Sunday, November 30, 2008

''É inviável bancar exame de próstata para todos''

Embora reafirme valor da prevenção, urologista diz que País não tem recursos para transformá-la em política pública universal

Professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e um dos maiores especialistas em tumores de próstata no País, o médico cirurgião Miguel Srougi afirma que os homens devem fazer o exame anual para detectar o câncer, a despeito das incertezas científicas sobre a relação entre o rastreamento populacional da doença e o aumento da expectativa de vida masculina. Segundo Srougi, a nota divulgada pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca) na semana passada, desaconselhando o exame como rotina para homens assintomáticos e sem histórico familiar, foi precipitada e não levou em conta que a maior parte dos casos diagnosticados, caso não sejam tratados, podem levar à morte.

Qual a polêmica atual em torno da realização do exame?

Ainda existem dúvidas sobre tumores de próstata e existem tipos diferentes de tumor. Há pacientes que têm tumores, mas eles não evoluem. Outros têm um tipo agressivo que, se não for tratado, leva à morte. Aí está a questão. Imagine um indivíduo com câncer que estivesse destinado a morrer em 2010. Se ele descobre o câncer em 2008, ele pode iniciar um tratamento e morrer em dois anos. Com uma campanha para detectar precocemente a doença, ele descobre que tem câncer em 2005, faz o tratamento e morre em 2010. Com isso, você pode ter a impressão de que o tratamento prolongou em cinco anos a vida dele. Mas, na verdade, não fez diferença nenhuma. Ou seja, ainda não se sabe se para alguns tipos de tumor a detecção e o tratamento prolonga ou não a vida do paciente.

Então é sabido que nem todo tumor deve ser tratado?

O tratamento não é inócuo. Ele pode provocar incontinência urinária, impotência, queimaduras intestinais ocasionadas pelas radioterapias. Por causa desses efeitos colaterais, existe uma discussão em aberto se o médico que descobre um câncer inofensivo e trata não acaba fazendo mais mal do que bem para o paciente. Nessa circunstância, o médico estaria se contrapondo, mesmo sem saber, a um dos princípios mais importantes que existem na medicina, que é o de você não lesar o paciente. Então, há inconvenientes, o tratamento realmente tem efeitos colaterais e há tumores que não provocam tantos danos. Por isso os médicos passaram a discutir esse tema.

A partir desse cenário, qual a melhor conduta a ser adotada por médicos e pacientes?

Há três grandes estudos em andamento, um canadense, um americano e um europeu, para saber se os pacientes que fazem rastreamentos anuais vivem mais ou não do que os outros. O europeu deve ficar pronto no próximo ano. O americano, em 2012 e o canadense, 2013. Mas esse último é o único que já divulgou resultados preliminares. E por eles o risco de os homens morrerem de câncer de próstata é 60% menor nos que fazem os exames rotineiramente. Os outros dois estudos ainda não têm resultados nem preliminares nem definitivos. Outro fator em favor dos exames é o fato de a maior parte dos tumores detectados não serem do tipo indolente, que não progride.

Há dados sobre a incidência de cada tipo de tumor?

Existem quatro ou cinco estudos que mostram que, do que se diagnostica em consultório, mais ou menos 15% são tumores indolentes, que não vão matar o doente, 25% são incuráveis e 60% são significativos e, se forem tratados adequadamente, a vida do paciente será prolongada. Em nome de proteger os 15% que tem câncer indolente, a falta do rastreamento prejudicará outros 60% que poderiam ser tratados. Então é um pouco precário falar "não vamos procurar o câncer e não vamos fazer o toque", porque eles são indolentes? Até porque não são muitos, são 15%. Em cerca de 25% dos casos a detecção não faz diferença porque o tumor já está fora da próstata.

O que o senhor achou da polêmica provocada pelo Inca?

O Inca acabou tomando uma atitude precipitada. Mas é preciso fazer uma ressalva, porque o Inca tem um trabalho de grande valor, com pessoas de grande valor e fazem um trabalho público extremamente importante. Mas, nesse caso, eles criaram um risco enorme para os homens por um equívoco.

Ao detectar um tumor, os médicos conseguem distinguir de qual tipo ele é?

Os médicos ainda não conseguem definir com toda precisão em que grupo o paciente está: indolente, possível de cura ou incuráveis. Não há métodos garantidos, mas há métodos para se aproximar de uma resposta e chegar com um pouco mais de certeza a definir em qual desses três grupos está o paciente.

Por isso é importante fazer o exame de toque e o PSA?

Dizer que eles não devem fazer toque é absolutamente precipitado. O que se deve dizer é que temos dúvidas, existem casos que não precisam ser tratados e o rastreamento ajuda, mas não há certeza. Enquanto essas questões não forem respondidas, todos os homens têm o direito e devem saber se têm ou não um tumor de próstata. E procurando e discutindo com seu médico eles poderão saber se o tumor é provavelmente indolente, significativo ou não. Devem ser orientados para, uma vez diagnosticado o problema, discutirem intensamente com os médicos se precisam ou não de tratamento, procurar uma segunda opinião, para tomar uma decisão que vai definir o destino da vida deles. Falar que não deve fazer é ignorar e fingir que o problema não existe. Tem um sem-número de homens que conseguiram tratar e hoje levam uma vida normal e saudável. A verdadeira mensagem que deveríamos dar é essa: há tumores não importantes, tratar vai beneficiar um grupo e não todos, cada homem deve procurar saber se tem câncer ou não, e conversando com o médico e com uma segunda opinião, decidir se seu caso deve ser tratado.

O rastreamento como política pública é indicado?

Como política pública, para todos os homens fazerem os exames e os tratamentos necessários custaria R$ 6 milhões ao ano, isso a preço de valores pagos pelo SUS. É algo inviável para um País com pouco dinheiro destinado à saúde. Talvez não seja certo exigir que o governo banque esse rastreamento, mas que fizesse uma campanha de educação e estimulasse cada brasileiro que tem recursos a procurar ajuda própria. Caberia ao governo assistir os homens que dependessem do SUS. O governo poderia também estimular as grandes empresas a zelarem pelos seus homens, as instituições públicas a patrocinarem esses programas, porque o exame deve ser feito. E os dois tipos. Quando se faz só o PSA, escapam do diagnóstico 25% dos casos. Se fizer só o exame de toque escapam 50%. Se fizer os dois juntos, escapam apenas 8%. Por isso o rastreamento deve ser feito com os dois métodos.

Como as campanhas poderiam ser feitas?

Dois terços dos homens que fazem rastreamento são trazidos pelas mulheres, que têm sentido de preservação da família muito mais forte. Elas são muito mais pragmáticas e querem o homem saudável. Já eles têm sentimentos de invulnerabilidade. Campanhas de educação devem ser focadas também nas mulheres. Elas representam estímulo forte para que os homens façam esse rastreamento e são ignoradas.

http://www.estadao.com.br

Os donos da história
JOHN LLOYD

Três livros lançados no reino unido discutem as vantagens e os limites dos avanços tecnológicos para o futuro do jornalismo

"Os blogs e a web marcam um retorno ao jornalismo dos séculos 17 e 18"

Os últimos 150 anos foram a era do jornalismo heróico, um período em que os jornalistas desenvolveram sua auto-imagem como responsáveis por corrigir os males da sociedade.
O período produziu testemunhas do horror, tais como William Howard Russell, do The Times, cujos artigos sobre a Guerra da Criméia ajudaram a destruir um governo e a modernizar o Exército britânico.
Houve jornalistas como o escritor francês Émile Zola, que colocaram sua pena a serviço da indignação, diante das falsas acusações movidas contra o capitão Alfred Dreyfus.
Já o jornalismo de denúncia ao estilo norte-americano gerou talentos como o de Ida Tarbell, que expôs as práticas da Standard Oil no começo do século 20 - período em que era difícil ver mulheres ocupando posições no jornalismo fora das páginas literárias e de moda.
E, dos anos 1960 em diante, uma legião de repórteres investigativos justificou sua existência com a criação de um quadro de profissionais intransigentes que exigiam que os poderosos prestassem contas.
Esses repórteres foram imensamente beneficiados pela fama e pelo status de Ed Murrow, jornalista de rádio e TV da [rede norte-americana] CBS nos anos 1950, e pelos jornalistas Carl Bernstein e Bob Woodward, do Washington Post, famosos por suas reportagens sobre o caso Watergate no começo dos anos 1970.
De diferentes maneiras, três livros recentes são produto da transição da era do jornalismo heróico para... O que, exatamente? Por enquanto, o novo modelo não tem nome.
As primeiras indicações são de que o melhor termo seja "era demótica", devido à explosão de blogs, sites de redes sociais, e-mails e textos que a internet propiciou nos últimos dez anos - e tudo isso com uma intensidade não vista nem mesmo no período epistolar mais intenso da era vitoriana.
Em SuperMedia [ed. WileyBlackwell, 216 págs., 14,99, R$ 53], Charlie Beckett considera a nova era sob esses termos. Antecipa o momento em que essa forma de jornalismo cidadão suplantará o modelo convencional e, em suas palavras, "salvará o mundo".
Em Can You Trust the Media? [Você Pode Confiar na Mídia?, Icon Books, 256 págs., 12,99, R$ 46], Adrian Monck, ex-produtor da ITV e da Sky e hoje professor de jornalismo na Universidade Metropolitana de Londres, derruba os mitos da era do jornalismo heróico ao negar esse heroísmo.
E os ensaios da coletânea UK Confidential [Reino Unido Confidencial, Instituto Demos, Charlie Edwards e Catherine Fieschi (org.), 184 págs., 10, R$ 36] tratam da moderna suposição de que figuras públicas têm pouco ou nenhum direito a uma vida privada.

Blogs e nostalgia

De certa forma, os blogs e a web marcam um retorno ao jornalismo dos séculos 17 e 18 - um período empreendedor, no qual pessoas que tinham algo a dizer montavam seus negócios e publicavam panfletos e boletins noticiosos.
Também vivemos um período de maior incerteza, o que lembra a era vitoriana, quando os jovens aspirantes a literatos, vestidos com trajes modestos, ganhavam a vida trabalhando arduamente em um mercado formado majoritariamente por free-lancers.
O jornalismo do século 20, até agora, dependia de bases organizacionais: jornais com editorias, treinamento e estrutura de carreira; companhias de televisão que investiam em suas divisões de notícias e atualidades; sindicatos que por algum tempo deram aos jornalistas dos países desenvolvidos proteção ao menos semelhante àquela da qual os operários gráficos um dia desfrutaram.
Nem todos esses fatores desapareceram, mas diversos deles parecem oscilantes.
A paisagem atual está repleta de grandes fábricas de notícias que estão perdendo espaço e mostrando sinais de debilidade. A divisão de notícias da CBS, criada por Murrow, hoje conta com apenas alguns correspondentes estrangeiros, e quase nenhum zelo investigativo. O Le Monde, fundado por Hubert Beuve-Méry para restabelecer a honra do jornalismo francês no pós-guerra, está lutando para sobreviver.
O Daily Express, no passado uma presença dominante no mercado britânico médio, agora se reduziu a ponto de se tornar parte de um grupo dirigido por um pornógrafo.
O denominador comum a isso é a perda de audiência e de receita sofrida ao longo da última década. Existe, como aponta Charlie Beckett em SuperMedia, "pressão mais que suficiente para que temamos pelo futuro do jornalismo".
Usando um excerto de um discurso proferido em 2007 por Ed Richards, presidente da Ofcom, a organização que fiscaliza a mídia britânica, ele propõe uma questão: "O abandono do consumo de notícias, quer em forma eletrônica convencional ou em forma impressa, parece ser uma tendência secular e em aceleração... Até que ponto isso influencia a existência de uma sociedade civil saudável?"
Trata-se de uma pergunta válida. O jornalismo baseou sua auto-imagem e sua justificativa para existir na crença de que seu trabalho permitia que os membros de sua audiência de massa se tornassem melhores cidadãos. Se o jornalismo desaparecer, o que acontece com a cidadania?
A pergunta que serve de título para o livro de Monck é respondida de maneira abrangente em seu ensaio: não, não se pode confiar na mídia, e aliás nunca se pôde.
Monck não acha que os padrões estejam em decadência, mas sente que a crescente falta de confiança é uma resposta pública racional à imprensa cada vez menos confiável.
"Do ponto de vista comercial", escreve, "confiança é um ativo sem valor". Ele zomba da "tocante fé em que, caso as pessoas testemunhem a verdade, agirão pelo bem", e enfatiza a bagagem emocional, e não racional, que os leitores e espectadores carregam com eles ao avaliar cada questão.

