cândido Mendes, imortal, à época da primeira candidatura de Paulo Coelho à Academia Brasileira de Letras.

O Mago - Fernando Morais; Capítulo 28 - Muhajedins de Bin Laden e marines americanos têm um gosto em comum: os livros de Paulo Coelho

O homem nunca pode parar de sonhar. O sonho é o alimento da alma, como a comida é o alimento do corpo. Muitas vezes, em nossa existência, vemos nossos sonhos desfeitos e nossos desejos frustrados, mas é preciso continuar sonhando, senão nossa alma morre e Ágape não penetra nela. Muito sangue já rolou no campo diante dos seus olhos, e aí foram travadas algumas das batalhas mais cruéis da Reconquista. Quem estava com a razão, ou com a verdade, não tem importância: o importante é saber que ambos os lados estavam combatendo o Bom Combate.

O Bom Combate é aquele que é travado porque o nosso coração pede. Nas épocas heróicas, no tempo dos cavaleiros andantes, isto era fácil, havia muita terra para conquistar e muita coisa para fazer. Hoje em dia, porém, o mundo mudou muito, e o Bom Combate foi transportado dos campos de batalha para dentro de nós mesmos.

O Bom Combate é aquele que é travado em nome de nossos sonhos. Quando eles explodem em nós com todo o seu vigor – na juventude – nós temos muita coragem, mas ainda não aprendemos a lutar. Depois de muito esforço, terminamos aprendendo a lutar, e então já não temos a mesma coragem para combater. Por causa disto, nos voltamos contra nós e combatemos a nós mesmos, e passamos a ser nosso pior inimigo. Dizemos que nossos sonhos eram infantis, difíceis de realizar, ou fruto de nosso desconhecimento das realidades da vida. Matamos nossos sonhos porque temos medo de combater o Bom Combate.

O primeiro sintoma de que estamos matando nossos sonhos é a falta de tempo – continuou Petrus. – As pessoas mais ocupadas que conheci na minha vida sempre tinham tempo para tudo. As que nada faziam estavam sempre cansadas, não davam conta do pouco trabalho que precisavam realizar, e se queixavam constantemente que o dia era curto demais. Na verdade, elas tinham medo de combater o Bom Combate.

O segundo sintoma da morte de nossos sonhos são nossas certezas. Porque não queremos olhar a vida como uma grande aventura a ser vivida, passamos a nos julgar sábios, justos e corretos no pouco que pedimos da existência. Olhamos para além das muralhas do nosso dia-dia e ouvimos o ruído de lanças que se quebram, o cheiro de suor e de pólvora, as grandes quedas e os olhares sedentos de conquista dos guerreiros. Mas nunca percebemos a alegria, a imensa Alegria que está no coração de quem está lutando, porque para estes não importa nem a vitória nem a derrota, importa apenas combater o Bom Combate.

Finalmente, o terceiro sintoma da morte de nossos sonhos é a Paz. A vida passa a ser uma tarde de Domingo, sem nos pedir grandes coisas, e sem exigir mais do que queremos dar. Achamos então que estamos maduros, deixamos de lado as fantasias da infância, e conseguimos nossa realização pessoal e profissional. Ficamos surpresos quando alguém de nossa idade diz que quer ainda isto ou aquilo da vida. Mas na verdade, no íntimo de nosso coração, sabemos que o que aconteceu foi que renunciamos à luta por nossos sonhos, a combater o Bom Combate.

Quando renunciamos aos nossos sonhos e encontramos a paz – disse ele depois de um tempo – temos um pequeno período de tranqüilidade. Mas os sonhos mortos começam a apodrecer dentro de nós, e infestar todo o ambiente em que vivemos. Começamos a nos tornar cruéis com aqueles que nos cercam, e finalmente passamos a dirigir esta crueldade contra nós mesmos.

[. ...] O que queríamos evitar no combate – a decepção e a derrota – passa a ser o único legado de nossa covardia. E um belo dia, os sonhos mortos e apodrecidos tornam o ar difícil de respirar e passamos a desejar a morte, a morte que nos livrasse de nossas certezas, de nossas ocupações, e daquela terrível paz das tardes de domingo.

Paulo Coelho - O Diário de um Mago

[...] O lugar escolhido é um improvisado auditório ao ar livre, sob uma das pontes do rio Nilo. Ninguém sabe que meios de divulgação a anfitriã terá utilizado para juntar tanta gente, mas o espanto é generalizado quando os brasileiros chegam ao local e deparam com uma massa de mais de 2 mil pessoas.

O lugar parece ser uma construção abandonada pela metade, com lajes de concreto e pontas de ferro à mostra. Lotado o recinto, as pessoas se apinham pelo vãos entre as cadeiras e galerias laterais. É incrível que se possa juntar tanta gente num dia de semana, sem um único anúncio ou notícia nos jornais, no rádio ou na tevê. Até sobre os muros e árvores que cercam o auditório há gente dependurada. Sob um calor infernal Paulo é levado por Hebba a uma pequena tribuna no canto do palco, ao lado da qual estão uma mesinha de centro e três poltronas. Quando pronuncia as primeiras palavras, em inglês – “boa tarde, obrigado pela presença de todos vocês” –, um silêncio de igreja sobrepõe-se à barulheira geral. Fala meia hora sobre sua vida, a luta para ser um escritor reconhecido, a convivência com drogas, com bruxarias, com as internações em hospícios, com a repressão política e com a crítica, para afinal reencontrar o caminho da fé e realizar seu sonho. As pessoas olham-no fixamente, como se estivessem diante não do autor de seus livros prediletos, mas de alguém que tivesse lições de vida a lhes dar.

Muitas não conseguem esconder a emoção e têm os olhos marejados de lágrimas. Quando diz seu último “muito obrigado”, percebe-se que Paulo também chora.

Os aplausos parecem não ter fim. Sem conter o choro, o brasileiro agradece várias vezes, cruzando os braços no peito e fazendo uma leve inclinação para a frente. As pessoas ficam de pé e não param de bater palmas. Uma garota vestida de chador escuro sobe no palco e entrega a ele um buquê de rosas. Mesmo habituado a situações semelhantes, o escritor parece sinceramente emocionado e sem saber como reagir. O público continua de pé, aplaudindo. Ele dá meia-volta rapidamente, se esconde atrás das cortinas por um instante, vira os olhos para o alto, se persigna e repete pela enésima vez a oração de agradecimento a são José, o santo que quase sessenta anos atrás abençoara seu renascimento.

Mobilizar e comover multidões pelo mundo afora, a ponto de ter editores piratas se digladiando para publicar suas obras até mesmo num país de enormes contingentes de pobres e analfabetos, como o Egito, não foi algo que caiu do céu para Paulo Coelho. É verdade, o sonho de ser um escritor lido no mundo inteiro e de ter “fama, fortuna e poder” conduziu sua vida, de forma pertinaz, desde a adolescência. Mas esse sonho só começaria a se realizar em 1987, quando, já quarentão, publicou O Diário de um Mago. Em menos de um ano o autor havia vendido 40 mil exemplares do célebre relato de sua trajetória pelo Caminho de Santiago. As vendas seriam poderosamente alavancadas pelo segundo livro, O Alquimista, editado em 1988. No final do ano seguinte os dois juntos haviam batido na astronômica cifra de meio milhão de exemplares. O sucesso transformou Paulo Coelho em um nome nacional e abriu as portas de editoras nos Estados Unidos, da Europa e de outras paragens. Vinte anos depois de lançar seu primeiro livro fora do Brasil, ele seria o único autor vivo a ser traduzido em mais línguas do que William Shakespeare.



Até escrever o Diário de um Mago, porém, o garoto magricela criado nos bairros do Botafogo e da Gávea, no Rio, percorreria uma trajetória mirabolante. Aluno rebelde e relapso, sob os rigores de um pai severíssimo e implacável, acabou sendo internado à força por três vezes num hospício, e submetido a brutais sessões de eletrochoque. Confuso com sua própria identidade sexual, tomou a iniciativa de ir para a cama com homens, para só então decidir que aquele não era seu caminho. O jovem com tantas dificuldades para lidar com as mulheres na adolescência daria lugar, depois de adulto, a um colecionador de conquistas amorosas – algumas das quais transbordariam para a mídia. Fez de tudo nesse terreno, como participar de orgias e praticar sexo com uma garota num cemitério. Sua peculiar forma de encarar e relacionar-se com as mulheres não impediu, nem impede, que mantenha um sólido casamento de 28 anos com a artista plástica Christina Oiticica, de quem, assegura ele, nada nem ninguém fará “jamais” com que se separe. O homem que há mais de três décadas deixou a cocaína e há muitos anos não fuma maconha chegou a mergulhar fundo, e por muito tempo, no mundo das drogas, sem excluir praticamente nada. O tédio diante dos estudos formais, razão de seu permanente insucesso escolar, não impediu que Paulo se tornasse voraz consumidor de livros. A leitura indiscriminada, que incluía clássicos irretocáveis e bobagens sem valor, ajudaria sua incursão no mundo com que ele sonhava, e que começou pelo teatro infantil com pequenos papéis não-remunerados, para com o tempo arriscar-se a, já profissional, escrever e depois também dirigir e produzir pequenos espetáculos. Paralelamente, começou a viajar e arranjou bicos na imprensa alternativa – e foi como editor de uma revisteca underground que seria procurado por alguém que marcaria sua vida, o hoje mitológico roqueiro Raul Seixas, de quem viria a ser parceiro e letrista durante seis anos e 41 canções. Com isso ganhou mais fama, dinheiro e poder do que sonhara até então – e muito, muito menos do que ainda viria a ganhar.

