Uma antologia de ensaios
Organização: Henry Hardy / Tradução: Rosaura Eichenberg / Capa: João Baptista da Costa Aguiar / Páginas: 720
A imensa diversidade da vida humana e a multiplicidade de suas modalidades de conhecimento são a base do pluralismo do historiador das idéias Isaiah Berlin. Segundo ele, valores essenciais se chocam: liberdade e igualdade, espontaneidade e planejamento, verdade e unidade, justiça e independência pessoal. Admitir essas contradições levaria a uma maior compreensão da humanidade - vista como um conjunto de seres livres, criativos e conscientes.
Suas concepções, porém, estão longe de se traduzirem num relativismo irrestrito ou num compromisso pragmático com os diversos interesses em jogo na sociedade. Influenciado por pensadores que se desviaram da herança iluminista, tais como Vico, Herder, Maquiavel, Joseph de Maistre e Nietzsche, o ensaísta contrapõe as obras desses escritores às leituras de filósofos como Descartes, Voltaire, Hegel e, especialmente, Marx, de quem escreveu uma elogiada biografia.
Os textos de Estudos sobre a humanidade dão bem a medida do pensamento pluralista de Berlin. "A busca do ideal", ensaio que abre o livro, traça a genealogia de sua formação intelectual. Em "Dois conceitos de liberdade", o autor faz uma distinção entre liberdade positiva, aquela regulamentada pelo Estado em benefício da igualdade de todos, e liberdade negativa, por meio da qual os indivíduos governam seus destinos com autonomia.
Outra de suas distinções fundamentais - a oposição entre história e ciência - aparece em "O conceito da história científica" e em "O divórcio entre a ciência e as humanidades". Berlin se volta contra as teorias que procuram explicar o comportamento humano de acordo com pressupostos científicos. Segundo ele, nenhum sistema de classificação é capaz de dar conta da totalidade da experiência humana.
A defesa da individualidade aparece em dois perfis de homens públicos - Winston Churchill e Franklin Delano Roosevelt - e no ensaio que trata da mais pessoal das realizações humanas: a literatura. Em "O ouriço e a raposa", a partir da obra de Tolstoi, Berlin aponta para duas visões de mundo antagônicas. Os ouriços - como Platão, Dante, Pascal, Dostoievski e Proust - acreditam num saber geral e universalizante. Já as raposas - Goethe, Shakespeare, Balzac, Puchkin e Joyce, entre outros - perseguiriam um conhecimento pulverizado e particular.
O pluralismo de Berlin procura conjugar essas concepções díspares e aparentemente conflitantes. A percepção dinâmica da variedade de idéias e de sentimentos humanos empreende uma tentativa de equação por meio do compartilhamento da diversidade - situação capaz de representar a base da verdadeira liberdade.
Roger Hausheer
Berlin passou a maior parte da sua longa vida refletindo sobre problemas humanos centrais, especialmente as questões da identidade e valor humanos, associação e organização, teoria e prática política. Em grande medida, seu interesse por essas questões surgiu da sua própria vida.
Nascido em Riga, súdito judeu do czar russo, ele ainda era criança em Petrogrado durante as primeiras fases da Revolução Russa, quando testemunhou um episódio que o fez odiar para sempre a violência. Chegando à Inglaterra, com onze anos, rapidamente se adaptou ao seu novo ambiente e realizou uma deslumbrante carreira acadêmica em Oxford. Suas origens legaram-lhe três lealdades principais - judaica, russa e inglesa. Foi talvez essa primeira colisão na formação de um homem supremamente inteligente e sensível que estimulou o seu interesse por um aglomerado de questões que sempre o preocuparam. Sua infância foi rompida por uma das grandes tempestades políticas do século, sendo o começo de sua maturidade dominado pela Segunda Guerra Mundial e por seu trabalho como analista político em Washington e Moscou. Além disso, embora ele raramente fale, nenhum relato de sua vida pode omitir a perseguição e a perda de muitos parentes próximos no holocausto nazista e sob a tirania soviética.
Há, portanto, uma qualidade autêntica no que ele diz sobre as grandes questões de nosso tempo e que está freqüentemente ausente nos escritos dos acadêmicos. E, ao contrário de muitos intelectuais, Berlin manteve ligações estreitas com a vida pública. Sua ampla rede de contatos o tornou um observador privilegiado, às vezes um participante ativo, de alguns dos principais acontecimentos da época. Os seus famosos despachos de Washington no tempo da guerra e a sua íntima associação com Chaim Weizmann durante o período que precede a fundação do Estado de Israel são apenas dois dos exemplos mais conhecidos.