Afeto e exasperação

Se o jornalismo está em crise, alguns dos componentes dessa crise são tão antigos quanto o jornalismo - e indissociáveis dele. Em seu livro, acessível e escrito de maneira vivaz, Monck conclui expressando a certeza de que precisamos do jornalismo, mas ainda assim o encara com uma mistura de afeto e exasperação, como algo de falho que, quando faz o bem, o faz por acidente.
Em contraste, o argumento de Beckett está resumido em seu subtítulo: Salvando o Jornalismo para Que Ele Possa Salvar o Mundo.
E o autor parece estar falando sério. Ele eleva o "jornalismo cidadão" - termo que engloba toda forma de comunicação, de blogs a depoimentos amadores sobre desastres ou guerra e sites de jornalismo amador na web - à posição de salvador do jornalismo.
Acima de tudo, Beckett acredita que, "quanto mais os jornalistas se comportarem como cidadãos, mais forte será o jornalismo". Ele também acredita que o jornalista precisa ter como base a realidade experimentada, e que o jornalismo cidadão extrai sua legitimidade e sua prática dessa realidade.
Beckett defende parte de seus argumentos mencionando o exemplo do Fort Myers News-Press, da Flórida, um jornal que pressionou por acesso à lista dos pagamentos de assistência às vítimas do furacão Katrina.
Em seguida, o jornal publicou a lista e convidou seus leitores a informar a redação em caso de quaisquer anomalias nos pagamentos. As denúncias foram usadas como base para uma série de reportagens.
E, em uma bela passagem sobre o jornalismo africano, cita extensamente blogs bem-informados e raivosos mantidos por africanos, os observadores mais capazes de testemunhar o comportamento criminoso de seus governos corruptos.
Os blogs expressam opiniões que muitas vezes terminam censuradas nos jornais e, especialmente, nas rádios e estações de TV africanas.
Há um porém - ou poréns.
Em primeiro lugar, as tentativas de fazer do jornalismo cidadão uma prática cotidiana não funcionaram bem até o momento.
Em segundo lugar, a maioria do jornalismo político convencional que surgiu na blogosfera não elevou o nível ético.
O mais famoso desses novos jornalistas políticos é Matt Drudge, hoje um homem poderoso na mídia. Ganhou fama inicialmente ao revelar o caso entre Monica Lewinsky e o então presidente dos EUA, Bill Clinton e continua a explorar esse filão de boatos, acusações e insinuações.
Terceiro, não está realmente claro o que quer dizer "comportar-se como cidadão", para um jornalista, ou o que seria "se comportar como jornalista", para um cidadão. Os cidadãos muitas vezes não querem forma nenhuma de jornalismo.

Privacidade

Reino Unido Confidencial observa o jornalismo pela lente da tecnologia e age como uma espécie de comentário cético a respeito.
O que essa coletânea muito diversificada demonstra é que o desejo benigno das empresas e do governo de acelerar o acesso a bens e serviços significou, na prática, que o público transferiu, em grande medida sem se incomodar muito, vasto volume de dados pessoais a empresas e ao governo.
Então, não existe maneira de escapar às atuais misérias do jornalismo?
Não de um salto, creio.
Mas, apesar do realismo frio de Monck e dos alertas dos ensaístas do Demos sobre a necessidade de defender a privacidade - e não investigá-la -, Beckett aponta para algo novo que está acontecendo: a capacidade e disposição do público para contribuir na produção de sua narrativa.
Podemos vislumbrar um mundo no qual aqueles que estão ávidos por dizer alguma coisa agora podem fazê-lo, se bem que para audiências muitas vezes restritas.
Quem desejar prestar testemunho sobre horrores e maravilhas pode transmitir suas palavras e imagens. Quem se indigna com suspeitas de delitos empresariais ou governamentais pode encontrar ferramentas que permitem investigar e expor.
Tudo isso resulta em considerável ganho de poder e, se não implica ainda que a prática do jornalismo tal qual o conhecemos esteja destronada - algo que espero jamais aconteça -, ao menos oferece a democrática possibilidade de nos tornarmos, nós todos, heróis.

JOHN LLOYD é autor de What the Media Do to Our Politics [O Que a Mídia Faz para Nossa Política] e colaborador do jornal Financial Times, onde a íntegra deste texto foi publicada.

Tradução de Paulo Migliacci. Caderno Mais!

Saturday, November 29, 2008

Os sonhos procedem de Zeus

Durante nove dias aumentaram gradativamente as flechas do deus. No décimo, Aquiles convocou o povo à guerra. "Átridas! Creio que teremos que retroceder, voltando a ser errantes se escaparmos de morrer; se não, a guerra e a peste acabarão com os aqueus. Antes, porém, consultemos um adivinho, sacerdote ou intérprete de sonhos, para que nos diga porque se irritou tanto Febo Apolo, pois também o sonho procede de Zeus".

Ilíada, I - Jorge Luis Borges - Livro dos Sonhos

Friday, November 28, 2008

o1 - Câncer é a doença que mais mata jovens de 5 a 18 anos

Segunda principal causa de morte no país, o câncer responde pela maior parte dos óbitos por doenças entre crianças e adolescentes de cinco a 18 anos. Entre um e quatro anos, a doença também aparece entre as dez principais causas.
Os dados foram divulgados ontem pelo Inca (Instituto Nacional de Câncer), que fez um mapeamento da doença no Brasil. Segundo o levantamento, realizado com base em informações do Ministério da Saúde e dos registros de 20 cidades das cinco regiões do país, a taxa de mortalidade pela doença na população até 18 anos foi de 40,03 por um milhão entre 2001 e 2005 - 44,1 no caso dos meninos e 35,84 no caso das meninas.
De acordo com o coordenador de prevenção e vigilância do Inca, Cláudio Noronha, o número é compatível com a média mundial, mas está acima do verificado nos países desenvolvidos. Segundo ele, de 1979 a 2005 a taxa de mortalidade infantil pela doença caiu no país: 0,27% ao ano no sexo masculino e 0,04% no feminino.
O resultado foi puxado pelo desempenho das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, que apresentaram quedas significativas no período. Já o Norte e o Nordeste registraram aumento na proporção de mortos. As taxas médias de mortalidade nessas duas regiões, porém, continuam abaixo das demais. No país, elas oscilam de 35,12 a 46,19 mortes por um milhão.
Segundo Noronha, uma das explicações possíveis para esse comportamento é a melhoria do diagnóstico nas duas regiões, que passaram a identificar melhor as causas das mortes. Na década de 70, quase 50% dos óbitos de crianças e adolescentes no Nordeste entravam na categoria "causas mal definidas", enquanto no Sudeste eram apenas 10%. Hoje, apesar de haver diferenças, a situação é mais homogênea.
Em relação à incidência, o tipo mais comum de câncer infanto-juvenil é a leucemia, que respondeu por 29% dos casos registrados no país no período. Em segundo lugar vem o linfoma (15,5%) e, em terceiro, os tumores do sistema nervoso central (13,4%). Este, porém, ocupa o segundo lugar na mortalidade, à frente do linfoma e atrás da leucemia.
O presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica, Renato Melaragno, alertou que os sintomas das doenças não costumam se diferenciar daqueles provocados por doenças comuns na infância, como febre alta e dor no corpo.
No caso da estudante Izabella Ferrão, 13, que trata de um osteossarcoma no fêmur, o diagnóstico foi dificultado pela paixão da menina por esportes. Acostumada a jogar handebol, ela não deu importância quando percebeu um inchaço na perna direita, em abril. "Achei que fosse causado pelo exercício. Minha mãe também não achou que era grave", diz.
Apenas em junho, dois meses depois, é que uma visita ao ortopedista revelou o tumor. Ela iniciou então a quimioterapia e fez uma cirurgia para extirpar a doença. Hoje, com a perna imobilizada, ela faz quimioterapia, mas vê cada vez mais próximo o sonho de voltar a jogar.

o2 - José Alencar diz que se sentiu como "cobaia" no tratamento

Na luta contra o câncer desde 1997, quando teve um tumor diagnosticado no rim direito, o vice-presidente José Alencar afirmou ontem sentir-se como uma "cobaia" durante o tratamento. O desabafo foi feito a uma platéia de especialistas do Inca, no Rio, onde ele participou do lançamento da pesquisa "Câncer na criança e no adolescente no Brasil".
"É preciso que haja uma evolução no tratamento de câncer de tal forma que o paciente fique mais seguro, porque no fim o paciente vira uma cobaia, que é o que está acontecendo comigo", afirmou o vice-presidente, que atualmente luta contra um tumor reincidente no abdômen. No total, ele já retirou sete nódulos.
Bem-humorado, Alencar pediu desculpas aos médicos, mas afirmou que tinha que aproveitar a oportunidade para expor suas opiniões porque está do "outro lado".
Ele defendeu a importância de os profissionais trocarem experiências entre si e darem mais atenção aos pacientes. Citando seu próprio caso, contou como, ainda em 1997, descobriu outros tumores no estômago que teriam permanecido incógnitos se não fosse por sua insistência.
"Eu insisti para fazerem uma endoscopia e, por isso, encontraram três nódulos no meu estômago", afirmou. "Há uma submissão dos pacientes no tratamento. Eu sou um paciente paciente, mas acho que é preciso que o médico ouça o outro lado, porque isso pode contribuir para o tratamento."
Elogiado pelos presentes por expor a doença, contribuindo para a conscientização da população, Alencar disse ainda não ter medo da morte. "Não tenho medo da morte, tenho medo da desonra. Estamos vivendo em um tempo em que são muito poucos os homens públicos com quem se pode fotografar", disse.