Antes e durante a vigência da parceria com Raul, a ânsia permanente por novas experiências, de um lado, e sua tendência onívora à leitura, por outro, levaram-no a mergulhos assustadores. Ainda adolescente, flertou com o suicídio e acabou degolando um animal doméstico para que “o Anjo da Morte” tivesse alguma alma para levar que não fosse a sua. Já adulto, apoiou a decisão de uma namorada de se suicidar, traumatizada após abortar um filho dele. Ao transpor as fronteiras do misterioso universo das trevas ele chegaria a perigosos extremos e incorreria em práticas quase inacreditáveis, como ter como escravo, com contrato assinado, um jovem estudante que se iniciava no esoterismo. Fazia invocações ao demônio enquanto tomava banhos de ervas, e chegou a propor um pacto formal ao Diabo: entregar sua alma em troca de poderes absolutos. Sua carreira no satanismo chegou ao fim após um pavoroso e arrepiante episódio que durou doze intermináveis horas e que Paulo descreve como sendo seu encontro com o Demônio. A terrível visão, compartilhada pela namorada, representaria o início do retorno de Paulo à fé cristã incutida pelos rigorosos padres jesuítas do colégio em que fora educado. Ainda assim continuava acreditando ter encontrado formas de atingir o sobrenatural e agir sobre as forças da natureza, fazendo, por exemplo, ventar e chover com a força do pensamento.

O fato de ter sido um adolescente e depois um jovem adulto alienado e infenso à política não impediu que fosse preso duas vezes pela ditadura militar e, num terceiro episódio, seqüestrado pelo DOI-Codi, o mais brutal instrumento da repressão – o que lhe deixou profundas marcas e acentuou traços de uma ancestral paranóia. Outro tipo de perseguição, o da crítica brasileira, que, com raríssimas exceções, despreza seus livros e o trata como subliterato, não parece afetá-lo. Ele só se declara indignado quando as restrições a seu trabalho implicam menosprezo a uma entidade que cultiva com dedicação plena e paciência oriental: seus leitores. Para contrabalançar o desdém da crítica brasileira, não faltam a Paulo manifestações em sentido contrário para exibir.

E não se fala, aqui, de sua eleição para a Academia Brasileira de Letras ou mesmo de condecorações indiscutivelmente honrosas que lhe foram conferidas no exterior, como a Légion d’Honneur da França, mas de um maciço, consistente elenco de elogios recebidos de críticos de dezenas de países, entre os quais o venerado escritor e semiólogo italiano Umberto Eco.

Esses fatos da vida de Paulo são apenas uma amostra modesta da trajetória extraordinária de um brasileiro cujo trânsito internacional só se compara ao de Pelé. Por um triz, no entanto, nada disso teria sido possível, pois Paulo nasceu morto.

Fernando Morais - O Mago




PRÓLOGO

– E que, diante da Face Sagrada de RAM, você toque com suas mãos a Palavra da Vida, e receba tanta força que se torne testemunha dela até os Confins da Terra!

O Mestre levantou a minha nova espada para o alto, mantendo-a dentro da bainha. As chamas na fogueira crepitaram, um presságio favorável, indicando que o ritual devia seguir adiante. Então eu me abaixei e, com as mãos nuas, comecei a cavar a terra a minha frente.

Era a noite do dia 2 de janeiro de 1986, e nós estávamos no alto de uma das montanhas da Serra do Mar perto da formação conhecida como Agulhas Negras. Além de mim e de meu Mestre estavam também minha mulher, um discípulo meu, um guia local, e um representante da grande fraternidade que congregava as ordens esotéricas em todo o mundo, e que era conhecida pelo nome de Tradição. Todos os cinco – inclusive o guia, que já tinha sido avisado previamente do que iria acontecer – estavam participando de minha ordenação como Mestre da Ordem de RAM.

Terminei de escavar um buraco raso, mas comprido, no solo. Com toda solenidade toquei a terra, pronunciando as palavras rituais. Minha mulher então se aproximou e me entregou a espada que eu tinha utilizado por mais de dez anos, e que tinha me auxiliado tanto em centenas de Operações Mágicas durante aquele tempo. Eu depositei a espada no buraco que havia feito. Depois, joguei a terra por cima e aplainei de novo o terreno. Enquanto fazia isto me lembrava das provas por que havia passado, das coisas que tinha conhecido e dos fenômenos que era capaz de provocar simplesmente porque eu tinha comigo aquela espada tão antiga e tão minha amiga. Agora ela ia ser devorada pela terra, o ferro de sua lâmina e a madeira de seu cabo servindo novamente de alimento para o local de onde havia tirado tanto Poder.

O Mestre se aproximou e colocou minha nova espada diante de mim, em cima do local onde eu havia enterrado a antiga. Todos então abriram os braços e o Mestre, utilizando seu Poder, fez com que em volta de nós se formasse uma espécie de luz estranha, que não clareava, mas que era visível, e fazia com que o vulto das pessoas tivesse uma cor diferente do amarelo projetado pela fogueira. Então, desembainhando sua própria espada, tocou nos meus ombros e na minha testa, enquanto dizia:

– Pelo Poder e pelo Amor de RAM, eu te nomeio Mestre e Cavaleiro da Ordem, hoje e para o resto dos dias desta tua vida. R de Rigor, A de Amor, M de Misericórdia; R de Regnum, A de Agnus, M de Mundi. Quando você tocar sua espada, que ela jamais fique muito tempo na bainha, porque há de enferrujar. Mas quando ela sair da bainha, que ela jamais volte sem antes haver feito um Bem, aberto um Caminho, ou bebido o sangue de um Inimigo.

E com a ponta de sua espada feriu levemente minha testa. A partir daquele momento eu não precisava mais ficar em silêncio. Não precisava esconder aquilo do que era capaz, nem ocultar os prodígios que havia aprendido a realizar no caminho da Tradição. A partir daquele momento eu era um Mago.

Estendi a mão para pegar minha nova espada, de aço que não se destrói e de madeira que a terra não consome, com seu punho preto e vermelho, e sua bainha preta. Porém, na hora que minhas mãos tocaram na bainha e que eu me preparava para trazê-la até mim, o Mestre deu um passo a frente e com toda a violência pisou nos meus dedos, fazendo com que eu gritasse de dor e largasse a espada.

Olhei para ele sem entender nada. A luz estranha havia sumido e o rosto do Mestre tinha agora a aparência fantasmagórica que as chamas da fogueira desenhavam.

Ele me olhou friamente, chamou minha mulher e lhe entregou a nova espada. Depois virou-se para mim e disse:

– Afasta sua mão que o ilude! Porque o caminho da Tradição não é o caminho dos poucos escolhidos, mas o caminho de todos os homens! E o Poder que você pensa que tem não vale nada, porque não é um Poder que se divida com os outros homens! Você devia ter recusado a espada, e se você tivesse feito isto ela lhe seria entregue, porque seu coração estava puro. Mas como eu temia, no momento sublime você escorregou e caiu. E por causa da sua avidez, terá que caminhar novamente em busca de sua espada. E por causa de sua soberba, terá que buscá-la entre os homens simples. E por causa de seu fascínio pelos prodígios, terá que lutar muito para conseguir de novo aquilo que tão generosamente ia lhe sendo entregue.

Foi como se o mundo tivesse fugido dos meus pés. Eu continuei ajoelhado, atônito, sem querer pensar em nada. Uma vez que já havia devolvido minha antiga espada à terra, não poderia pegá-la de volta. E uma vez que a nova não me havia sido entregue, eu estava de novo como alguém que tivesse começado naquele instante, sem poder e sem defesa. No dia de minha suprema Ordenação Celeste, a violência de meu Mestre, pisando meus dedos, me devolvia ao mundo do Ódio e da Terra.

O guia apagou a fogueira e minha mulher veio até mim e me ajudou a levantar. Ela portava minha nova espada nas mãos, mas pelas regras da Tradição eu jamais poderia tocá-la sem permissão do meu Mestre. Descemos em silêncio pelo meio da mata, seguindo a lanterna do guia, até chegarmos na pequena estrada de terra onde os carros estavam estacionados.

Ninguém se despediu de mim. Minha mulher colocou a espada na mala do carro e deu a partida no motor. Ficamos um longo tempo em silêncio, enquanto ela dirigia devagar, contornando os buracos e as valas do caminho.

– Não se preocupe – disse ela, tentando me animar um pouco. – Tenho certeza de que você irá consegui-la de volta.

Perguntei-lhe o que o Mestre havia lhe dito.

– Ele me falou três coisas. Primeiro, que ele devia ter levado um agasalho, porque ali em cima fazia muito mais frio do que ele estava pensando. Segundo, que nada daquilo tinha sido uma surpresa para ele, e que já havia acontecido muitas outras vezes, com muitas outras pessoas que tinham chegado até onde você chegou. E terceiro, que sua espada estaria esperando por você numa hora certa, numa data certa, em algum ponto de um caminho que você terá que percorrer. Eu não sei nem a data nem a hora. Ele me falou apenas do local onde devo escondê-la para que você a encontre.

