No verão de 1985, a fina flor da música brasileira estava de volta a Roma. Gal Costa, Jorge Ben e João Gilberto se apresentariam, em dias diferentes, num grande festival de música à beira do Rio Tevere. No dia do show de João, no fim da tarde, Gal me telefonou: "João Gilberto não vai fazer o show, sabia?", disse a voz inconfundível. Eu sabia. João tinha me telefonado pouco antes, "da casa de um amigo", para dizer que não ia cantar à noite. Tinha saído do hotel, estava escondido dos empresários italianos furiosos com o cancelamento do show, com a perda da lotação esgotada (6 mil ingressos vendidos), com as despesas da viagem de João e seu secretário Otávio Terceiro. A coisa estava feia: "Só recebemos as passagens dois dias antes... o avião parou três horas em Paris antes de ir para Roma... o ar condicionado do avião... o virus... a gripe... a garganta...", explica com voz rouca entre silêncios. João sabe que conheço alguns jornalistas e um dos empresários italianos que estão atrás dele, Sandro, o dono do bar "Manuia", casado com uma mulata brasileira. "Diga a eles que eu vim aqui para cantar. E não para não cantar. Que eu vou fazer Antibes e Montreux e depois eu volto aqui e faço o show", pediu com voz sofrida. A coisa estava feia desde o início da tarde. Como João não atendia o telefone, os empresários foram para o hotel. Com um médico. Se João estivesse mesmo com gripe, como dizia Otávio, o dottore lhe aplicaria uma injeção de efeito fulminante e ele estaria pronto para fazer o show. Foi quando João decidiu sair do hotel discretamente. Indiquei-lhe um médico, que atendia a Embaixada do Brasil, para o examinar e dar um atestado, e um advogado, para que ele pudesse sair do país. Mas pela fúria dos empresários deveria ter mandado também um guarda-costas. Os jornalistas e os empresários me ligam sem parar querendo saber de João. Digo o que ele me disse, não sei de onde. Ameaçam chamar os carabinieri. Um dos empresários, que eu não conhecia, diz que se encontrar João lhe dá um tiro. Coisa preta na Cidade Eterna. Sandro tenta em vão que Gal Costa e Jorge Ben façam um show juntos no lugar de João. No dia seguinte, devolvidos os ingressos e contabilizados os prejuízos, os ânimos estão, relativamente, mais calmos. João voltou para o hotel. Passo a tarde intermediando negociações entre ele e os italianos. Sandro quer que ele marque a nova data. Ele marca. Mas o outro empresário está furibundo e exige que João também deixe um depósito em dinheiro e pague pela publicidade. João se ofende. Diz que vai fazer o show depois de Antibes e Montreux. E parte para o Sul da França. Mas o sócio de Sandro está cuspindo fogo. Diz que tem certeza absoluta que João não vai voltar para fazer o show. E mais: que duvida até que ele faça o show em Antibes. E parte feroz para o Sul da França. Em Antibes, assiste extasiado o show perfeito de João, ovacionado pela platéia. Comovido, vai aos camarins se apresentar: nunca tinham se visto antes, se conheciam apenas por ameaças via terceiros. Abraça e beija João efusivamente. Tornam-se amigos de infância. Volta feliz para Roma certo que João fará o show na data marcada. Como de fato fez, com lotação esgotada e aplaudido de pé. Na primeira fila, o empresário truculento chorava e ria ao mesmo tempo.
Nelson Motta - http://sintoniafina.uol.com.br/cronicas.php?id=13