Denise Menchen - Folha de São Paulo - da Sucursal do Rio

Wednesday, November 26, 2008

Tuesday, November 25, 2008

Morte e vida
JOÃO PEREIRA COUTINHO

Compareço a um funeral. Um desses funerais a que vamos por convenção social ou familiar, não por ligação pessoal ou sentimental. Conhecia mal o defunto.
A minha família conhecia-o bem. E sempre se espantou com a longevidade do senhor: 97 anos. Uma proeza que só a medicina moderna é capaz de produzir na sua busca pela imortalidade possível? Sem dúvida.
Mas é preciso olhar para o outro lado da questão: os últimos 20 anos foram passados na cama ou na cadeira de rodas, em frustração ou agonia crescentes. O homem morreu aos 97. Em rigor, morreu talvez pelos 80. O resto foi desperdício.
Estou sendo cruel? Talvez. Mas a vida é cruel. Sobretudo quando a prolongamos excessivamente. E, em minha defesa, cito um artigo recente: a revista britânica The Lancet resolveu fazer um estudo sobre a qualidade de vida a partir dos 50 anos. Porque viver mais não significa viver melhor. A partir dos 50 anos, que esperança boa de vida têm os habitantes da União Européia?
Os homens podem contar com nove a 23 anos de vida saudável. As mulheres, com dez a 24. Em outras palavras: até aos 73 /74 anos, no máximo, homens e mulheres podem viver com dignidade. A partir dos 73 / 74, entramos em período de prorrogação. Como no futebol.
A Dinamarca leva a Copa como o país onde os velhos vivem melhor a partir dos 50. A Estônia é o pior país.
Portugal fica algures pelo meio, invertendo apenas a tendência entre homens e mulheres: a partir dos 50, os homens podem contar, em média, com 14 anos de vida saudável. As mulheres, com 12.
Duas conclusões da revista.
A primeira é que o investimento nos cuidados geriátricos melhora a qualidade de vida a partir dos 50. Lógico. O meu defunto, aliás, é a prova disso: a partir dos 50, a medicina deu-lhe uma ajuda, ano após ano, para ele ir derrotando as maleitas todas que atacavam a sua carcaça: diabetes, hipertensão e, antes do derrame cerebral que o levou ao tapete, operações cirúrgicas várias em várias zonas do corpo que ameaçavam entrar em greve. Pequenas batalhas que a medicina foi vencendo.
Mas existe uma segunda conclusão no estudo: a medicina vence batalhas, mas não vence a guerra. Ela não derrota a mortalidade do corpo.
E, se a Lancet está certa, a partir dos 73 (para os homens) e dos 74 (para as mulheres), o prolongamento da vida pode confundir-se com um inútil e tantas vezes doloroso adiamento do fim. Que fazer?
Regresso ao funeral. Eu, caminhando atrás do carro fúnebre, olhando em volta. Pessoas, poucas.
Velhos, alguns. Crianças ou jovens, nenhum. Curioso: o homem tinha netos e bisnetos. Nenhum deles está presente.
Eu próprio, com os meus 32 anos, sou talvez a personagem mais nova desse filme. Comento o fato com alguém. Dizem-me que é normal: nos funerais modernos, é importante "proteger" (atenção ao verbo) as crianças e os jovens da morte. "Proteger". Da morte.
Admirável. Durante séculos, a civilização soube acomodar a morte entre os vivos, porque uma vida feliz implicava, como Montaigne dizia, aprender a morrer: aprender que a finitude da vida revaloriza a própria vida. Porque só a consciência plena do fim nos permite uma entrega total aos entretantos. Como dizia um conhecido historiador francês, a morte estava no centro da vida como a igreja no centro da vila.
Tudo mudou. Conheço casos de gente que, por questão de princípio, não vai a funerais (exceto, presumo, ao próprio). Hoje, a morte é um embaraço que se intromete entre uma festa de juventude permanente.
Mesmo que essa festa tenha prazo: 73 ou 74 anos de saúde boa para homens ou mulheres. O resto é desperdício.
O resto é pó, como o pó que cai sobre o caixão. Olho para a cova, ouço a terra que cai sobre a madeira. Tenho um céu de chumbo sobre mim. Irá chover, não tarda. Mas, antes que os céus se abram em choro sobre o mundo, dou por mim numa oração íntima em frente ao meu destino. E então peço a esse Deus desconhecido que me dê a graça e a sabedoria de partir na altura certa.
Meu Deus, faz com que eu morra vivo. Não me dês a eternidade ilusória nem suspendas o meu pobre corpo no limbo dos homens. Ensina-me a morrer, a única forma de eu aprender a viver com a consciência de que todos os dias da minha vida são frágeis e temporários, e, por isso, valiosos. Concede-me essa dádiva, e eu prometo que não irei estragá- la com a ganância própria dos desesperados.

Na Ilustrada.

Monday, November 24, 2008


PRÓLOGO

Em um ensaio do Espectador (setembro de 1712), compilado neste volume, Joseph Addison observou que a alma humana quando sonha, desligada do corpo é, a um tempo, o teatro, os atores e a platéia. Podemos acrescentar que é também a autora da fábula que está vendo. Existem textos semelhantes de Petrônio e de dom Luis de Góngora.
Uma leitura literal da metáfora de Addison poderia conduzir-nos à tese perigosamente atraente de que os sonhos constituem o mais antigo e o não menos complexo dos gêneros literários. Esta curiosa tese, que não nos custa nada aprovar para a boa execução deste prólogo e para a leitura do texto, poderia justificar a composição de uma história geral dos sonhos e de seu influxo sobre as letras. A miscelânea apresentada neste volume, compilado para distrair o leitor curioso, ofereceria algum material. Essa história hipotética exploraria a evolução e a ramificação de um gênero tão antigo, desde os sonhos proféticos do Oriente até os sonhos alegóricos e satíricos da Idade Média e as puras diversões de Carrol e de Franz Kafka. E separaria, em seguida, os sonhos inventados pelo sono e os sonhos inventados pela vigília.
Este livro de sonhos que os leitores tornarão a sonhar abarca os sonhos da noite — os que eu assino, por exemplo — sonhos do dia, que são um exercício voluntário da nossa mente, e outros de raízes perdidas: digamos, o Sonho (anglo-saxão) da Cruz.
O sexto livro da Eneida segue uma tradição da Odisséia e declara que são duas as portas divinas através das quais nos chegam os sonhos: a de marfim, que é a dos sonhos enganadores, e a de chifre, que é a dos sonhos proféticos. Face aos materiais escolhidos, dir-se-ia que o poeta sentiu de uma forma obscura que os sonhos que se antecipam ao futuro são menos preciosos do que os enganadores, os quais são uma invenção espontânea do homem que dorme.
Há um tipo de sonho que merece nossa especial atenção. Refiro-me ao pesadelo, que leva em inglês o nome de nightmare, ou égua da noite, expressão que sugeriu a Victor Hugo a metáfora de cheval noire de Ia nuit, mas que, segundo os etimologistas, equivale a ficção ou fábula da noite. Alp, seu nome em alemão, faz alusão ao elfo ou incubo que oprime o sonhador que lhe impõe imagens horrendas. E Ephialtes, que é o termo grego, procede de uma superstição semelhante.
Coleridge deixou escrito que as imagens da vigília inspiram sentimentos, ao passo que no sonho os sentimentos inspiram as imagens (que sentimento misterioso e complexo lhe haverá inspirado o Kubla Khan, que foi dádiva de um sonho?). Se um tigre entrasse neste quarto, sentiríamos medo; se sentimos medo no sonho, engendramos um tigre. Esta seria a razão visionária do nosso alarme. Falei em um tigre, porém como o medo precede à aparição improvisada para entendê-lo, podemos projetar o horror sobre uma figura qualquer, que durante a vigília não é necessariamente horrorosa. Pode ser um busto de mármore, um porão, a outra face de una moeda, um espelho. Não existe uma única forma no universo que não possa contaminar-se de horror. Daí, talvez, o sabor peculiar do pesadelo, que é muito diferente do espanto e dos espantos que é capaz de infligir-nos a realidade. As nações germânicas parecem ter sido mais sensíveis a esta vaga espreita do mal do que as de linhagem latina; recordemos as vozes intraduzíveis de eery, weird, uncanny, unheimlich. Cada idioma produz o que necessita.
As artimanhas da noite foram penetrando as artimanhas do dia. A invasão durou séculos; o doentio reinado da Divina Comédia não é um pesadelo, com exceção talvez do canto quarto, de reprimido mal-estar; é um lugar onde ocorrem fatos atrozes. A lição da noite não tem sido fácil. Os sonhos da Escritura não têm estilo de sonho: são profecias que manejam, de maneira demasiadamente coerente, um mecanismo de metáforas. Os sonhos de Quevedo parecem a obra de um homem que não tivesse sonhado jamais, como essa gente cimeriana mencionada por Plínio. Depois virão os outros. O influxo da noite e do dia será recíproco; Beckford e De Quincey, Henry James e Poe, têm sua raiz no pesadelo e costumam perturbar nossas noites. Não é improvável que mitologias e religiões tenham uma origem semelhante.
Quero deixar consignada minha gratidão a Roy Bartholomew, sem cujo estudioso fervor me teria resultado impossível compilar este livro.

J.L.Borges - Buenos Aires, 27 de outubro de 1975

O Livro dos Sonhos

Sunday, November 23, 2008



"For 3 years you YouTubers have been ripping us off, taking tens of thousands of our videos and putting them on YouTube. Now the tables are turned. It's time for us to take matters into our own hands.

We know who you are, we know where you live and we could come after you in ways too horrible to tell. But being the extraordinarily nice chaps we are, we've figured a better way to get our own back: We've launched our own Monty Python channel on YouTube.

No more of those crap quality videos you've been posting. We're giving you the real thing - HQ videos delivered straight from our vault.

What's more, we're taking our most viewed clips and uploading brand new HQ versions. And what's even more, we're letting you see absolutely everything for free. So there!

But we want something in return.

None of your driveling, mindless comments. Instead, we want you to click on the links, buy our movies & TV shows and soften our pain and disgust at being ripped off all these years."

http://pythonline.com/

And so this is Xmas (one more time)

O suplício de Papai Noel
Claude Lévi-Strauss

Inédito em livro no Brasil e previsto para ser lançado na 2ª semana de dezembro pela Cosac Naify, ensaio de 1952 discute a criação do mito moderno do Natal

Há cerca de três anos, ou seja, desde que a atividade econômica voltou quase ao normal, a comemoração do Natal assumiu na França uma dimensão desconhecida antes da [Segunda] Guerra.
Esse desenvolvimento, tanto por sua importância material quanto pelas formas em que se apresenta, certamente é resultado direto da influência e do prestígio dos Estados Unidos.
Assim, vimos surgir os grandes pinheiros, montados nos cruzamentos ou nas avenidas principais, iluminados à noite; os papéis decorativos para embrulhar os presentes de Natal; os cartões de boas-festas e o costume de expô-los em cima da lareira dos destinatários na semana fatídica; as campanhas do Exército da Salvação erguendo nas ruas e nas praças seus caldeirões como se fossem potinhos de pedintes; por fim, as pessoas vestidas de Papai Noel para receber os pedidos das crianças nas grandes lojas de departamentos.
Todos esses costumes que, poucos anos atrás, pareciam pueris e barrocos aos franceses que visitassem os EUA, como um dos sinais mais evidentes da profunda incompatibilidade entre as duas mentalidades, agora se implantaram e se aclimataram na França com uma facilidade e uma amplitude que se tornam assunto a ser estudado pelo historiador das civilizações.
Nesse campo, como em outros, estamos assistindo a uma vasta experiência de difusão, não muito diferente daqueles fenômenos arcaicos que estávamos acostumados a estudar nos exemplos distantes do "briquet à piston" ou da "pirogue à balancier".
Mas é mais fácil e ao mesmo tempo mais difícil estudar fatos que se desenrolam sob nossos olhos, tendo como palco nossa própria sociedade.

