O longa-metragem Anabazys surgiu em meio ao trabalho de restauro dos filmes de Glauber Rocha que vem sendo feito desde 2003 por Joel Pizzini e Paloma Rocha, filha do cineasta. As sobras e imagens inéditas dos demais filmes de Glauber vinham sendo editadas para os extras dos DVDs das obras restauradas.
Mas a quantidade e a riqueza de imagens e sons deixados por A Idade da Terra - assim como o interesse despertado por eles em festivais internacionais - levaram Paloma e Pizzini a transformar o material num documentário com existência independente e condições de exibição nos cinemas.
Lançado agora, poucos dias depois da data (14 de março) em que Glauber completaria 70 anos, e 27 anos depois de sua morte, Anabazys aborda questões cruciais sobre o último período da vida do cineasta. Elas podem ser agrupadas em dois aspectos ligados entre si: as polêmicas posições políticas assumidas por ele na década de 1970 e o impacto estético desorientador provocado por A Idade da Terra.
"É um filme que não se pode classificar segundo as regras tradicionais, uma obra feita claramente com a ideia de que não se completa", diz o professor e crítico de cinema Ismail Xavier. "Glauber expressa todas as angústias que enfrentou na vida dele em face da história."
Ismail, que coordena a reedição da obra escrita de Glauber pela editora Cosac & Naify, diz fazer esse trabalho com "um recorte bem claro de encorajar as pessoas a assistir ao trabalho" do cineasta, sem que suas declarações políticas venham a "servir de filtro" para chegar a ele. No calor da hora, isso não foi possível.
O grande abalo político causado por Glauber, então exilado, foi uma carta escrita ao jornalista Zuenir Ventura e publicada em março de 1974 na revista Visão. Nela, o cineasta defendia o apoio a uma suposta ala moderada ou progressista do Exército que conduziria a transição para um regime civil. Glauber elogiava o presidente Ernesto Geisel e o general Golbery do Couto e Silva, estrategista do governo militar a quem chamou de "gênio da raça".
Anabazys examina demoradamente o episódio e seus possíveis significados. "A leitura da realidade feita por Glauber era a de um artista" diz Joel Pizzini. "Sua intuição sobre política não pode ser analisada do ponto de vista teórico." Nem por isso, observa Ismail, o cineasta deixou de pagar um preço alto por suas declarações após a exibição de A Idade da Terra no festival de Veneza de 1980. O filme foi execrado nem tanto por sua estranheza formal, mas porque teria sido financiado pelo regime militar e estaria a serviço de forças de direita. Glauber protestou veementemente no palácio do festival, com sua gestualidade e franqueza verbal características, e tudo isso teve ampla repercussão.
"Foi uma experiência muito traumática para ele ter feito um filme visionário numa época de crise, quando o cinema industrial americano cooptava autores como John Cassavetes e Louis Malle", diz Pizzini, citando dois dos cineastas em competição no festival de Veneza daquele ano. A tensão vivida por Glauber na época foi um dos motores da criação de Anabazys, na medida em que faz parte das memórias de Paloma Rocha, que trabalhou como continuísta e atriz no filme do pai. O "viés afetivo", nas palavras dos realizadores, e a preciosidade do material que tinham em mãos os levou a dar um tratamento glauberiano ao que de início tendia a se circunscrever ao registro histórico.
Isso significou, segundo Pizzini, "desblocar" a edição que havia sido feita originalmente para o DVD, com seu formato adequado ao menu interativo, e criar um novo filme, em que A Idade da Terra se relaciona com trechos de outros títulos de Glauber, além de dar ao cineasta baiano a voz do narrador. Sobretudo, buscou-se "um fluxo mais livre, mais circular, às vezes delirante", em consonância com o estilo glauberiano. Foram suprimidos os créditos de identificação - A Idade da Terra é célebre por não conter nenhum letreiro e quase nenhuma palavra escrita - e tentou-se incorporar alguns conceitos estético-narrativos de Glauber, como a montagem nuclear, pela qual as sequências do filme podem ser vistas em ordem independente (o diretor queria, no caso de A Idade da Terra, que essa decisão ficasse a cargo do projecionista a cada exibição).
Anabazys resultou numa colagem com a grande abrangência que Ismail aponta como característica dos filmes de Glauber. Misturam-se cenas de vários filmes com entrevistas em vídeo e áudio, trechos das aparições do cineasta no programa de TV Abertura e bastidores de filmagens. Debatem-se questões políticas, estéticas e religiosas, e fala-se muito do cinema no Brasil, pelo qual Glauber trabalhou não só como autor, mas também como historiador e articulador. Sobre o estado geral da arte e da indústria, ele diz em Anabazys uma frase lapidar: "Uma coisa é conquistar o público; outra é explorar o público."
O filme Anabazys, de Joel Pizzini e Paloma Rocha, é um extenso e rigoroso estudo sobre A Idade da Terra, último filme de Glauber Rocha (1939-1981), de quem Paloma é filha.
Joel e Paloma fizeram o seu recorte a respeito dessa parte da obra de um cineasta cujos filmes são inesgotáveis. E não só eles. Os fatos e as anedotas em torno de Glauber também parecem não ter fim. Um bom exemplo está no documentário Crítico, do crítico e cineasta Kleber Mendonça Filho, que comanda o blog Cinemascópio.
Para investigar a relação entre críticos e cineastas - e os efeitos dela nos filmes, Kleber entrevistou muita gente que atua de um lado e de outro. Quando foi ouvir o crítico francês Michel Ciment, nome destacado da revista Positif e veterano colaborador do Festival de Cannes, Ciment desenterrou de seu baú de memórias uma história sobre Glauber durante o Festival de Veneza em que A Idade da Terra (1980) foi exibido.
O crítico contou que ele e Glauber eram amigos cordiais, até o momento em que Ciment não gostou do filme de Glauber, e o cineasta passou a considerá-lo um opositor. Parênteses: Ismail Xavier ensina que a forma do duelo é fundamental na obra de Glauber, desde seu primeiro trabalho, Pátio (1959).
Voltando a Ciment, ele conta que estava no festival quando alguém se aproximou contando que um camponês muito moreno e maltrapilho estava fazendo um escândalo no lobby de um luxuoso hotel do Lido, que abrigava os convidados do festival. Como os brados do "camponês" eram numa língua incompreensível ao interlocutor de Ciment, ele julgou tratar-se de um protesto com reivindicações de fundo político ou social.
Era Glauber, que dava início à sua raivosa reação ao fato de A Idade da Terra não ter sido premiado em Veneza. Do discurso, Glauber partiu para uma passeata pela cidade, produzindo (também fora da tela) uma cena inesquecível aos espectadores que a testemunharam.