– E qual é este caminho? – perguntei, nervoso.

– Ah, isto ele não explicou muito bem. Disse apenas que você procurasse no mapa da Espanha, uma rota antiga, medieval, conhecida como o Estranho Caminho de Santiago.

Paulo Coelho - O Diário de um Mago


Sunday, December 28, 2008

Fomos para a cama e Soraya adormeceu com a cabeça apoiada no meu peito. No escuro do nosso quarto, fiquei acordado, mais uma vez com insônia. Acordado. E sozinho, com os meus próprios demônios.
Lá pelas tantas, no meio da noite, levantei para ir até o quarto de Sohrab. Fiquei parado junto da cama, olhando para ele, e vi alguma coisa aparecendo por debaixo do travesseiro. Peguei para ver. Era a foto Polaroid tirada por Rahim Khan, aquela que eu tinha lhe dado na noite em que estávamos sentados perto da mesquita Shah Faisal. Aquela em que Hassan e Sohrab estão parados, um ao lado do outro, apertando os olhos por causa do sol, e sorrindo como se o mundo fosse um lugar bom e justo. Perguntei com meus botões quanto tempo Sohrab teria ficado deitado na cama fitando aquela foto, virando-a e revirando-a nas mãos.
Olhei para o retrato. "Seu pai era um homem dividido entre duas pessoas", dizia Rahim Khan na sua carta. Eu era a metade autorizada, a metade legitimada e socialmente aceita, a encarnação involuntária da culpa de baba. Olhei para Hassan, com o sol lhe batendo no rosto e revelando aquela falha de dois dentes da frente. A outra metade de baba. A que não era autorizada, não era privilegiada. A metade que herdou o que havia de mais nobre e puro em baba. A metade que, talvez, lá no fundo do coração, baba considerasse o seu verdadeiro filho.
Botei a foto de volta no lugar de onde a tirei. E foi então que me dei conta de algo: que essa última idéia que me passou pela cabeça não tinha provocado nenhuma dor. Ao fechar a porta do quarto de Sohrab, fiquei imaginando se era assim que brotava o perdão, não com as fanfarras da epifania, mas com a dor juntando as suas coisas, fazendo as suas trouxas e indo embora, sorrateira, no meio da noite.

O Caçador de Pipas - Khaled Hosseini

[...] Mas existe um provérbio indiano que diz “senta à beira do rio e espera, o cadáver de teu inimigo não tardará a passar”.

Umberto Eco - Pós-Escrito a O Nome da Rosa

Friday, December 26, 2008

for killing the bird of good luck


Flor da Idade
Chico Buarque

A gente faz hora, faz fila na vila do meio dia
Pra ver Maria
A gente almoça e só se coça e se roça e só se vicia
A porta dela não tem tramela, a janela é sem gelosia
Nem desconfia
Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor

Na hora certa, a casa aberta, o pijama aberto, a família
A armadilha
A mesa posta de peixe, deixe um cheirinho da sua filha
Ela vive parada no sucesso do rádio de pilha
Que maravilha
Ai, o primeiro copo, o primeiro corpo, o primeiro amor

Vê passar ela, como dança, balança, avança e recua
A gente sua
A roupa suja da cuja se lava no meio da rua
Despudorada, dada, à danada agrada andar seminua
E continua
Ai, a primeira dama, o primeiro drama, o primeiro amor

Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo
Que amava Juca que amava Dora que amava

Carlos que amava Dora que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava Dito que amava Rita que amava

Carlos amava Dora que amava Pedro que amava tanto que amava
a filha que amava Carlos que amava Dora que amava toda a quadrilha
Que amava, que amava
Que amava toda a quadrilha
Que amava, que amava
Que amava toda a quadrilha...

Thursday, December 25, 2008


Prólogo

O monomito

1. Mito e sonho

Quer escutemos, com desinteressado deleite, a arenga (semelhante a um sonho) de algum feiticeiro de olhos avermelhados do Congo, ou leiamos, com enlevo cultivado, sutis traduções dos sonetos do místico Lao-tse; quer decifremos o difícil sentido de um argumento de Santo Tomás de Aquino, quer ainda percebamos, num relance, o brilhante sentido de um bizarro conto de fadas esquimó, é sempre com a mesma história — que muda de forma e não obstante é prodigiosamente constante — que nos deparamos, aliada a uma desafiadora e persistente sugestão de que resta muito mais por ser experimentado do que será possível saber ou contar.

Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos. Não seria demais considerar o mito a abertura secreta através da qual as inexauríveis energias do cosmos penetram nas manifestações culturais humanas. As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e da tecnologia e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do círculo básico e mágico do mito.

O prodígio reside no fato de a eficácia característica, no sentido de tocar e inspirar profundos centros criativos, estar manifesta no mais despretensioso conto de fadas narrado para fazer a criança dormir — da mesma forma como o sabor do oceano se manifesta numa gota ou todo o mistério da vida num ovo de pulga. Pois os símbolos da mitologia não são fabricados; não podem ser ordenados, inventados ou permanentemente suprimidos. Esses símbolos são produções espontâneas da psique e cada um deles traz em si, intacto, o poder criador de sua fonte.

Qual o segredo dessa visão intemporal? De que camada profunda vem ela? Por que é a mitologia, em todos os lugares, a mesma, sob a variedade dos costumes? E o que ensina essa visão?

Atualmente, muitas ciências contribuem para a análise desse enigma. Os arqueólogos pesquisam as ruínas do Iraque, de Honan, de Creta e de Yucatán. Os etnólogos questionam os Ostiaks do rio Ob, os Boobies de Fernando Pó. Uma geração de orientalistas nos desvelou recentemente os sagrados escritos do Oriente, assim como as fontes pré-hebraicas das nossas Sagradas Escrituras. E, ao mesmo tempo, outro grupo numeroso de pesquisadores, dando continuidade a pesquisas iniciadas no século passado no campo da psicologia do folclore, tem procurado estabelecer as bases psicológicas da linguagem, do mito, da religião, do desenvolvimento artístico e dos códigos morais.

Todavia, o que mais nos chama a atenção são as revelações manifestas na clínica de doentes mentais. Os ousados e verdadeiramente marcantes escritos da psicanálise são indispensáveis ao estudioso da mitologia. Isso ocorre porque, como quer que encaremos as interpretações detalhadas, e por vezes contraditórias, de casos e problemas específicos, Freud, Jung e seus seguidores demonstraram irrefutavelmente que a lógica, os heróis e os feitos do mito mantiveram-se vivos até a época moderna. Na ausência de uma efetiva mitologia geral, cada um de nós tem seu próprio panteão do sonho — privado, não reconhecido, rudimentar e, não obstante, secretamente vigoroso. A última encarnação de Édipo, a continuidade do romance entre a Bela e a Fera, interrompidas esta tarde na esquina da 42th Street com Fifth Avenue, esperam que o semáforo mude.

"Sonhei", escreveu um jovem americano ao autor de uma coluna de jornal, "que estava mudando as telhas do teto de minha casa. De repente, ouvi a voz do meu pai no solo, chamando por mim. Virei-me abruptamente para vê-lo melhor, e, quando o fiz, o martelo escapou-me das mãos, escorregou pelo telhado e desapareceu na extremidade. Ouvi um enorme barulho, semelhante à queda de um corpo".

"Terrivelmente assustado, desci pela escada até o solo. Lá estava meu pai, morto, com sangue espalhado por toda a cabeça. Fiquei com o coração em pedaços e comecei a chamar minha mãe, em meio aos soluços. Ela saiu de casa e colocou os braços em torno de mim. 'Não se preocupe, filho, foi um acidente', disse ela. 'Sei que você tomará conta de mim, mesmo que ele se vá.' Enquanto ela me beijava, acordei".

"Sou o filho mais velho e tenho vinte e três anos de idade. Estou separado de minha mulher há um ano; por alguma razão, não nos demos bem. Amo profundamente meus pais e jamais tive problemas com papai, embora ele tenha insistido em que eu voltasse a viver com minha mulher, mesmo que eu não pudesse ser feliz com ela. E jamais o serei." O marido fracassado revela, aqui, com uma inocência verdadeiramente prodigiosa, que, em lugar de dirigir suas energias espirituais para o amor e para os problemas do casamento, permanecia, nos recessos secretos de sua imaginação, na situação dramática, nos dias de hoje ridiculamente anacrônica, do seu primeiro e único envolvimento emocional, a situação do triângulo tragicômico da infância: o filho contra o pai pelo amor da mãe. Ao que parece, as mais permanentes disposições da psique humana são aquelas geradas pelo fato de permanecermos, no âmbito do reino animal, a espécie que fica mais tempo junto ao seio materno. Os seres humanos nascem cedo demais; quando o fazem, estão inacabados e ainda não estão preparados para o mundo. Em conseqüência, toda a defesa que têm contra um universo de perigos é a mãe, sob cuja proteção ocorre um prolongamento do período intrauterino.