Empréstimo

Mais fácil, porque a continuidade da experiência está salvaguardada, com todos os seus momentos e cada uma de suas nuanças; e também mais difícil, porque são nessas raríssimas ocasiões que percebemos a extrema complexidade das transformações sociais, mesmo as mais tênues; e porque as razões aparentes que atribuímos aos acontecimentos nos quais somos atores são muito diferentes das causas reais que neles nos determinam algum papel.
Assim, seria simplista demais explicar o desenvolvimento da comemoração do Natal na França apenas pela influência dos EUA.
O empréstimo é inegável, mas não traz consigo razões suficientes para explicar o fenômeno. Enumeremos brevemente as mais evidentes: há muitos americanos na França, os quais comemoram o Natal à sua maneira; o cinema, os "digests", os romances e também algumas reportagens da grande imprensa tornaram conhecidos os costumes americanos, e estes gozam do prestígio atribuído à potência militar e econômica dos EUA.
Tampouco se exclui a conjectura de que o Plano Marshall tenha favorecido, direta ou indiretamente, a importação de algumas mercadorias ligadas ao rito natalino.
Mas tudo isso não basta para explicar o fenômeno.
Costumes importados dos EUA impõem-se a camadas da população que lhes desconhecem a origem; os meios operários, onde a influência comunista poderia desacreditar tudo o que traz a marca "made in USA", os adotam com a mesma disposição dos demais.
Assim, em vez de uma difusão simples, cabe invocar aquele processo tão importante que Kroeber, o primeiro a identificá-lo, chamou de "difusão por estímulo" ("stimulus diffusion"): o costume importado não é assimilado, mas funciona como catalisador, ou seja, provoca com sua presença o surgimento de um uso semelhante que já estava potencialmente presente no meio secundário.
Ilustremos esse ponto com um exemplo diretamente relacionado ao nosso tema.
O industrial fabricante de papel que vai aos EUA, a convite dos colegas americanos ou como membro de uma missão econômica, constata que lá fabricam papéis especiais para os pacotes de Natal; ele adota a idéia, e temos aí um fenômeno de difusão.

Exigência estética

A dona-de-casa parisiense que vai à papelaria do bairro comprar o papel necessário para embrulhar seus presentes vê na vitrine papéis mais bonitos e de melhor acabamento do que aqueles que costumava usar; ela ignora totalmente os costumes americanos, mas esse papel satisfaz uma exigência estética e exprime uma disposição afetiva que já existia, só não dispunha de meios de expressão.
Ao escolhê-lo, a dona-de-casa não adota diretamente (como o fabricante) um costume estrangeiro, mas esse costume, tão logo é reconhecido, estimula nela o nascimento de um costume igual. Em segundo lugar, não se pode esquecer que a comemoração natalina, já antes da guerra, estava em processo ascendente na França e em toda a Europa. Isso estava relacionado, inicialmente, à melhoria progressiva do nível de vida, mas também a motivos mais sutis.
Com as características que conhecemos, o Natal é uma festa essencialmente moderna, apesar dos múltiplos traços arcaizantes. O uso do visco não é, pelo menos em primeira instância, uma herança druídica, pois parece ter voltado à moda na Idade Média.

Árvore de Natal

O pinheiro de Natal não é mencionado em parte nenhuma antes de certos textos alemães do século 17; ele segue para a Inglaterra no século 18 e chega à França apenas no século 19. O dicionário Littré parece conhecê-lo pouco ou sob forma muito diferente da nossa, pois o define (no verbete "Natal") com a designação: "Em alguns países, de um ramo de pinheiro ou de azevinho com diferentes enfeites, guarnecido principalmente de balas e brinquedos para serem dados às crianças, que fazem uma tremenda festa".
A variedade de nomes dados ao personagem incumbido de distribuir os brinquedos às crianças - Papai Noel, São Nicolau, Santa Claus - também mostra que ele é resultado de um fenômeno de convergência, e não um protótipo antigo conservado por toda parte.
O desenvolvimento moderno, porém, não é uma invenção: ele se limita a recompor peças e fragmentos de uma antiga comemoração, cuja importância nunca foi totalmente esquecida. Se a árvore de Natal, para o Littré, é quase uma instituição exótica, Cheruel nota de maneira significativa, em seu Dicionário Histórico das Instituições: "O Natal [...] foi, durante vários séculos e até uma época recente, a ocasião de festas em família".
Assim, estamos diante de um ritual cuja importância flutuou bastante ao longo da história; teve apogeus e declínios. A forma americana é apenas sua encarnação mais moderna. Aliás, essas rápidas indicações bastam para mostrar que, diante desse tipo de problema, é preciso desconfiar das explicações demasiado fáceis que apelam automaticamente aos "vestígios" e às "sobrevivências". Se nunca tivesse existido um culto às árvores nos tempos pré-históricos, que se prolongou em várias tradições folclóricas, a Europa moderna certamente não teria "inventado" a árvore de Natal.
No entanto - como mostramos mais acima -, ela é uma invenção recente. Essa invenção, porém, não nasceu do nada. Pois outros costumes medievais são plenamente comprovados: a chamada lenha de Natal (que inspirou um bolo natalino em Paris), um tronco espesso para arder a noite toda; os círios de Natal, com uma dimensão própria para a mesma finalidade; a decoração das casas (desde as Saturnais romanas, sobre as quais voltaremos a falar) com ramos verdes: hera, azevinho, pinheiro; por fim, e sem nenhuma relação com o Natal, os romances da Távola Redonda mencionam uma árvore sobrenatural recoberta de luzes.

Solução sincrética

Em tal contexto, a árvore de Natal surge como uma solução sincrética, isto é, concentra num só objeto exigências até então dispersas: árvore mágica, fogo, luz duradoura, verde persistente. Inversamente, Papai Noel, em sua forma atual, é uma criação moderna, e ainda mais recente é a crença que situa sua morada na Groenlândia, possessão dinamarquesa (o que obriga o país a manter uma agência de correio especial para responder às cartas de crianças do mundo inteiro), e o mostra viajando em um trenó puxado por renas.
Consta que esse aspecto da lenda se desenvolveu principalmente na última guerra, devido à presença de tropas americanas na Islândia e na Groenlândia.
E, no entanto, as renas não estão ali por acaso, visto que existem documentos renascentistas ingleses mencionando troféus de renas durante as danças de Natal, antes de qualquer crença em Papai Noel, e quem dirá da formação de sua lenda.
Assim, fundem-se e refundem-se elementos muito antigos, introduzem-se novos, encontram-se fórmulas inéditas para perpetuar, transformar ou reviver usos de velha data. Não há nada de especificamente novo - sem jogo de palavras - no renascimento do Natal.
Por que, então, ele desperta tanta emoção e por que é em torno da figura de Papai Noel que se concentra a animosidade de algumas pessoas?

Trecho de O Suplício de Papai Noel - ed. Cosac Naify - Tradução de DENISE BOTTMANN.

ToTeM

Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder
Ideologia, eu quero uma pra viver. Ideologia, pra viver

[ de um álbum no orkut ]


Se é certo que não há (ou há muito pouca) tradição revolucionária no Brasil, é nítido que havia uma tradição de rebeldia nascida e alimentada nos setores intelectualizados da pequena burguesia brasileira (profissionais liberais, estudantes, escritores, artistas, políticos, etc.). Em épocas distintas, e com matizes diversos, os contornos dessa linha de tradição podem ser traçados com nitidez: vem de Gregório de Matos a Plínio Marcos; está em Castro Alves, mas também está em Augusto dos Anjos; ela está madura, consciente, em Graciliano, e corrosiva, em Oswald de Andrade; está em Caetano Veloso, mas já esteve em Noel Rosa; esteve em 22, e também no Arena, no Oficina, no Opinião e no Cinema Novo, para citar apenas nomes e movimentos ligados à arte. A ironia, o deboche, a boêmia, a indagação desesperada, a anarquia, o fascínio pela utopia, um certo orgulho da própria marginalidade, o apetite pelo novo são algumas marcas dessa nossa tradição de rebeldia pequeno-burguesa. Hoje é possível perceber que essa rebeldia era fruto da incapacidade que os diversos projetos colonizadores sempre tiveram em assimilar amplos setores das camadas médias e dar-lhes uma função dinâmica no processo social. O que estava reservado ao intelectual pequeno-burguês antes do período a que estamos nos referindo? O jornalismo mal pago, o funcionalismo público, uma cadeira de professor de liceu, o botequim, a utopia, a rebeldia. Por falta de função ele era posto à margem. Até muito pouco tempo eram muito poucas as opções do estudante universitário — tudo era criado fora, o carro, a geladeira e a ideologia. Assim, o sistema econômico não tinha como assimilar a capacidade criadora dos melhores quadros da pequena burguesia que ficavam colocados, perigosamente, no limite da rebeldia. O que acontece agora, inversamente, é que a radical experiência capitalista que se faz aqui começa a dar sentido produtivo à atividade dos setores intelectualizados da pequena burguesia: na tecnocracia, no planejamento, nos meios de comunicação, na propaganda, nas carreiras técnicas qualificadas, na vida acadêmica orientada num sentido cada vez mais pragmático, etc. O disco, o livro, o filme, a dramaturgia, começam a ser produtos industriais. O sistema não coopta todos porque o capitalismo é, por natureza, seletivo. Mas atrai os mais capazes.

Rio, 8 de dezembro de 1975

In: Paulo Pontes e Chico Buarque – Gota D'Água – Rio de Janeiro - 1975 – Editora Civilização Brasileira.



Foto: Li Gimenes

Friday, November 21, 2008

A Esfera de Pascal

Talvez a história universal seja a história de algumas metáforas. Esboçar um capítulo dessa história é o fito desta nota.

Seis séculos antes da era cristã, o rapsodo Xenófanes de Colofônio, farto dos versos homéricos que recitava de cidade em cidade, condenou os poetas que atribuíram traços antropomórficos aos deuses e propôs aos gregos um único Deus, que era uma esfera eterna. No Timeu, de Platão, lê-se que a esfera é a figura mais perfeita e mais uniforme, porque todos os pontos da superfície eqüidistam do centro; Olof Gigon (Ursprang der Griechischen Philosophie, 183) entende que Xenófanes falou analogicamente; o Deus era esferoidal por ser essa forma a melhor, ou menos má, para representar a divindade. Parmênides, quarenta anos depois, repetiu a imagem ("o Ser é semelhante à massa de uma esfera bem arredondada, cuja força é constante do centro em qualquer direção"); Calogero e Mondolfo entendem que ele intuiu uma esfera infinita, ou infinitamente crescente, e que as palavras transcritas acima têm um sentido dinâmico (Albertelli: Gli Eleati, 148). Parmênides lecionou na Itália; poucos anos antes de sua morte, o siciliano Empédocles de Agrigento urdiu uma laboriosa cosmogonia; há uma etapa em que as partículas da terra, da água, do ar e do fogo integram uma esfera sem fim, "o Sphairos redondo, que exulta em sua solidão circular".

A história universal seguiu seu curso, os deuses demasiado humanos que Xenófanes atacara foram rebaixados a ficções poéticas ou a demônios, mas afirmou-se que um deles, Hermes Trismegisto, ditara um número variável de livros (42, segundo Clemente de Alexandria; 20.000, segundo Jâmblico; 36.525, segundo os sacerdotes de Thot, que também era Hermes), em cujas páginas estavam escritas todas as coisas. Fragmentos dessa biblioteca ilusória, compilados ou forjados desde o século I1, formam aquilo que recebe o nome de Corpus Hermeticum; em um desses fragmentos, ou no Asclépio, também atribuído a Trismegisto, o teólogo francês Alain de Lille – Alanus de Insulis – descobriu em fins do século XII a seguinte fórmula, que as idades vindouras não esqueceriam: "Deus é uma esfera inteligível, cujo centro está em toda a parte e a circunferência em nenhuma". Os pré-socráticos falaram de uma esfera sem fim; Albertelli (como, antes, Aristóteles) pensa que falar assim é cometer uma contradictio in adjecto, pois sujeito e predicado se anulam; isso bem pode ser verdade, mas a fórmula dos livros herméticos deixa-nos, quase, intuir essa esfera. No século XIII, a imagem reapareceu no simbólico Roman de la Rose, que a apresenta como sendo de Platão, e na enciclopédia Speculum Triplex; no XVI, o último capítulo do último livro de Pantagruel referiu-se a "essa esfera intelectual, cujo centro está em toda a parte e a circunferência em nenhuma, que chamamos Deus". Para a mente medieval, o sentido era claro: Deus está em cada uma de suas criaturas, mas nenhuma O limita. "O céu, o céu dos céus, não te contém", disse Salomão (I Reis 8, 27); a metáfora geométrica da esfera deve ter parecido uma glosa dessas palavras.

O poema de Dante preservou a astronomia ptolomaica, que durante mil e quatrocentos anos regeu a imaginação dos homens. A terra ocupa o centro do universo. É uma esfera imóvel; em torno dela giram nove esferas concêntricas. As sete primeiras são os céus planetários (céus da Lua, de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno); a oitava, o céu das estrelas fixas; a nona, o céu cristalino, também chamado Primeiro Móvel. Este é rodeado pelo Empíreo, que é feito de luz. Toda essa laboriosa máquina de esferas ocas, transparentes e giratórias (um dos sistemas requeria cinqüenta e cinco) chegara a ser uma necessidade mental; De Hipothesibus Motuum Coelestium Commentariolus é o tímido título que Copérnico, negador de Aristóteles, deu ao manuscrito que transformou nossa visão do cosmos. Para um homem, para Giordano Bruno, a ruptura das abóbadas estelares foi uma libertação. Este proclamou, na Ceia das Cinzas, que o mundo é o efeito infinito de uma causa infinita e que a divindade está próxima, "pois está dentro de nós mais ainda que nós mesmos estamos dentro de nós". Procurou palavras para explicar o espaço copernicano aos homens e em uma página famosa estampou: "Podemos afirmar com certeza que o universo é todo centro, ou que o centro do universo está em toda a parte e a circunferência em nenhuma" (Da Causa, do Princípio e da Unidade, V).

Isso foi escrito com exultação em 1584, ainda à luz do Renascimento; setenta anos depois, não restava nem um reflexo desse fervor, e os homens sentiram-se perdidos no tempo e no espaço. No tempo, porque, se o futuro e o passado são infinitos, não haverá realmente um quando; no espaço, porque, se todo ser eqüidista do infinito e do infinitesimal, tampouco haverá um onde. Ninguém está em algum dia, em algum lugar; ninguém sabe o tamanho de seu rosto. No Renascimento, a humanidade acreditou que chegara à idade viril, e assim o declarou pela boca de Bruno, de Campanella e de Bacon. No século XVII acovardou-a uma sensação de velhice; para se justificar, exumou a crença em uma lenta e fatal degeneração de todas as criaturas, por obra do pecado de Adão. (No quinto capítulo do Gênesis consta que "todos os dias de Matusalém foram novecentos e setenta e nove anos"; no sexto, que "havia gigantes sobre a terra naqueles dias".) O primeiro aniversário da elegia Anatomy of the World, de John Donne, lamentou a vida brevíssima e a estatura mínima dos homens contemporâneos, que são como as fadas e os pigmeus; Milton, segundo a biografia de Johnson, temeu que o gênero épico já fosse impossível na terra; Glanvill entendeu que Adão, "medalha de Deus", desfrutou de uma visão telescópica e microscópica; Robert South famosamente escreveu: "Um Aristóteles não foi mais que escombros de Adão, e Atenas, os rudimentos do Paraíso". Naquele século desanimado, o espaço absoluto que inspirou os hexâmetros de Lucrécio, o espaço absoluto que para Bruno fora uma libertação, foi um labirinto e um abismo para Pascal. Este abominava o universo e desejaria adorar a Deus, mas Deus, para ele, era menos real que o abominado universo. Deplorou que o firmamento não falasse, comparou nossa vida à de náufragos em uma ilha deserta. Sentiu o peso incessante do mundo físico, sentiu vertigem, medo e solidão, e expressou-os em outras palavras: "A natureza é uma esfera infinita, cujo centro está em toda a parte e a circunferência em nenhuma". O texto é assim publicado por Brunschvicg, mas a edição crítica de Tourneur (Paris, 1941), que reproduz as rasuras e vacilações do manuscrito, revela que Pascal começou a escrever effroyable: "Uma esfera terrível, cujo centro está em toda a parte e a circunferência em nenhuma".
Talvez a história universal seja a história da vária entonação de algumas metáforas.

Buenos Aires, 1951.

Jorge Luis Borges - OUTRAS INQUISIÇÕES - Otras Inquisiciones - Tradução de Sérgio Molina

Creio que em cada época se chega a momentos de crise, como as descritas por Nietzsche na Segunda consideração extemporânea, sobre os malefícios dos estudos históricos. O passado nos condiciona, nos oprime, nos ameaça. A vanguarda histórica (mas aqui eu entenderia vanguarda também como categoria meta-histórica) procura ajustar contas com o passado. "Abaixo o luar", slogan futurista é um programa típico de toda vanguarda, basta colocar outra coisa no lugar de luar. A vanguarda destrói o passado, desfigura-o: as Demoiselles d'Avignon representam o gesto típico da vanguarda; depois, a vanguarda vai mais além, destrói a figura e, em seguida, a anula, chegando ao abstrato, ao informal, à tela branca, à tela rasgada, à tela queimada [...].
Mas chega um momento em que a vanguarda [...] não pode ir mais além, porque já produziu uma metalinguagem que fala de seus textos impossíveis (a arte conceptual). A resposta [...] consiste em reconhecer que o passado, já que não pode ser destruído porque sua destruição leva ao silêncio, deve ser revisitado: com ironia, de maneira não inocente. Penso [nesta] atitude como a de um homem que ama uma mulher muito culta e sabe que não pode dizer-lhe "eu te amo desesperadamente" porque sabe que ela sabe (e ela sabe que ele sabe) que esta frase já foi escrita por Liala.
Entretanto, existe uma solução. Ele poderá dizer: "Como diria Liala, eu te amo, desesperadamente". A essa altura, tendo evitado a falsa inocência, tendo dito claramente que não se pode mais falar de maneira inocente, ele terá dito à mulher o que queria dizer: que a ama, mas que a ama em uma época de inocência perdida. Se a mulher entrar no jogo, terá igualmente recebido uma declaração de amor. Nenhum dos dois interlocutores se sentirá inocente, ambos terão aceito o desafio do passado, do já dito que não se pode eliminar, ambos jogarão conscientemente e com prazer o jogo da ironia... Mas ambos terão conseguido mais uma vez falar de amor.

Umberto Eco - Pós-escrito a O Nome da Rosa. 1984.

Thursday, November 20, 2008

Sunday, November 16, 2008

Filósofos ao piano
JEAN BIRNBAUM

François Noudelmann gosta dos filósofos. Ele próprio pianista, desenvolveu uma escuta terna da filosofia em seu novo livro.
Em Le Toucher des Philosophes - Sartre, Nietzsche e Barthes au Piano [O Toque dos Filósofos - Sartre, Nietzsche e Barthes ao Piano, ed. Gallimard, 190 págs., 16, R$ 47], aborda a música como um espaço discreto e fabuloso, em que os filósofos marcam encontro com seus admiradores para lhes mostrar um rosto radicalmente novo. Coloque esses espíritos brilhantes diante de um piano, diz ele, e de repente os verá de um modo como nunca antes os viu.
Com muita doçura, o autor apresenta três deles. Retrata o velho Sartre em seu apartamento parisiense, sentado sobre uma cadeira simples e dedilhando como pode os noturnos de Chopin com seus dedos desajeitados, que acariciam as teclas sem penetrar o teclado.
Mostra um Nietzsche solitário, errando entre pensões e quartos de hotel, e cujas mãos tão finas impunham a Wagner uma doçura feminina. Descreve a intimidade de Barthes com o instrumento quando, todas as tardes, tocava Schumann ao lado da mãe.
Schumann, para Barthes, era o compositor "da criança que não tem outro vínculo senão com a mãe".

Mergulho no feminino

Além das diferenças entre eles, existe aqui um ponto em comum entre esses três homens: para cada um deles, o piano é uma "religião maternal"; ele carrega a nostalgia de uma infância em que o pai estava ausente e a música era estreitamente associada a um mergulho no feminino.
"Mal sabia tocar, o pequeno Friedrich já compunha duas sonatas para sua mãe", lembra Noudelmann. Quanto ao jovem Sartre, que odiava a música de igreja que seus avós tanto prezavam, aprendeu a apreciar outro tipo de música ouvindo sua mãe interpretar as variações de César Franck, antes de mergulhar com ela nas delícias do piano a quatro mãos.
Mas, se o autor se alonga dessa maneira sobre as ligações entre a exaltação musical e a filiação materna, não é para fazer uma análise freudiana da relação que esses três intelectuais tiveram com o piano. Antes, é para destacar que essa prática engaja uma memória carnal, um tempo de intimidade que remete àquilo que o desejo humano tem de mais incontrolável. Ele revela a dissonância entre elaboração intelectual e impulso carnal: "A prática do piano faz parte dessas temporalidades discretas que fogem do discurso da maestria, sujeita aos riscos do passivo e do descontínuo", observa.
Noudelmann não prepara nenhuma armadilha para os filósofos que acompanha. Deseja apenas apreender o que acontece nessa "caminhada" que os leva para fora de si mesmos.

[ A íntegra deste texto saiu no "Le Monde". Tradução de Clara Allain. Caderno Mais! ]


Por mais frio, reprimido ou sexista que meu pai possa parecer, pelos padrões contemporâneos, eu me sinto grato pelo fato de nunca ter me declarado abertamente que me amava. Meu pai amava a privacidade - ou seja, respeitava a esfera pública. Acreditava na contenção, no protocolo, na razão, porque, sem eles - acreditava - , seria impossível uma sociedade debater e tomar as decisões que melhor atendessem a seus interesses.
Talvez tivesse sido agradável, especialmente para mim, se ele tivesse aprendido a demonstrar mais seus sentimentos por minha mãe. Mas cada vez que ouço hoje em dia um daqueles "eu te amos" parentais berrados ao celular, me sinto um homem de sorte por ter tido o pai que tive. Ele amava seus filhos mais do que tudo.
E saber que ele sentia isso, mas não sabia declará-lo; saber que ele podia confiar que eu sabia disso e não esperava que ele o declarasse - esse era o próprio núcleo central do amor que eu sentia por ele. Amor esse que eu, por minha vez, tomei o cuidado de nunca declarar em voz alta a ele. Mas essa foi a parte fácil. Entre mim e a situação em que meu pai está agora - ou seja, morto -, nada pode ser transmitido, exceto o silêncio. Ninguém tem mais privacidade que os mortos.