Daí decorre o fato de a criança dependente e sua mãe formarem, ao longo de meses após a catástrofe do nascimento, uma unidade dual, não apenas do ponto de vista físico, como também no plano psicológico. Toda ausência prolongada da mãe provoca tensão na criança e conseqüentes impulsos agressivos; da mesma maneira, quando se vê obrigada a controlar a criança, a mãe desperta nela respostas agressivas. Portanto, o primeiro objeto da hostilidade da criança é idêntico ao primeiro objeto do seu amor; seu primeiro ideal (que daí por diante se mantém como base inconsciente de todas as imagens de bênção, verdade, beleza e perfeição) é a unidade dual entre a Madona e o Bambino.

O desafortunado pai é a primeira intrusão radical de outra ordem de realidade na beatitude dessa reafirmação terrena da excelência da situação no interior do útero; assim sendo, o pai é vivenciado primariamente como um inimigo.

Para ele é transferida a carga de agressão originalmente vinculada à mãe "má" ou ausente. Permanece com a mãe (normalmente) o desejo vinculado à mãe "boa", ou presente, nutridora e protetora. Essa fatídica distribuição infantil de impulsos de morte (thanatos: destrudo) e amor (eros: libido) constitui o fundamento do agora celebrado complexo de Édipo, que Sigmund Freud, há uns cinqüenta anos, apontou como a grande causa do fracasso do adulto no sentido de comportar-se como ser racional. Como disse o dr. Freud: "O rei Édipo, que assassinou o pai, Laio, e desposou a mãe, Jocasta, nos mostra, tão-somente, a realização dos nossos próprios desejos infantis. Todavia, mais afortunados do que ele, fomos bem-sucedidos, na medida em que não nos tornamos psiconeuróticos, ao desvincular nossos impulsos sexuais das nossas [respectivas] mães e ao esquecer nosso ciúme com relação aos nossos [respectivos] pais". Ou, como ele mesmo afirma: "Toda desordem patológica da vida sexual pode ser considerada, com propriedade, uma inibição do desenvolvimento".

"Quantos homens em sonhos não viram a si mesmos / Dormindo com a própria mãe; mas bem mais fácil / É a vida daquele que dessas coisas não cogita." *

A lamentável situação da esposa cujo marido tem sentimentos que, em lugar de amadurecer, permanecem aprisionados ao romance da infância pode ser avaliada a partir do aparente absurdo presente em outro sonho moderno; e, nesse ponto, começamos a sentir, na realidade, que estamos penetrando no domínio do mito antigo, mas com uma curiosa reviravolta.

"Sonhei", escreveu uma mulher perturbada, "que um grande cavalo branco me seguia para onde quer que eu me dirigisse. Tive medo dele e o espantei. Olhei para trás para ver se ele ainda me seguia e ele parecia ter-se tornado um homem. Disse-lhe para ir ao barbeiro rapar a crina, o que ele fez. Quando saiu, tinha aparência de homem, mas sua face e membros inferiores eram de cavalo. Continuou a me seguir. Aproximou-se mais de mim e acordei".

"Sou uma mulher casada de trinta e cinco anos e tenho dois filhos. Estou casada há catorze anos e tenho certeza de que meu marido me é fiel."

O inconsciente envia toda espécie de fantasias, seres estranhos, terrores e imagens ilusórias à mente — seja por meio dos sonhos, em plena luz do dia ou nos estados de demência; pois o reino humano abarca, por baixo do solo da pequena habitação, comparativamente corriqueira, que denominamos consciência, insuspeitadas cavernas de Aladim. Nelas há não apenas um tesouro, mas também perigosos gênios: as forças psicológicas inconvenientes ou objeto de nossa resistência, que não pensamos em integrar — ou não nos atrevemos a fazê-lo — à nossa vida. E essas forças podem permanecer insuspeitadas ou, por outro lado, alguma palavra casual, o odor de uma paisagem, o sabor de uma xícara de chá ou algo que vemos de relance pode tocar uma mola mágica, e eis que perigosos mensageiros começam a aparecer no cérebro. Esses mensageiros são perigosos porque ameaçam as bases seguras sobre as quais construímos nosso próprio ser ou família.

Mas eles são, da mesma forma, diabolicamente fascinantes, pois trazem consigo chaves que abrem portas para todo o domínio da aventura, a um só tempo desejada e temida, da descoberta do eu. Destruição do mundo que construímos e no qual vivemos, assim como nossa própria destruição dentro dele; mas, em seguida, uma maravilhosa reconstrução, de uma vida mais segura, límpida, ampla e completamente humana — eis o encanto, a promessa e o terror desses perturbadores visitantes noturnos, vindos do reino mitológico que carregamos dentro de nós.

A psicanálise, a moderna ciência da interpretação dos sonhos, nos ensinou a ficar atentos com relação a essas imagens insubstanciais. Também nos ensinou a forma de deixá-las atuar.

Permite-se que as perigosas crises do autodesenvolvimento se desenrolem sob o olhar protetor de um experiente iniciado na natureza e na linguagem dos sonhos, que desempenha a função e o papel de um antigo mistagogo, ou guia dos espíritos, o curandeiro iniciador dos primitivos santuários florestais das provas e da iniciação. O médico é o moderno mestre do reino do mito, o guardião da sabedoria a respeito de todos os caminhos secretos e fórmulas poderosas.

Seu papel equivale precisamente ao do Velho Sábio, presença constante nos mitos e contos de fadas, cujas palavras ajudam o herói nas provas e terrores da fantástica aventura. É ele que aparece e indica a brilhante espada mágica que matará o dragão-terror; ele conta sobre a noiva que espera e sobre o castelo dos mil tesouros, aplica o bálsamo curativo nas feridas quase fatais e, por fim, leva o conquistador de volta ao mundo da vida normal após a grande aventura na noite encantada.

*. Sófocles, Édipo Rei, 981-983.
Apontou-se que o pai também pode ser experimentado como protetor, e a mãe, portanto, como tentação. Este é o caminho que leva de Édipo a Hamlet: "Oh! meu Deus! Poderia ficar confinado numa casca de noz e, mesmo assim, considerar-me-ia rei do espaço infinito, não fossem os maus sonhos que tenho". (Hamlet, segundo ato, cena II). "Todos os neuróticos", escreve o dr. Freud, "são Édipo ou Hamlet."
No que se refere à filha (que é um caso um pouco mais complicado), a passagem seguinte servirá aos propósitos da presente exposição sumária: "Sonhei a noite passada que meu pai apunhalou minha mãe no coração. Ela morreu. Eu sabia que ninguém o acusava pelo que tinha feito, apesar de eu estar chorando amargamente. O sonho pareceu mudar, e ele e eu parecíamos estar indo viajar juntos e eu estava muito feliz". Eis o sonho de uma jovem solteira de vinte e quatro anos (Wood, op. cit., p. 130).

Joseph Campbell - O Herói de Mil Faces - Tradução de Adail Ubirajara Sobral

Wednesday, December 24, 2008

His shipmates cry out against the ancient Mariner, for killing the bird of good luck.


  • Sabe por que choveu tanto nos shows da Madonna? Porque São Pedro ficou bravo que ela andou pegando o menino Jesus. Só a Madonna pra ficar com um modelo chamado Jesus. E é Jesus de filme americano: magro e de olho verde. E a situação se inverteu: em vez de Jesus estar no colo da Madonna, ela é que sentou no colo dele!

  • E o Lula vai comprar um submarino do Sarkozy. Perfeito! Se o Brasil afundar, já temos submarino. Prevenção contra a crise!
José Simão - Folha Ilustrada

Monday, December 22, 2008

Diz-nos Italo Calvino
nas suas Seis Propostas que
um dos ideais da poesia
é a Leveza - vista aí

no sentido que realce
o que subjaz, intrínseco,
ao aparente paradoxo
que há entre o que é leve e o que pesa -

e à guisa de argumento
usa a metáfora da Medusa
que petrifica a quem ousa
lançar-lhe um olhar direto

Ser um bloco de concreto
- face do peso da vida -
tem sua contrapartida
na natureza do objeto

que Perseu, não por acaso,
recebe das mãos das Musas:
um escudo que reluz a
tal ponto, que não só

protege como projeta
a hórrida imagem da Górgona.
Veja a vantagem de um cego:
escapa ao flerte enquanto luta

guiado pelo reflexo
e leva a termo a batalha
talhando o monstro, à navalha,
na altura do pescoço.

Redivivo em herói o moço
parte, retoma a jornada
- as alpercatas aladas -
leve, levando na bolsa o

crânio recém degolado
fardo arrancado do corpo
que lançará em torpor
pétreo, rígido, pesado

a quem olhos lhe ofereça
basta que se o erga do alforje.
A partir de agora rege
Perseu mais uma cabeça


O que diferencia o artista da pessoa comum? A vaidade.

Evidente que gênios também os há. Às vezes, simultaneamente, artistas e gênios. Estes, quando o são, assim como os matemáticos, fotógrafos, carpinteiros gênios, passam pela vaidade, levam-na consigo ou não, mas sua obra é que permanece. Aos que não somos gênios, resta a semelhança na vaidade e a possibilidade de tê-los como inspiração. Fingir o gênio, como se fôssemos. Se vaidade já a temos que nos venha também o rigor, a obstinação, a grande paciência do gênio. Como por esse meio não se adquire um grande talento - o aspecto do gênio ao qual não teremos acesso - tenhamos pois a humildade de reconhecer nossa insignificante pequenez (ainda que vaidosa) e, quem sabe, advenha daí, justamente, qualquer experiência iluminatória.

Na Aurora, de Murnau, o personagem que sonha com uma vida nova precisa retornar à origem de sua auto-imagem, volta mítica, retorno à idéia primeira de identidade. Sua "vida nova" é desejo transposto em fantasia, no sentido psicanalítico, desejo não sublimado, realizado apenas em imaginação e que, inevitavelmente, se confrontado com a realidade, deteriora, distorce. Este o aprendizado da maturidade: resignar-se aos limites do real, estar conforme, separar realidade da fantasia. Resulta daí o conformismo, sintoma na maturidade do luto não resolvido da infância perdida.

E o artista, que precisa resguardar em si o jogo lúdico do faz-de-conta, o mundo mental que se transporta para o mundo concreto através de seus pequenos objetos-idéias, castelos de sonho, sob pena, caso contrário, de enrijecer-se perante a realidade que pretende realçar, desvelar? Como amadurecer, enquanto artista? Talvez todo artista, gênio ou medíocre, possa ter isto para partilhar, a experiência infantil preservada. Se a vaidade é a onipotência infantil arraigada no adulto, o artista, na tentativa de amadurecer, corre permanente risco de, como na piada, jogar fora a criança junto com a água da bacia. Estátua de pedra que olhou nos olhos a realidade, o homem comum carece da experiência artística que lhe forneça as sandálias aladas e o escudo de Perseu. A imagem projetada da Medusa é o que o artista tem para oferecer em tempos pós-míticos. Mas, dilema! perigo! trágico destino, a ele mesmo cabe a travessia que o pode levar ou não ao outro lado do labirinto e uma Górgona inteiramente sua para o flerte. Que espessura tem o fio de Ariadne onde terá de se dependurar o grosseiro artista? Como entender o mecanismo do mundo e não cair vítima do funcionamento de sua engrenagem, nós, paupérrimos artistas, nós que não somos, nem nunca seremos, gênios? 12 / 10 / 2001

Sunday, December 21, 2008

[...] sempre serei como uma criança para tantas coisas, mas uma dessas crianças que desde o início levam, consigo, o adulto, de modo que quando o monstrinho chega verdadeiramente à idade adulta ocorre que, por sua vez, esse leva consigo a criança, e no meio do caminho se dá uma coexistência poucas vezes pacífica de pelo menos duas aberturas do mundo. Isso [...] aponta, em todo caso, para um temperamento que não renunciou à visão pueril como preço da visão adulta, e essa justaposição [...] manifesta-se no sentimento de não estar completamente em qualquer das estruturas, das teias que a vida arma e nas quais somos, ao mesmo tempo, aranha e mosca.

Julio Cortázar - Del sentimiento de no estar del todo - La vuelta al día en ochenta mundos.

Citado por Jorge Larrosa em Pedagogia Profana.

Saturday, December 20, 2008

Estratégia sinistra
DRAUZIO VARELLA

Finalmente, os fabricantes de "cigarros light" ou com "baixos teores de alcatrão" poderão ser processados por propaganda enganosa. Nos Estados Unidos, prezado leitor, aqui ninguém se atreve a mexer com eles.
O caso foi levado à Suprema Corte americana graças a uma ação movida por três fumantes das assim chamadas versões "light" das marcas Marlboro e Cambridge, que se julgaram prejudicados pela propaganda de que esse tipo de cigarro não faria mal à saúde.
A decisão dos juízes permitirá que qualquer fumante americano processe as grandes companhias.
Os cigarros "light", "ultralight" ou de "baixos teores" foram lançados nos anos 1960, quando não havia mais como negar a relação entre fumo, câncer, doenças cardiovasculares, pulmonares e muitas outras.
A estratégia da indústria foi inventar os cigarros de "baixos teores" e criar a imagem de que seriam seguros. Para o consumidor, a lógica pareceu razoável: se o alcatrão provoca câncer, quanto menos alcatrão mais saudável.
Para completar a trama, adicionaram ao fumo um mundo de compostos químicos destinados a disfarçar o paladar aversivo da nicotina e do alcatrão. O objetivo era um só: viciar as crianças em idade mais precoce e conquistar o público feminino.
Deu certo: os adolescentes começaram a fumar cada vez mais cedo, e milhões de mulheres aderiram às marcas "light".
Essa estratégia sinistra foi apoiada por campanhas publicitárias incessantes pela TV, rádios, jornais, outdoors e revistas, com o objetivo de associar o fumo às práticas esportivas, à saúde e aos anseios de liberdade dos jovens que acabavam de ter acesso à pílula anticoncepcional.
Os países com governantes mais preparados do que os nossos perceberam as dimensões da tragédia social e dos custos da epidemia de fumo para o sistema de saúde e proibiram a propaganda por rádio e TV, a partir dos anos 1970. Nós só o fizemos em 2000, por iniciativa do então ministro da saúde, José Serra.
Quer dizer, assistimos impassíveis ao crime continuado que as companhias internacionais praticaram durante décadas: viciar crianças e adolescentes com uma droga que provoca a dependência química mais avassaladora que a medicina conhece. Você aceitaria, leitor, que quadrilhas internacionais fizessem propaganda pela TV de uma versão "light" de cocaína ou crack?
Admitiria que eles utilizassem as técnicas publicitárias mais avançadas para convencer sua filha de 15 anos que a tal droga melhora a performance esportiva, confere charme às usuárias, além de trazer liberdade sem prejudicar a saúde?
Gostaria que, a peso de ouro, esses crápulas pressionassem sistematicamente os meios de comunicação para impedir a divulgação de qualquer opinião ou estudo que provasse o contrário?
Hoje sabemos que os cigarros de "baixos teores" são muito piores do que os mais fortes. A nicotina age em receptores localizados nos neurônios cerebrais. Quando a droga é excretada, esses receptores ficam vazios e o fumante entra em crise de abstinência. Para aplacá-la é preciso acender o próximo cigarro para que a nicotina caia na circulação sangüínea através dos pulmões e chegue aos neurônios em quantidade suficiente para ocupar todos os receptores disponíveis.
Quem controla a quantidade de nicotina a ser administrada em cada tragada é o cérebro do fumante. Se o cigarro é forte, poucas tragadas fornecem a nicotina necessária. Quando é fraco, elas se tornam mais profundas, demoradas, e o intervalo entre uma e outra encurta. Como conseqüência, a fuligem e os 6.000 compostos químicos resultantes da combustão entram em contato mais íntimo e destruidor com os brônquios e alvéolos pulmonares.
Os fabricantes sabiam disso? Não os menospreze, leitor, estamos falando de grandes organizações criminosas chefiadas por malfeitores profissionais.
Não apenas sabiam, como contrataram especialistas para ludibriar as máquinas em que são feitos os testes de controle das marcas de cigarros.
Em documentação interna datada de 1983, tornada pública por ordem judicial, executivos da British American Tobacco (controladora da Souza Cruz, no Brasil) recomendavam a seus subalternos: "O ideal é que os cigarros de baixos teores não pareçam diferentes dos normais. Eles devem ser capazes de liberar 100% mais nicotina do que o fazem nas máquinas de fumar".


Crítica/"Antologia Casseta Popular"

Humor destoa do "oba-oba" da cena carioca

ANDRÉ BARCINSKI

Quem diz ter saudades do Rio dos anos 80 é porque não estava lá. Blitz, Ritchie, Bete Balanço, Asdrúbal Trouxe o Trombone... Era tudo muito colorido e muito, muito chato. Naquele marasmo pré-banda larga, um dos pontos altos do mês era a chegada da Casseta Popular e do Planeta Diário às bancas.
O Planeta Diário era mais politizado. A Casseta era sua prima mais escrachada e escatológica. Enquanto o Planeta publicava títulos como "Depois de ir à China, Sarney irá à merda", a Casseta não tinha vergonha de botar na capa uma fotomontagem do então candidato à presidência Fernando Collor, pelado, sob o título: "Botamos a nu o caçador de maracujás". A ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, aparecia vestida de dominatrix: "Louca por um arrocho: ministra quer tirar o atraso".
A Casseta não poupava ninguém. Destoava do oba-oba indulgente e da brodagem que ainda dominam a cena cultural carioca. Atores, cantores, jornalistas culturais, todos eram esculhambados sem dó. Sobrou também para poetas do baixo Gávea, estudantes da PUC, marombeiros de Copacabana e farofeiros do subúrbio. Oswaldo Montenegro, Djavan e Gonzaguinha eram hors-concours. Depois, Collor e sua trupe trataram de abastecer a Casseta com munição de sobra.
Apesar de o humor da Casseta ser dependente de referências da época, a maioria dos textos desta antologia envelheceu bem. Mérito da qualidade do material, claro, e do jornalista Arthur Dapieve, que editou a coletânea e fez o ótimo trabalho de limar piadas que hoje soariam datadas ou incompreensíveis. Também fica óbvio, para quem acompanhou a revista, que muitos textos mais pesados não entraram na coletânea*. Compreensível. Os tempos são outros, o politicamente correto chegou, e os autores não são mais estudantes da UFRJ, mas astros da Globo.
O que não quer dizer que o humor da Casseta apareça domesticado ou comportado. Quem, hoje em dia, teria a macheza de anunciar o debate "Por que matamos Cristo", ou publicar um jogo sobre o naufrágio do Bateau Mouche ("Venda suas passagens, encha seu barquinho e... boa sorte!")?
Entre os destaques, estão a cobertura da "Visita de Jesus Cristo ao Rio", incluindo fotos de uma noitada regada a pagode ("Ele extasiou os brasileiros, mostrando a ginga e a graça do crucificado de Jerusalém!"). Anúncios do Café Dunga - "Se o Café Pelé já era ruim, imagina esse!" - soam mais atuais que nunca. E dá para ter um gostinho da origem das Organizações Tabajara no "Casseta Shopping", que anunciava o Descaroçador de Melancia Neguinho e o utilíssimo Decalque de Olho, ideal para fingir que está acordado durante o balé.