Jonathan Franzen

Amor sem pudor
JONATHAN FRANZEN

Principal nome da nova geração de escritores norte-americanos, Jonathan Franzen descreve como o uso do celular modificou o espaço público e criou novas formas de sensibilidade

Um dos grandes fatores irritantes da tecnologia moderna é que, quando alguma novidade tecnológica faz minha vida ficar sensivelmente pior e continua a encontrar maneiras novas e diferentes de me causar problemas, sou autorizado a me queixar dela por apenas um ano ou dois, antes que os marqueteiros do "cool" comecem a me mandar parar com isso - vovô, a vida hoje em dia é assim mesmo!
Não sou contra as novidades tecnológicas. A secretária eletrônica digital e a identificação do número de telefone de quem liga para você - que, juntas, acabaram com a tirania do telefone tocando - me parecem ser duas das invenções realmente importantes do final do século 20.
E como amo meu BlackBerry, que me permite responder a e-mails longos e indesejados com algumas linhas telegráficas ofegantes pelas quais, mesmo assim, o destinatário é obrigado a sentir-se grato, já que as escrevi com meus polegares. A privacidade, para mim, não quer dizer manter minha vida pessoal escondida de outras pessoas.
Os avanços tecnológicos com os quais tenho problema são os insultos que continuam a insultar, as dores do passado que continuam a provocar dor.
A TV dos aeroportos, por exemplo: parece que é assistida ativamente por não mais que 1 viajante em cada 10 (a não ser que estejam exibindo futebol), mas incomoda ativamente os outros nove.
Ano após ano, em um aeroporto após o outro, ela é responsável por uma diminuição pequena, mas aparentemente permanente, na qualidade de vida do viajante médio.
Outro exemplo: a obsolescência planejada de grandes softwares e sua substituição por softwares ruins. Ainda não me conformo com o fato de que o melhor processador de texto já escrito, o WordPerfect 5.0 para DOS, não funcione mais em nenhum computador que eu possa comprar hoje.
Mas essas são apenas irritações menores. O avanço tecnológico que causou danos duradouros de importância social real - e que, apesar de continuar a fazê-lo, faz você correr o risco de ser ridicularizado se se queixar dele publicamente hoje - é o telefone celular.

Cigarro e celular

Há dez anos, Nova York (onde vivo) era repleta de espaços públicos mantidos coletivamente em que os cidadãos demonstravam respeito por sua comunidade, não a obrigando a tomar conhecimento de suas vidas amorosas banais.
O mundo de dez anos atrás ainda não tinha sido totalmente dominado pela verborréia. Ainda era possível ver o uso de Nokias como uma ostentação ou afetação de ricos. Ou, sob uma óptica mais tolerante, como um mal, uma deficiência ou uma muleta.
Afinal, na Nova York do final dos anos 1990, a transmissão de cultura da nicotina para cultura do celular ainda estava em processo. Num dia o volume no bolso da camisa era um maço de Marlboro; no dia seguinte, era um Motorola.
Um dia a garota bonita, vulnerável por estar desacompanhada, estava ocupando suas mãos, sua boca e sua atenção com um cigarro; no dia seguinte, ocupava-o com uma conversa muito importante com uma pessoa que não era você.
Num dia uma multidão se reunia em torno do primeiro adolescente no playground a carregar um maço de cigarros; no dia seguinte, se reunia em volta do primeiro a ostentar uma tela colorida.
Num dia, os viajantes acendiam seus isqueiros assim que desciam do avião; no dia seguinte, estavam discando números em seus celulares.
Dependências de um maço de cigarros por dia viraram contas mensais de US$ 100. A poluição por fumaça virou poluição sonora.
E, apesar de o fator irritante ter mudado da noite para o dia, o sofrimento imposto a uma maioria contida por uma minoria compulsiva, em restaurantes, aeroportos e outros espaços públicos, continuou a ser uma constante estranha.
Em 1998, pouco depois de abandonar o cigarro, eu ficava sentado no metrô, observando outros passageiros abrirem e fecharem seus celulares, nervosos, ou mastigarem as antenas (que lembravam tetas e que todos os telefones tinham à época) ou então simplesmente segurarem firme seus telefones, como se estivessem agarrando as mãos de suas mães, e sentia algo como compaixão por eles.

Sem resistência

Ainda me parecia ser questionável até onde iria a tendência: se Nova York queria realmente virar uma cidade de viciados em telefone, perambulando pelas ruas como sonâmbulos, envoltos em pequenas nuvens pegajosas de vida privada, ou se a noção de um eu público mais contido conseguiria prevalecer.
É desnecessário dizer que não houve disputa nenhuma. O celular não foi uma daquelas novidades modernas, como o Ritalin [nome comercial do metilfenidato] ou os guarda-chuvas extragrandes. Seu triunfo foi rápido e total.
Seus abusos foram lamentados e criticados em ensaios, colunas e cartas a editores diversos e, então, lamentados e criticados com ainda mais contundência quando os abusos pareceram apenas se intensificar, mas foi só isso.
As queixas foram registradas, foram feitos alguns ajustes simbólicos (o "vagão silencioso" nos trens Amtrak, plaquinhas discretas pedindo contenção no uso do celular em restaurantes e academias) e a tecnologia do celular ficou livre para continuar a provocar seus danos sem medo de ser alvo de mais críticas, porque novas críticas seriam antiquadas e nada "cool", vovô.
Mas o simples fato de o problema já ser familiar não significa que o vapor metafórico deixe de sair dos ouvidos de motoristas presos atrás de um sujeito que dirige na pista da esquerda, batendo papo ao telefone enquanto se mantém paralelo ao veículo que está na pista mais lenta.
Apesar disso, tudo em nossa cultura comercial diz ao motorista tagarela que ele está com a razão e assinala a todos os outros que estamos errados - que estamos deixando de entrar na onda do programa barato de liberdade, mobilidade e minutos ilimitados.
A cultura comercial nos diz que, se estamos irritados com o motorista tagarela, deve ser porque não estamos nos divertindo tanto quanto ele.
O que há de errado conosco, afinal? Por que não podemos abrir um sorriso e tirar do bolso nossos próprios telefones, com nossos próprios planos de ligações mais baratas para familiares e amigos e começar a nos divertir mais ali mesmo, na pista de rolamento?
As pessoas socialmente retardadas não começam a agir de modo mais adulto de repente, quando os críticos sociais são forçados a silenciar devido à pressão de seus pares. Ficam mais mal-educadas, só isso.

Fila do caixa

Uma praga nacional de hoje que só vem se agravando é a do cliente que continua absorto num telefonema enquanto efetua uma compra em um caixa de um supermercado ou em uma loja.
A combinação típica em meu bairro, em Manhattan, envolve uma jovem branca, recém-graduada de alguma escola cara, e uma mulher local, negra ou hispânica, de aproximadamente a mesma idade, mas que teve menos vantagens na vida.
É claro que é uma vaidade liberal esperar que a caixa interaja com você ou aprecie as exigências de seu trabalho; ela é autorizada a tratá-lo com tédio ou indiferença; na pior das hipóteses, é uma atitude pouco profissional da parte dela.
Mas isso não alivia você de sua própria obrigação moral de reconhecer a existência dela como pessoa.
E, embora seja verdade que algumas caixas e balconistas pareçam não se incomodar em serem ignoradas, uma porcentagem notavelmente maior delas se irrita, se aborrece ou se entristece visivelmente quando uma cliente se mostra incapaz de afastar-se do celular para lhe dedicar pelo menos dois segundos de interação direta.
Desnecessário dizer que a própria infratora, como o motorista tagarela na rodovia, ignora alegremente o fato de estar irritando alguém.
E, em minha experiência, quanto mais longa a fila que se forma atrás dela, maior é a probabilidade de ela pagar sua compra de US$ 1,98 com cartão de crédito.
Existe, é claro, uma conseqüência social positiva do agravamento desses maus comportamentos. A noção abstrata de espaços públicos civilizados como recursos raros que merecem ser defendidos pode estar praticamente morta, mas ainda é possível encontrar consolo nas comunidades momentâneas e pontuais de sofredores criadas por esses maus comportamentos.
Olhar pela janela de seu carro e ver o vapor metafórico saindo dos ouvidos de outro motorista ou encontrar o olhar da caixa irritada do supermercado e acenar a cabeça, solidarizando-se com ele - essas coisas fazem a gente sentir-se menos só.
É por essa razão que, de todas as variedades cada vez piores de mau comportamento ao celular, aquela que mais profundamente me irrita é a que, pelo fato de não fazer vítimas evidentes, aparentemente não irrita a mais ninguém.
Refiro-me ao hábito - incomum há dez anos, mas hoje onipresente - de encerrar conversas ao celular gritando "amo você!". Ou, ainda mais opressivo e exasperador, "eu te amo!". Isso faz sentir vontade de me mudar para a China, onde não entendo a língua que as pessoas falam. Me dá vontade de gritar.

Imposição pessoal

O componente celular de minha irritação é simples e direto.
Simplesmente não quero - enquanto estou comprando meias na Gap ou na fila para comprar um ingresso e me ocupando com meus pensamentos pessoais ou tentando ler um romance num avião quando o embarque ainda não foi encerrado - ser arrastado em minha imaginação para o mundo pegajoso da vida doméstica de algum ser humano próximo.
A própria essência do que é tão desagradável no celular como fenômeno social é que ele possibilita e incentiva o ato de impor o pessoal e individual ao público e comunal.
E não existe declaração de mais alto calibre que "eu te amo" - não há nada pior que um indivíduo possa impor a um espaço público comum. Mesmo "vá à merda, imbecil!" é menos invasivo, na medida em que é o tipo de coisa que pessoas iradas às vezes gritam em público e que pode igualmente bem ser dirigido a um estranho.
Minha amiga Elisabeth me assegura que a nova praga nacional do "amo você" é uma coisa boa - uma reação saudável contra a dinâmica familiar reprimida de nossas infâncias protestantes de algumas décadas atrás.
O que pode haver de errado, diz Elisabeth, em você dizer a sua mãe que a ama ou ouvir dela que o ama? E se um de vocês dois morrer antes que vocês possam voltar a se falar? Não é bom que possamos nos dizer essas coisas com tanta liberdade hoje em dia?
Vou admitir a possibilidade de que, comparado a todas as outras pessoas no aeroporto, eu seja uma pessoa extraordinariamente fria e pouco amorosa; que a sensação repentina e avassaladora de amar alguém (um amigo, cônjuge, pai, mãe ou irmão) - que para mim é uma sensação tão importante e única que faço questão de não desgastar pelo uso a frase que melhor a expressa - é para outras pessoas tão comum e corriqueira que pode ser revivida e reexpressa muitas vezes em um único dia sem perda significativa de seu poder.
Entretanto, também é possível que a repetição habitual e excessivamente freqüente esvazie frases de seu significado.
[A cantora canadense] Joni Mitchell, em Both Sides Now, falou do espanto solene de poder dizer "eu te amo" "em voz alta": de dar à luz vocalmente uma intensidade tão grande de sentimento. Stevie Wonder, em letra escrita 17 anos depois, canta sobre telefonar a alguém numa tarde qualquer simplesmente para dizer "eu te amo".