Folha de São Paulo

* "Zoações" mais, por assim dizer, pesadas ficaram de fora da antologia. La Peña especula: "Acho que o Dapieve deixou de fora em deferência ao órgão de vocês..."

Plataforma sólida onde se acumulam pilhas

Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo - Manoel de Barros

O Herói de Mil Faces - Joseph Campbell

O Mago - Fernando Morais

Vergonha, a Ferida Moral - Yves de La Taille

Runner's World, novembro 2008 - Editora Abril

Meu Nome Não é Johnny - Guilherme Fiuza

Crises da República - Hannah Arendt

Vida e Movimento - Moshe Feldenkrais

Veneno Remédio: o futebol e o Brasil - José Miguel Wisnik

Selma - Jutta Bauer

Wednesday, December 17, 2008


Os contos infantis, com suas luzes puras e suaves, fazem nascer e crescer os primeiros pensamentos, os primeiros impulsos do coração. São também contos do lar, porque neles pode-se apreciar a poesia simples e enriquecer-se com sua verdade. E também porque eles duram no lar como herança que se transmite. - Jakob e Wilhelm Grimm - 1812

Monday, December 15, 2008

Bom Dia, Tristeza
Vinicius de Moraes & Adoniran Barbosa

Bom dia, tristeza
Que tarde, tristeza
Você veio hoje me ver

Já estava ficando
Até meio triste
De estar tanto tempo
Longe de você

Se chegue, tristeza
Se sente comigo
Aqui nesta mesa de bar

Beba do meu copo
Me dê o seu ombro
Que é para eu chorar

Chorar de tristeza
Tristeza de amar

Sunday, December 14, 2008

O país do homem cordial

Chave de ouro: a Bienal do Vazio encontrou um fim condigno. Caroline Pivetta da Mota, de 23 anos, entrou no prédio do Ibirapuera com um grupo e pichou paredes [em 26/10].
Foi posta na cadeia. Uma moça de 23 anos foi mandada para aquilo que se chama cadeia no Brasil porque pichou parede. O argumento jurídico, destruição de patrimônio cultural, aplicado àqueles traços facilmente eliminados com uma ou duas demãos de pintura, é um despautério.
Pena prevista: dois ou três anos na prisão.
Caroline tem argumentos mais inteligentes para defender seu ato do que os curadores para responder sobre o "conceito" que presidiu a Bienal de 2008. Diz ela: "Estava me manifestando contra os desfavorecidos, os que não têm acesso àquela coisa toda".
A dificuldade dos jovens artistas para mostrar o que fazem é enorme. Estão fora do mercado das artes, circuito que se assanha só por valores artísticos lucrativos. Encontram poucos lugares para expor, para debater com outros artistas e com a crítica. Aí, a Bienal exibe acintosamente um enorme espaço vazio, sem falar no pequeno conjunto mal alinhavado de obras do primeiro andar, várias bem pífias.
Tem razão Caroline: alguém precisa manifestar pelos desfavorecidos da arte, os excluídos da turminha artística que manda, desmanda, mói e remói.
Ela explica bem: "Tanto grafite quanto "picho" são underground, coisa do fundão. Não são feitos para exposição em galeria. A parada que eu faço é na rua, é para o povo olhar e não gostar. Uma agressão visual".

Muros

Pichação e grafite são transgressores. Brotam de uma cultura socialmente bem marcada.
São arte, coisa que muitos já perceberam. A galeria Triângulo, em São Paulo, deu abrigo a essa vibração enérgica que os pichadores manifestaram no Ibirapuera.
A Bienal, porém, não sabe disso: enfrenta um problema da cultura com boletim de ocorrência.

Nádegas

"A Bienal dizia ser um espaço interativo. Rolou de algumas pessoas entrarem lá para discutir arte contemporânea. O cara que ficou pelado (Maurício Ianês) estava integrado com o sistema, para a gente não é assim.
A arte tem que ser livre". A frase do pichador Rafael Augustaitiz denuncia o caráter oficial e convencional das vanguardas.
As vanguardas se institucionalizaram e afastaram qualquer liberdade não autorizada, que não caiba em sua ordem autoritária e arbitrária.
Há tempos, Gerald Thomas sofreu um patético processo porque mostrou a bunda no Municipal do Rio, ao ser vaiado por uma excelente montagem.
Se sua bunda tivesse aparecido durante o espetáculo, antes de a cortina baixar, seria artística e livre de perseguições judiciárias.

Onde fica mesmo?

Ainda bem que a Bienal não é em Mato Grosso do Sul.
Se fosse, haveria fortes chances para que os pichadores levassem bala.
O governador Puccinelli fez declarações durante a cerimônia "Feliz Cidade" (sic), em que distribuiu 1.500 pistolas calibre 40 a policiais militares.
"Os policiais estão autorizados a atirar no peito de quem tem passagem." Não precisam cumprir "100% dos dizeres dos direitos humanos".
"A ordem é atirar."
Seu secretário da Justiça alega com candor: "Ele (governador) pensa como médico, como cidadão. Não entende as questões técnicas".
Bom. Matar os outros é uma questão técnica, pensamento de médico, de cidadão, de governador? No inferno talvez seja. O pior é que o velho lugar-comum está cada vez mais certo: o inferno é aqui.

JORGE COLI - Ponto de Fuga - Folha de São Paulo - Caderno Mais!

Obra proibida relata a grande fome chinesa

Jornalista reúne documentos oficiais sobre a industrialização forçada, que causou milhões de mortes entre 1959 e 1961

A fome levava chineses ao canibalismo, enquanto mídia estatal dizia que o país caminhava para ser uma potência, conta Yang Jisheng

"Aos 18 anos de idade, eu só comia arroz. Não tinha outro vegetal, nem carne, nem óleo, só arroz o dia inteiro. Meu pai morreu de fome esse ano, assim como outros conhecidos. Mas achávamos que fossem casos isolados, o controle da informação na China era total."
O jornalista Yang Jisheng, 67, passou os últimos 20 anos tentando desvendar o porquê das 36 milhões de mortes que aconteceram entre 1959 e 1961, até hoje um dos maiores tabus do Partido Comunista Chinês.
Yang acaba de publicar Mu Bei (lápide). Em 1.100 páginas, dividas em dois volumes, ele descreve a chamada "grande fome" com centenas de fontes e cópias de documentos oficiais. Conta casos de canibalismo - de famílias que devoravam cadáveres de parentes a pais que mataram seus filhos para se alimentar de seus corpos.
Houve casos de cadáveres mantidos por familiares na cama, que diziam às autoridades "ali está o primo doente" para poder continuar a receber a ração de arroz do defunto. O autor ouviu sobreviventes admitirem ter comido cães e ratos e dá detalhes de como o governo conseguiu esconder a tragédia.
A fome foi provocada por uma desastrada campanha do ditador Mao Tse-tung. Chamada de "Grande Salto Adiante", ela tirou milhões de camponeses da lavoura para tentar industrializar a China à força.
Enquanto fundiam ferro, a produção agrícola minguava.
Em 1959, a União Soviética rompeu unilateralmente com o regime comunista chinês. Mao começou a pagar suas dívidas com os soviéticos com comida. Milhões de grãos de uma produção em declínio foram desviadas para o vizinho do norte.
"Havia armazéns cheios de grãos, mas houve poucos saques. As pessoas morriam sem saber o que fazer. Rádios e jornais, todos do governo, diziam que o país caminhava para ser uma potência. Ninguém tinha coragem de criticar o governo, após temporadas de expurgos", disse Yang à Folha.

Socorro proibido

Em Xinyang, cidade na Província de Henan, cerca de 10 mil cartas de pessoas pedindo ajuda a parentes foram retidas no correio local. Até líderes comunistas locais eram proibidos de pedir socorro.
Na cidade, em 1958, 1,2 milhão de pessoas, um terço da mão de obra, foi escalada para fazer aço. A produção de grãos ali caiu 46,1% em um ano. Mas o governo local disse que a produção de grãos dobrou. "Prefeitos e governos provinciais maquiavam os números para impressionar Pequim, e o governo nacional supostamente não sabia o que acontecia", diz Yang.
Mais tarde, com centenas de cadáveres em qualquer vilarejo, o governo começou a atribuir a grande fome a "três anos de desastres naturais". "Médicos me contaram que, ao visitar pacientes, queriam dizer que o único remédio era comida, mas nem eles tinham coragem de falar a verdade", diz Yang.
Ali, testemunhas relataram que era comum se alimentar de fezes de cervo, "menos grudentas que as de outros animais".

Acesso privilegiado

Membro do PC, Yang trabalhou na agência estatal de notícias Xinhua entre 1966 e 2001, quando se aposentou. Ele passou pelos vários estágios do comunismo local: perdeu o pai, conseguiu estudar na prestigiada universidade Tsinghua, em Pequim, mas foi mandado para um campo agrícola no final dos anos 60, durante a Revolução Cultural, quando intelectuais e "trabalhadores burgueses" tinham de pegar na enxada.
Como jornalista da Xinhua, Yang conseguiu ter acesso a documentos oficiais e falar com autoridades que se negariam a tocar no assunto em outra situação: "Ninguém desmentiu minha pesquisa. Os números oficiais que obtive mostram que a população decresceu em 10 milhões em 1960, algo inédito na China de então".
Não só pelas mortes, mas pela queda de nascimentos. "Mulheres paravam de menstruar e a atividade sexual caiu", diz.
Lápide foi publicado por uma editora de Hong Kong e está proibido na China. Mas há dezenas de sites com o conteúdo completo para download. Com erros propositais na digitação do nome do autor e da obra, eles têm driblado o bloqueio da censura chinesa.
"Não há liberdade jornalística na China, mas ninguém pára a internet", diz Yang.

Raul Juste Lores, de Pequim - Folha de São Paulo - Mundo

Direitos universais

Promulgada em 1948, Declaração dos Direitos Humanos da ONU é desrespeitada na prática e contestada na teoria

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
Sessenta anos depois de promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, frases como essas, retiradas de seus artigos iniciais, lêem-se ainda com emoção. Há algo, em sua simplicidade solene e reta, que resiste a todo espírito de ceticismo, ironia ou desencanto.
Sem dúvida, não existe ponto nesse documento histórico que não seja cotidianamente desrespeitado na esmagadora maioria dos países do mundo. Da prisão de Guantánamo às favelas brasileiras, da China ao Irã, contam-se aos bilhões as vítimas da pobreza, da intolerância, do racismo, do terror e da tirania.
Considerar que a Carta da ONU consiste apenas numa peça de ficção seria, entretanto, apenas uma maneira sutil de desqualificar o seu sentido mais profundo. Por mais distantes que estejam da realidade concreta, os ideais humanos não são "ficções". Estabelecem, isto sim, os critérios com os quais se pode julgar a realidade. Consistem no instrumento de que dispomos, em última análise, para avaliar o que fazemos uns aos outros, e o que é feito de nós.
Serão realmente universais os critérios, os ideais inscritos na Carta da ONU? Na onda do relativismo, há quem se incline a questionar esse aspecto do documento. O que é válido para uma cultura não é necessariamente válido para qualquer outra, e a Declaração de 1948 resulta de uma circunstância histórica e de uma herança filosófica particular, a do Iluminismo ocidental.
Nesse raciocínio esconde-se, entretanto, uma sofisticada forma de confundir, mais uma vez, o mundo dos fatos concretos e o plano da consideração ética mais ampla. Que, numa determinada sociedade, a tortura judicial ou a excisão ritual do clitóris sejam aceitas como tradições intocáveis não elimina a importância da pergunta, que obviamente ninguém se dispõe a fazer às vítimas, sobre a legitimidade desses procedimentos.
Costumes e tradições não são pactuados, como leis, entre indivíduos. O próprio conceito de liberdade individual não tem, em muitas culturas, o peso que possui no pensamento ocidental.
Entretanto, mesmo se a liberdade do indivíduo constitui uma "invenção" moderna, como quer certo vocabulário em voga, nem por isso seria razoável contestar sua universalidade.
Pois a Carta da ONU não propõe, a nenhum ser humano, qualquer que seja sua crença ou a sua cultura, nada que o desproteja ou coloque em situação de vítima. Não há cultura alternativa, tradição venerável ou ordem alheia aos princípios gerais ali estabelecidos da qual se possa dizer algo semelhante.
É por isso mesmo, aliás, que ainda hoje se mostra tão difícil ver esses princípios concretizados; são, com efeito, os mais elevados a que se pode aspirar.


Thursday, December 11, 2008

A arte se torna arte ao ser consumida, diz Lobão

2º debate em comemoração dos 50 anos da Ilustrada foi sobre "Cultura e Consumo"

Para o cantor e compositor Lobão, não há dúvida de que a arte mantém seu potencial transformador mesmo ao se tornar produto de consumo: "A arte se torna arte quando é consumida", disse ele anteontem à noite, no auditório do Masp, no debate "Cultura e Consumo". Em comemoração dos 50 anos da Ilustrada, o encontro teve mediação do jornalista Alcino Leite Neto, editor de moda da Folha. O cineasta José Padilha, que passou boa parte do debate relativizando conceitos ("vou me referir a cultura como o que sai na Ilustrada e a consumo como transação que envolve moeda"), também fez o seu elogio do consumo: "Acho ótimo o mercado, porque, se uma sociedade não tem, normalmente há menos liberdade". Já o psicanalista Contardo Calligaris, colunista da Ilustrada, ressaltou que o consumo "é o lugar onde cada um inventa quem é". Cristovão Tezza, escritor mais premiado de 2008, destacou que "um livro é um produto cultural como qualquer outro, de forma mais forte do que em qualquer época da história".


OPOSTO DO CONSUMO
Contardo - O consumo, para a maioria das pessoas da minha geração, era coisa ruim. Mas o que é o contrário do consumo?
Não é o que alguns americanos chamam de "simple life" [vida simples]. A alternativa é o que chamavam no século 18 de leis suntuárias, que diziam que alguém, segundo sua extração social, podia ter acesso a certos bens. Prefiro o consumo, que é o lugar onde cada um inventa quem é. Que permite uma diversidade imensa de estilos de vida. É o que torna nossa sociedade uma das de maior mobilidade de todos os tempos.

CONTRAPARTIDA ÉTICA
Tezza - A literatura, com alguma presunção, sempre foi sentida como uma atividade que não se enquadra num processo de produção. O impulso para escrever era uma espécie de projeto existencial: estabelecer um modo de vida que fosse a contrapartida ética ao que estava aí. Sob o ponto de vista do indivíduo, [cultura e consumo] eram incompatíveis. Mas é claro que é ótimo para um escritor ter um livro que seja bem distribuído, que o produto seja bonito etc. O livro é um produto cultural como qualquer outro, de forma mais forte do que em qualquer época da história.

CONCEITOS
Padilha - Existe uma definição ampla [de cultura] que é diferente da idéia do conjunto de produtos específicos como livros, CDs etc. O mesmo se aplica ao consumo. Acho ótimo o mercado, porque, se uma sociedade não tem, normalmente há menos liberdade. Então vou me referir a cultura como o que sai na Ilustrada. E o consumo como transação que envolve moeda. Depois de restringir isso, vou dizer que não entendo de um ou de outro, nem com essa restrição.

SEMPRE HOUVE GRANA
Lobão - Deveríamos deixar de colocar a cultura em um patamar muito etéreo. Em todo o transcorrer da arte, sempre houve grana. No período barroco, o artista tinha de fazer um périplo em castelos. A gravadora mudou de patamar, mas não pode ser aniquilada, enquanto força de organização. Se ficarmos com pruridos de botar a mão na massa, vem [a banda] Calypso e toca. Hoje, a classe média lida com o rock de forma franciscana, de que não se deve sujar a mão com lucro. Meu diapasão seria o de combater essa mentalidade tacanha.

NOVAS MÍDIAS E DEMOCRACIA
Padilha - A internet democratiza a informação, mas esta pode ser transmitida pela internet só por quem a tem. A democratização é relativa. A gente não pode imaginar que está democratizando a produção cultural simplesmente porque a está digitalizando.
Tezza - Potencialmente, a internet é uma revolução fantástica da palavra escrita. No Brasil, a televisão foi um agente civilizador porque chegou às massas antes da palavra escrita. Na Europa e nos EUA, a TV já encontrou uma civilização escrita instalada. A internet é o império da palavra escrita - que voltou a ser um valor social poderosíssimo.

MARKETING E PUBLICIDADE
Padilha - Acho [possível um produto cultural sobreviver sem marketing]. "Tropa de Elite" [dirigido por ele] é um exemplo. Uma das versões em montagem foi roubada e, sem R$ 1 de marketing, todo o esforço que eu fazia era para impedir a venda do filme.
Lobão - É possível, mas é uma coisa extemporânea, heterodoxa. A gente tem de dar a cara a tapa que, sem publicidade, nada funciona. Você faz um disco com US$ 20 mil e gasta US$ 500 mil na publicidade.
Padilha - O sucesso de um produto cultural não está determinado pelo marketing. Depende da natureza do produto.
O primeiro filme do Casseta & Planeta ["A Taça do Mundo É Nossa", 2003] é um exemplo.