Confirmação

E, pelo fato de ser Stevie Wonder (que provavelmente, de fato, é uma pessoa mais amorosa que eu), mais ou menos consegue me fazer acreditar em sua sinceridade - pelo menos até o último verso do refrão, em que acha necessário acrescentar: "E digo isso do fundo do meu coração".
Nenhuma confirmação desse tipo seria cogitada por alguém que realmente dissesse algo do fundo de seu coração.
E assim, quando estou comprando minhas meias na Gap e a mãe que está na fila atrás de mim berra "eu te amo!" em seu pequeno telefone, não posso deixar de sentir que algo está sendo representado, sobre-representado, representado publicamente, imposto em tom desafiador.
Sim, muitas coisas domésticas são gritadas em público que não se destinam realmente ao consumo público; sim, as pessoas se deixam levar. Mas a frase "eu te amo" é demasiado importante e carregada, e seu uso como despedida é demasiado consciente para que eu possa acreditar que estou sendo forçado a ouvi-la por acaso.
Se a declaração de amor da mãe tivesse peso genuíno, reservadamente emocional, ela não tomaria pelo menos um pouco de cuidado para protegê-la de ser ouvida publicamente?
Se estivesse de fato falando a sério, do fundo de seu coração, não seria obrigada a dizê-lo em voz baixa? Sendo um estranho que a ouve dizê-la por acaso, tenho a sensação de ser convertido em participante de uma afirmação agressiva de direitos.
Ou será que eu, em minha irritação, que, admito, já começa a soar lunática, estou simplesmente projetando tudo isso?
O telefone celular chegou à maioridade em 11 de setembro de 2001. Ficou gravada em nossa consciência coletiva naquele dia a imagem de celulares como canais de expressão de intimidade pelos desesperados.
Em cada "eu te amo" dito em voz demasiado alta hoje em dia, assim como na orgia nacional mais generalizada de conectividade - o imperativo de pais e filhos se comunicarem pelo telefone uma, duas, cinco ou dez vezes por dia -, é difícil não ouvir um eco daqueles "eu te amos" terríveis, dolorosos, de partir o coração, inteiramente apropriados, ditos nos quatro aviões e naquelas duas torres fadados à destruição. E é precisamente esse eco, o fato de ser um eco, o sentimentalismo dele, que tanto me irrita.

As duas torres

Minha própria experiência do 11 de Setembro foi anômala devido à ausência de televisão. Às 9h recebi um telefonema do editor de meus livros, que, da janela de seu escritório, acabara de ver o segundo avião chocar-se com as torres.
Fui imediatamente à TV mais próxima, na sala de conferências da imobiliária situada no térreo de meu edifício e, ao lado de um grupo de corretores, assisti à queda de primeiro uma das torres e depois da outra.
Mas, então, minha namorada voltou para casa e passamos o resto do dia ouvindo o rádio, acompanhando os fatos pela web, tranqüilizando nossas famílias e assistindo da cobertura de nosso prédio e do meio da avenida Lexington (que ficou repleta de pedestres), enquanto a poeira e a fumaça da parte baixa de Manhattan se espalharam, formando uma nuvem nauseante que cobriu tudo.
À noite, percorremos a rua 42, encontramos um amigo que mora fora da cidade e descobrimos um restaurante italiano na rua 40 que estava servindo jantar. As mesas estavam cheias de pessoas bebendo muito; o clima era de tempos de guerra.
Sentados num trem da estação Grand Central, esperando que partisse, observamos um passageiro nova-iorquino queixando-se com um cobrador, irado, sobre a falta dos trens expressos para o Bronx.
Três noites depois, das 23h até quase 3h, fiquei sentado numa sala gélida da ABC News, de onde podia ver o também nova-iorquino David Halberstam e falar por vídeo com Maya Angelou e alguns outros escritores de fora da cidade, enquanto aguardávamos para dar a Ted Koppel [então âncora no canal] uma perspectiva literária dos ataques da manhã da terça.
A espera não foi curta. Imagens dos ataques e cenas da queda das torres e dos incêndios subseqüentes foram exibidas repetidas vezes, intercaladas com longos segmentos sobre o preço emocional cobrado dos cidadãos comuns e de seus filhos impressionáveis.
De quando em quando, um ou dois de nós, escritores, tínhamos 60 segundos nos quais dizer algo em tom próprio de escritor, antes de a cobertura voltar a mostrar mais carnificina e entrevistas arrasadoras com amigos e familiares dos mortos e desaparecidos.

O não visto

Falei quatro vezes em três horas e meia. Na segunda vez, pediram-me para confirmar relatos segundo os quais os ataques da terça-feira teriam modificado profundamente a personalidade dos nova-iorquinos. Não pude confirmar os relatos.
Disse que as expressões que vi nos rostos das pessoas eram sombrias, não enfurecidas, e contei que vi pessoas fazendo compras nas lojas de meu bairro na tarde da quarta-feira, comprando roupas de outono.
Em sua resposta, Ted Koppel deixou claro que eu falhara na tarefa que passara metade da noite esperando para desempenhar. Franzindo o cenho, disse que sua própria impressão era muito diferente: que os ataques haviam de fato mudado profundamente a personalidade de Nova York.
Naturalmente, achei que estava falando a verdade e presumi que Koppel estivesse apenas retransmitindo opiniões recebidas de outros. Mas Koppel estivera assistindo à TV, e eu não.
Eu não entendera que o pior dano ao país estava sendo feito não pelo patógeno, mas pela maciça reação contrária exagerada do sistema imunológico, porque eu não tinha TV.
Eu estivera comparando mentalmente a contagem de mortos da terça-feira com outras contagens de mortes violentas - 3.000 americanos mortos em acidentes de trânsito nos 30 dias que precederam o 11 de Setembro - porque, não tendo visto as imagens, eu pensara que os números eram importantes.
Eu dedicara energia a imaginar, ou resistir a imaginar, o horror de estar sentado ao lado da janela enquanto o avião em que você voava descia sobre a rodovia West Side, ou de estar preso no 95º andar e ouvir a estrutura de aço abaixo de você começar a gemer e ruir, enquanto o resto do país vivia o trauma real, em tempo real, assistindo às mesmas imagens inúmeras vezes repetidas.
Assim, eu não precisei da sessão televisionada nacional de terapia de grupo, a enorme "maratona de abraços" tecnológica que aconteceu nos dias, semanas e meses seguintes em resposta ao trauma da exposição às imagens televisionadas.
O que pude observar foi a repentina, misteriosa e desastrosa sentimentalização do discurso público americano.
E, assim como não posso deixar de colocar a culpa na tecnologia celular quando as pessoas despejam afeto parental ou filial em seus telefones e descortesia sobre todos os estranhos ao alcance de suas vozes, não posso deixar de colocar sobre a tecnologia da mídia a culpa do processo nacional de priorização do pessoal.
Diferentemente de 1941, por exemplo, quando os EUA responderam a um ataque terrível [em Pearl Harbor] com determinação, disciplina e sacrifício coletivos, em 2001 tivemos visuais fantásticos.

Trauma exposto

Tínhamos imagens amadoras e pudemos decompô-las quadro a quadro.
Tínhamos telas com as quais pudemos levar a violência nua e crua para dentro de todos os quartos do país; tínhamos gravações de secretárias eletrônicas que deixaram registrados os telefonemas derradeiros e desesperados dos fadados a morrer; tínhamos psicologia de último tipo para explicar e sanar nosso trauma.
Mas, com relação ao que os ataques realmente significaram e a qual poderia ser uma reação sensata, as atitudes variaram. Esta é a coisa fantástica da tecnologia digital: acabou-se a censura dolorosa dos sentimentos de todo o mundo! Todos têm o direito de expressar suas opiniões!
Assim, a questão de se Saddam Hussein tinha ou não comprado pessoalmente as passagens aéreas dos seqüestradores continuou aberta a discussões acaloradas.
O que foi consenso geral, em lugar disso, foi que os familiares das vítimas do 11 de Setembro tinham o direito de aprovar ou vetar os planos para o memorial a ser erguido no Ponto Zero [onde ficavam as Torres Gêmeas].
E todo mundo pôde compartilhar a dor vivida pelas famílias dos policiais e bombeiros que tombaram. E todos concordaram que a ironia morrera. Depois do 11 de Setembro, a ironia vazia e maléfica dos anos 1990 simplesmente "não era mais possível"; tínhamos ingressado numa nova era da sinceridade.
O lado positivo disso é que os americanos, em 2001, passaram a dizer "eu te amo" a seus filhos com muito mais facilidade do que o haviam feito seus pais ou avós. Mas e no quesito da competição econômica? No esforço conjunto como nação? Em derrotar nossos inimigos? Em formar alianças internacionais fortes? Nesses quesitos, o balanço talvez pese um pouco para o negativo. Meus pais se conheceram dois anos depois de Pearl Harbor, no outono de 1943, e poucos meses depois já estavam trocando cartões e cartas.
Meu pai trabalhava para a ferrovia Grand Northern e com freqüência estava na estrada, em cidadezinhas pequenas, inspecionando pontes, enquanto minha mãe permanecia em Minneapolis, trabalhando como recepcionista. Das cartas dele a ela que tenho em minha posse, a mais antiga é do Dia dos Namorados em 1944. Ele estava em Fairview (Montana) e minha mãe lhe enviara um cartão de Dia dos Namorados no mesmo estilo de todos os seus cartões no ano que antecedeu o casamento deles: desenhos de bebês, criancinhas ou filhotes de animais expressando sentimentos doces.

Correspondência

A parte dianteira do cartão (que meu pai também guardou) mostra uma menininha de maria-chiquinha e um menininho corado, cada um olhando para um lado, envergonhados, e com as mãos às costas. "Queria ser uma pedrinha, / Porque assim, quando ficar velhinha / Talvez me veja dengosa / E um pouco mais "corrachosa". A resposta de meu pai traz o carimbo postal de Fairview de 14 de fevereiro e diz:

"Terça-feira à noite.