A CULTURA E SEU PÚBLICO
Tezza - Jamais escrevi pensando no leitor. É uma viagem meio autista. Tenho extrema dificuldade [em levar em conta a relação com o leitor]. Já tentaram me encomendar livro, eu desisto. Depois que o livro é entregue à editora, aí é um produto. No meu caso, o leitor é uma entidade misteriosa.
Lobão - No formato, [o público é importante] sim, porque elegi música pop para tocar no rádio. Mas o assunto, se estou me interessando por física quântica ou bloco de samba, aí é um estímulo subjetivo. Cabe a mim sintetizar isso tudo e botar naquele formato que eu me proponho a fazer.
Contardo - Acho pouco dinâmico para a cultura não ter de se confrontar com as exigências do mercado. Seria legal a gente ter o problema de como trazer o público.
Padilha - Concordo. Os dois sistemas podem coexistir: o cinema de estúdio e fundações que financiam o cinema independente. Tem de ter a confrontação com o mercado, mas também o artista que arrisca.

ARTE TRANSFORMADORA
Tezza - Cabe de tudo no mercado. Não vejo um risco automático [de a arte perder seu caráter transformador ao virar produto de consumo].
Lobão - Cabe a nós ter capacidade de síntese para fazer valer o que se tem a dizer artisticamente dentro de moldes em princípio desconfortáveis.
Padilha - Não existe uma contradição, uma incompatibilidade entre mercado e arte. O mercado também tem uma enorme potência transformadora. O mercado não é reacionário. Quem disse isso?
Lobão - A arte pode e deve se tornar arte enquanto é consumida, é objeto de consumo.
Contardo - Vamos tomar como exemplo o que muitos consideram o nível mais baixo da expressão artística: a novela das oito. Um personagem negro positivo ali vai ser infinitamente mais transformador do que 14 performances de negros e brancos na Bienal.

Do autor: Inevitável a sensação de vazio depois de reler todas as falas de todos os debatedores. A impressão de que nem se deram ao trabalho de definir o que cada um chama de consumo. O jeito de quem não refletiu sobre o assunto. De quem falou a partir só de suas idiossincrasias. Difícil envolver homens de mercado para discutir "consumo" ou "consumismo" ou "indústria cultural" quando estes conceitos implodiram.

Monday, December 08, 2008

Sunday, December 07, 2008

Personal Year 4: Maintenance, Work, Self Control and Responsibility

This is a year of hard work and discipline in which you will be struggling to keep up with all the promises you made during year 3. Many find a year 4 to be very frustrating as responsibilities increase. A common metaphor used to describe this year is "one step forward and two steps back."
Although it might seem that you are not making much headway, the whole point of a year four is to create a firm foundation that can support the maturing of your life goals over the next couple of years.


IIII. O IMPERADOR

O Arcano da Autoridade, da Paternidade e da Obediência
Compilação de Constantino K. Riemma

Sentado num trono com as pernas cruzadas, um homem coroado é visto de perfil. Em sua mão direita traz um cetro que termina por um globo e pela cruz, enquanto a outra mão segura o cinto.

No primeiro plano, à direita, um escudo com a imagem de uma águia parece apoiar-se no chão.

Um colar amarelo prende uma pedra (ou um medalhão) de cor verde. A coroa se prolonga extraordinariamente por detrás da nuca.

O trono, uma cadeira em cujo braço esquerdo se apóia o Imperador, repousa – como a mesa do Arcano I – sobre um terreno aparentemente árido, do qual brota uma solitária planta amarela.

Ao contrário do emblema da Imperatriz, a águia do Arcano IIII olha para a esquerda. O desenho das águias, por outro lado, difere notavelmente num e noutro caso.

A notação IIII, no topo do desenho, que ocorre também nos arcanos VIIII, XIIII e XVIIII não é habitual na numeração romana (que registraria IV, IX, XIV e XIX).

Essa forma de grafar, porém, faz parte da tradição gráfica do Tarô, tal como aparece na versão de Marselha e na maioria das coleções de cartas antigas.

Significados simbólicos

O poder, o portal, o governo, a iniciação, o tetragrama, o quaternário, a pedra cúbica ou sua base. Proteção paternal.

Firmeza. Afirmação. Consistência. Poder executivo. Influência saturnina-marciana. Concretização, habilidades práticas, ordem, estabilidade, prestígio.

http://www.clubedotaro.com.br/site/m32_04_imperador.asp

Saturday, December 06, 2008

Friday, December 05, 2008

Antes [...], detenhamo-nos um pouco no conceito que a perturbação do melancólico oferece a respeito da constituição do ego humano. Vemos como nele uma parte do ego se coloca contra a outra, julga-a criticamente, e, por assim dizer, toma-a como seu objeto. Nossa desconfiança de que o agente crítico, que aqui se separa do ego, talvez também revele sua independência em outras circunstâncias, será confirmada ao longo de toda a observação ulterior. Realmente, encontraremos fundamentos para distinguir esse agente do restante do ego. Aqui, estamo-nos familiarizando com o agente comumente denominado ‘consciência’; vamos incluí-lo, juntamente com a censura da consciência e do teste da realidade, entre as principais instituições do ego, e poderemos provar que ela pode ficar doente por sua própria causa. No quadro clínico da melancolia, a insatisfação com o ego constitui, por motivos de ordem moral, a característica mais marcante. Freqüentemente, a auto-avaliação do paciente se preocupa muito menos com a enfermidade do corpo, a feiúra ou a fraqueza, ou com a inferioridade social; quanto a essa categoria, somente seu temor da pobreza e as afirmações de que vai ficar pobre ocupam posição proeminente.

Há uma observação, de modo algum difícil de ser feita, que leva à explicação da contradição mencionada acima [no fim do penúltimo parágrafo]. Se se ouvir pacientemente as muitas e variadas auto-acusações de um melancólico, não se poderá evitar, no fim, a impressão de que freqüentemente as mais violentas delas dificilmente se aplicam ao próprio paciente, mas que, com ligeiras modificações, se ajustam realmente a outrem, a alguém que o paciente ama, amou ou deveria amar. Toda vez que se examinam os fatos, essa conjectura é confirmada. É assim que encontramos a chave do quadro clínico: percebemos que as auto-recriminações são recriminações feitas a um objeto amado, que foram deslocadas desse objeto para o ego do próprio paciente.

A mulher que lamenta em altos brados o fato de o marido estar preso a uma esposa incapaz como ela, na verdade está acusando o marido de ser incapaz, não importando o sentido que ela possa atribuir a isso. Não há por que se surpreender com o fato de haver algumas auto-recriminações autênticas difundidas entre as que foram transpostas. Permite-se que estas se intrometam, uma vez que ajudam a mascarar as outras e a tornar impossível o reconhecimento do verdadeiro estado de coisas. Além disso, elas derivam dos prós e dos contras do conflito amoroso que levou à perda do amor. Também o comportamento dos pacientes, agora, se torna bem mais inteligível. Suas queixas são realmente ‘queixumes’, no sentido antigo da palavra. Eles não se envergonham nem se ocultam, já que tudo de desairoso que dizem sobre eles próprios refere-se, no fundo, à outra pessoa. Além disso, estão longe de demonstrar perante aqueles que o cercam uma atitude de humildade e submissão, única que caberia a pessoas tão desprezíveis. Pelo contrário, tornam-se as pessoas mais maçantes, dando sempre a impressão de que se sentem desconsideradas e de que foram tratadas com grande injustiça. Tudo isso só é possível porque as reações expressas em seu comportamento ainda procedem de uma constelação mental de revolta, que, por um certo processo, passou então para o estado esmagado de melancolia.

Não é difícil reconstruir esse processo. Existem, num dado momento, uma escolha objetal, uma ligação da libido a uma pessoa particular; então, devido a uma real desconsideração ou desapontamento proveniente da pessoa amada, a relação objetal foi destroçada. O resultado não foi o normal - uma retirada da libido desse objeto e um deslocamento da mesma para um novo -, mas algo diferente, para cuja ocorrência várias condições parecem ser necessárias. A catexia objetal provou ter pouco poder de resistência e foi liquidada. Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o ego. Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado. Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação.

Uma ou duas coisas podem ser diretamente inferidas no tocante às precondições e aos efeitos de um processo como este. Por um lado, uma forte fixação no objeto amado deve ter estado presente; por outro, em contradição a isso, a catexia objetal deve ter tido pouco poder de resistência. Conforme Otto Rank observou com propriedade, essa contradição parece implicar que a escolha objetal é efetuada numa base narcisista, de modo que a catexia objetal, ao se defrontar com obstáculos, pode retroceder para o narcisismo. A identificação narcisista com o objeto se torna, então, um substituto da catexia erótica, e, em conseqüência, apesar do conflito com a pessoa amada, não é preciso renunciar à relação amorosa. Essa substituição da identificação pelo amor objetal constitui importante mecanismo nas afecções narcisistas; Karl Laudauer (1914), recentemente, teve ocasião de indicá-lo no processo de recuperação num caso de esquizofrenia. Ele representa, naturalmente, uma regressão de um tipo de escolha objetal para o narcisismo original. Mostramos em outro ponto que a identificação é uma etapa preliminar da escolha objetal, que é a primeira forma - e uma forma expressa de maneira ambivalente - pela qual o ego escolhe um objeto. O ego deseja incorporar a si esse objeto, e, em conformidade com a fase oral ou canibalista do desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja fazer isso devorando-o. Abraham, sem dúvida, tem razão em atribuir a essa conexão a recusa de alimento encontrada em formas graves de melancolia.

S. Freud - 1917