Querida Irene, Sinto muito tê-la decepcionado no Dia dos Namorados; eu me lembrei, sim, mas, não tendo conseguido um cartão na farmácia, me senti um pouco tolo pedindo um na mercearia ou na loja de ferragens. Estou certo de que as pessoas aqui já ouviram falar do Dia dos Namorados.
Seu cartão correspondeu perfeitamente à situação aqui, e não sei se foi intencional ou acidental, mas acho que devo, sim, ter lhe falado de nossos problemas com as rochas. Hoje ficamos sem pedras para trabalhar, então meu desejo é de pedras pequenas, pedras grandes ou qualquer outro tipo de pedra, já que não há nada a fazer enquanto não conseguirmos pedras.
Já há pouco para eu fazer quando o empreiteiro está trabalhando, e agora não há absolutamente nada. Hoje caminhei até a ponte em que estamos trabalhando, apenas para matar tempo e fazer um pouco de exercício; é uma distância de seis quilômetros, longe o suficiente, com um vento forte me fustigando. Se não conseguirmos pedras pela manhã, ficarei sentado aqui mesmo, lendo filosofia; não me parece correto que eu seja pago por passar meu dia dessa maneira.
Mais ou menos o único outro passatempo que existe por aqui é ficar sentado no saguão do hotel ouvindo as fofocas da cidade, e os velhos que freqüentam o lugar não medem as palavras. Você acharia divertido, porque há uma amostra ampla da vida humana representada aqui, desde o médico local até o bêbado da cidade. E este último é provavelmente o mais interessante: ouvi dizer que ele chegou a lecionar na Universidade de N.D. no passado, e realmente parece ser uma pessoa bastante inteligente, mesmo quando está bêbado.
Normalmente as conversas são bastante grosseiras, mais ou menos como as que Steinbeck [escritor norte-americano, autor de As Vinhas da Ira] deve ter usado como ponto de partida, mas nesta noite entrou no saguão uma mulher muito grande que se colocou totalmente à vontade. Isso me faz perceber como é protegida a vida que vivemos, nós, moradores da cidade grande. Cresci numa cidade pequena e me sinto à vontade aqui, mas hoje parece que vejo as coisas sob uma óptica diferente. Escreverei mais sobre isso.
Espero estar de volta a St. Paul no sábado à noite, mas ainda não sei ao certo. Telefonarei a você quando voltar. Com todo meu amor Earl".

Meu pai completara 29 anos pouco antes disso. É impossível saber como minha mãe, em sua inocência e em seu otimismo, recebeu a carta dele na época, mas, de modo geral, considerando a mulher que eu cresci conhecendo, posso afirmar que essa não era em absoluto a espécie de carta que ela teria gostado de receber de seu par romântico.
O trocadilho bonitinho de seu cartão de Dia dos Namorados interpretado literalmente como referência a lastro de ferrovia? E ela, que passara a vida inteira procurando distanciar-se do bar de hotel em que seu pai trabalhara como barman, poderia divertir-se ouvindo a "conversa grosseira" do bêbado da cidade? Onde estavam as expressões de ternura? As palavras sonhadoras de amor? Era evidente que meu pai ainda tinha muito a aprender sobre ela.
A mim, entretanto, a carta dele parece repleta de amor. Amor por minha mãe, com certeza; tentou encontrar um cartão de Dia dos Namorados para ela, leu sua carta com cuidado, deseja que estivesse a seu lado, tem idéias que quer dividir com ela, está lhe enviando todo seu amor e diz que lhe telefonará assim que retornar.
Mas também amor pelo mundo mais amplo: pelos diversos tipos de pessoas que o habitam, pelas cidades pequenas e grandes, por filosofia e literatura, pelo trabalho duro e o pagamento justo, pela conversa, pela reflexão, por longas caminhadas ao vento, por palavras escolhidas com cuidado e ortografia perfeita. A carta me lembra das muitas coisas que eu amava em meu pai - sua decência, sua inteligência, seu humor inesperado, sua curiosidade, sua probidade, sua reserva e dignidade.
Apenas quando a coloco ao lado do cartão de Dia dos Namorados de minha mãe, com suas criancinhas de olhos grandes e sua preocupação com o puro sentimento, é que minha atenção se volta às décadas de desapontamento mútuo que se seguiram aos primeiros anos de felicidade quase cega deles. Mais tarde, minha mãe se queixaria comigo, dizendo que meu pai nunca lhe dissera que a amava. E talvez seja verdade, literalmente, que ele nunca proferiu as três palavras grandes - eu, com certeza, nunca o ouvi fazendo isso.
Mas não é verdade, definitivamente, que nunca escreveu as palavras.

O não dito

Uma razão pela qual levei anos para criar coragem de ler a correspondência antiga que trocaram é que a primeira carta de meu pai que li, após a morte de minha mãe, começava com uma expressão de carinho ("Irenie") que eu nunca o ouvi pronunciar nos 35 anos durante os quais o conheci e terminava com uma declaração ("eu te amo, Irene") que era mais do que eu pude suportar ver. Não soava nada como ele, e por isso guardei todas as cartas num baú no sótão da casa de meu irmão.
Recentemente, quando as recuperei e consegui lê-las, descobri que meu pai de fato declarou seu amor dúzias de vezes, usando as três palavras grandes, tanto antes quanto depois de casar-se com minha mãe. Mas é possível que, mesmo naquela época, tenha sido incapaz de pronunciar as palavras em voz alta e talvez tenha sido por isso que, na memória de minha mãe, ele nunca as "dissera". Também é possível que suas declarações escritas tenham soado tão estranhas a sua personalidade nos anos 1940 como soam a mim, hoje, e que minha mãe, em suas queixas, se recordasse de uma verdade mais profunda oculta sob as palavras aparentemente afetuosas dele. Both Sides Now, na versão de Judy Collins, foi a primeira canção pop a ficar gravada em minha cabeça.
Era tocada constantemente no rádio quando eu tinha oito ou nove anos, e sua referência a declarar seu amor "em alto e bom som", somada à paixonite que eu nutria por sua voz, ajudou a fazer com que, para mim, o sentido primeiro de "eu te amo" fosse sexual.
Acabei vivendo os anos 1970 e me tornando capaz de, em raros acessos de emoção, dizer a meus irmãos e melhores amigos homens que os amava. Mas, durante todo o ensino fundamental, essas palavras tiveram um sentido para mim, e um sentido apenas. "Eu te amo" era o que eu queria ver rabiscado num bilhetinho da garota mais bonita da classe ou ouvir sussurrado nos bosques no piquenique da escola. Naqueles anos, aconteceu apenas duas vezes de uma garota de que eu gostasse de fato me dizer ou escrever isso. Mas, quando aconteceu, foi uma injeção de pura adrenalina.
Mesmo depois de ir à faculdade e começar a ler [o poeta] Wallace Stevens, descobrindo-o zombando, em Le Monocle de Mon Oncle, de pessoas como eu, que procuravam o amor indiscriminadamente - "Se o sexo fosse tudo, então cada mão trêmula / seria capaz de nos fazer gemer, como bonecos, as palavras tão ansiadas" -, aquelas palavras tão ansiadas continuaram a evocar o abrir de uma boca, a oferta de um corpo, a promessa de intimidade inebriante. Assim, era muito constrangedor pra mim que a pessoa de quem eu ouvia essas palavras constantemente fosse minha própria mãe.
Era a única mulher em uma casa de homens e vivia com um excesso tão grande de sentimentos sem reciprocidade que não podia deixar de buscar expressões românticas.
Eu também As cartas e as palavras de ternura que derramava sobre mim eram idênticas em espírito às que derramara sobre meu pai no passado. Muito tempo antes de eu nascer, meu pai já passara a enxergar suas expressões de sentimento como insuportavelmente infantis. Sobrevivi a muitos períodos de minha infância, as longas semanas durante as quais nós dois estávamos sozinhos em casa, me agarrando a distinções cruciais de intensidade entre as frases "eu te amo", "também te amo" e "amo você".
O crucial era nunca, jamais dizer "eu te amo" ou "eu te amo, mamãe". A alternativa menos difícil era um "te amo" resmungado, quase inaudível. Mas "também te amo", se pronunciado com rapidez suficiente e com ênfase suficiente no "também", que deixava subentendida uma reciprocidade obrigatória, garantiu minha passagem por muitos momentos de constrangimento. Não me recordo se ela me repreendeu especificamente por eu resmungar ou me deu bronca quando (como às vezes acontecia) eu era incapaz de responder com qualquer coisa senão um grunhido evasivo.
Mas tampouco me disse, em momento nenhum, que dizer "eu te amo" era simplesmente algo que gostava de fazer porque seu coração estava cheio de sentimento e que eu não deveria me sentir obrigado a dizer "eu te amo" de volta a cada vez. E assim, até hoje, quando sou agredido por alguém gritando "eu te amo" no celular, ouço como coerção. Meu pai, apesar de escrever cartas repletas de vida e curiosidade, não viu nada de errado em relegar minha mãe a quatro décadas encerrada em casa, cozinhando e fazendo a faxina, enquanto curtia seu trabalho lá fora, no mundo dos homens.
Parece ser a regra, tanto no mundinho pequeno do casamento quanto no grande mundo da vida americana, que aqueles que não têm vida ativa no trabalho têm sentimentalismo - e vice-versa. As várias histerias do pós-11 de Setembro, tanto a praga dos "eu te amos" quanto os amplamente disseminados medo e ódio dos "cabeças de turbante", foram histerias daqueles que não tinham poder, que se sentiam dominados. Se minha mãe tivesse desfrutado de mais possibilidades de auto-realização, talvez tivesse medido seus sentimentos de modo mais realista, adequando-os a seus objetos.

Respeito ao público

Por mais frio, reprimido ou sexista que meu pai possa parecer, pelos padrões contemporâneos, eu me sinto grato pelo fato de nunca ter me declarado abertamente que me amava. Meu pai amava a privacidade - ou seja, respeitava a esfera pública. Acreditava na contenção, no protocolo, na razão, porque, sem eles - acreditava - , seria impossível uma sociedade debater e tomar as decisões que melhor atendessem a seus interesses.
Talvez tivesse sido agradável, especialmente para mim, se ele tivesse aprendido a demonstrar mais seus sentimentos por minha mãe. Mas cada vez que ouço hoje em dia um daqueles "eu te amos" parentais berrados ao celular, me sinto um homem de sorte por ter tido o pai que tive. Ele amava seus filhos mais do que tudo.
E saber que ele sentia isso, mas não sabia declará-lo; saber que ele podia confiar que eu sabia disso e não esperava que ele o declarasse - esse era o próprio núcleo central do amor que eu sentia por ele. Amor esse que eu, por minha vez, tomei o cuidado de nunca declarar em voz alta a ele. Mas essa foi a parte fácil. Entre mim e a situação em que meu pai está agora - ou seja, morto -, nada pode ser transmitido, exceto o silêncio. Ninguém tem mais privacidade que os mortos.
Hoje meu pai e eu não nos dizemos muito menos do que nos dissemos em muitos dos anos em que ele viveu. A pessoa de quem eu me descubro sentindo saudades - discutindo mentalmente com ela, querendo mostrar coisas a ela, querendo que viesse conhecer meu apartamento, zombando dela, sentindo remorsos em relação a ela - é minha mãe. A parte de mim que se irrita com as intromissões dos celulares vem de meu pai. A parte de mim que ama meu BlackBerry e quer ficar mais leve e fazer parte do mundo vem de minha mãe. Era a mais moderna dos dois e, embora ele - e não ela - fosse a pessoa que trabalhava fora, ela acabou do lado vencedor.
Se ainda estivesse viva e vivendo em St. Louis e se você, por acaso, estivesse sentado ao meu lado no aeroporto, aguardando um vôo para Nova York, talvez fosse exposto à provação de me ouvir dizendo a ela que a amava.
Mas eu falaria em voz baixa.

JONATHAN FRANZEN é romancista norte-americano, autor de As Correções (Cia. das Letras), entre outros livros. A íntegra deste texto saiu na revista "Technology Review".
Tradução de Clara Allain. Caderno Mais! Folha de São Paulo