Há, também, o seu especial caráter intelectual, a sua extraordinária capacidade de entrar numa ampla diversidade de perspectivas e recriá-las. É a sua habilidade de se transpor para as mentes de outros tempos e lugares e de temperamentos radicalmente diferentes que o torna um explorador tão perspicaz da condição moderna; e a sua viagem de descoberta pode ser vista como análoga, na esfera mental, àquelas explorações pioneiras do mundo externo que constituíram os principais triunfos da humanidade ocidental desde a Renascença. Ele é um dos primeiros e mais prescientes participantes de uma situação aflitiva que um número cada vez maior de pessoas está se dando conta de partilhar: o confronto de culturas e valores que permeia o nosso mundo. Nessa área, não há pensador contemporâneo que tenha mais a nos dizer.
No entanto, apesar de Berlin ser justamente renomado, como deixa claro o prefácio de Noel Annan, a sua reputação ainda é unilateral - em parte por ter se tornado vítima de si mesmo: seu brilho em conferências e conversas, bem como seu grande dom para a amizade, às vezes desviam a atenção de sua realização intelectual. Conhecê-lo é saber imediatamente por que ele é tão célebre. Mas sair desse primeiro estágio para a imersão no corpus completo de seus escritos é um grande passo. Além disso, a facilidade com que percorre, em sua atividade, tantos campos não relacionados prima facie significa que diferentes leitores vão admirá-lo por partes aparentemente desconexas de sua ouvre, sem nenhuma percepção de que é tudo fragmento de um mesmo quadro.
Ainda mais, há obstáculos reais no caminho de uma plena recepção de suas visões em toda a sua originalidade freqüentemente subversiva. Para começar, a influência de padrões científicos de pensamento sobre nossa perspectiva geral tem se tornado bastante difundida; e a esmagadora maioria é hoje acriticamente escrava de formas mais ou menos cruas de cientismo. Essa índole geral constitui uma importante barreira para compreender a realização de Berlin, embora nenhum pensador a tenha combatido com mais persistência. Além disso, como uma grande parte da atenção de Berlin tem se voltado para o exame das estruturas mais profundas, as categorias que formam as matérias básicas da nossa experiência, seus leitores enfrentam uma cabal dificuldade de ver o que lhes está tão próximo - parte de si mesmos e de seu equipamento perceptivo - que não pode ser "visto" de modo algum, apenas sentido e apontado com gestos.
Existe também o perigo de uma espécie de rejeição emocional a certas afirmações de Berlin. Alguns de nossos ideais e crenças mais caros, parte dos alicerces de nossa concepção de nós mesmos, são revelados como algo menos sólido e eterno do que tínhamos imaginado, o que pode ser profundamente perturbador. E a doutrina do pluralismo objetivo, o âmago da contribuição de Berlin, subverte os princípios racionalistas mais importantes que reinaram pelo menos por dois mil anos, subjacentes não só às doutrinas políticas dos grandes e opressivos construtores de sistemas, mas até às dos liberais modernos mais moderados. Um importante passo preliminar para compreender a realização de Berlin é afastar esses equívocos, dissipar a resistência irracional, unindo os fios de sua contribuição para compreendermos a nós mesmos como seres livres, criativos e autocríticos. Desse ponto de vista, todos os seus ensaios parecem partes de um único projeto que é lentamente revelado.
Embora em certo sentido Berlin seja um filósofo, preocupado em analisar nossos conceitos e categorias básicos, ele é também extremamente curioso sobre a imensa diversidade da vida humana. O seu interesse por história, literatura e artes, pela política e a vida social - por toda expressão da existência e do comportamento humanos - tem sido de amplo alcance. Seu desejo de conhecimento pelo prazer do conhecimento foi um motivo fundamental para que se decidisse a abandonar a filosofia pura na época da guerra: no fim da vida ele buscava o conhecer mais do que no começo. E não foi por acaso que a disciplina cumulativa para a qual ele se voltou tenha sido a história das idéias. Já quando escrevia sobre Marx na década de 1930, ele deparara com a abordagem científica e sociológica do Iluminismo francês. Como empirista e adepto dos métodos racionais, Berlin estava fadado a simpatizar com o desejo iluminista de eliminar a teologia e a metafísica, a superstição, a tradição e a autoridade cega. Por que não haveria uma ciência do homem no mesmo nível do sistema newtoniano na física? Condorcet falara do dia em que haveria uma sociologia naturalista capaz de estudar os humanos como as ciências naturais estudam as abelhas e os castores. Foi esse programa que propiciou a inspiração intelectual central da Revolução Francesa. No entanto, embora a revolução fosse uma tempestade purificadora, ela conseguiu tudo menos realizar a sua meta positiva de uma duradoura ordem social calcada na razão. E, na época em que escrevia o seu livro sobre Marx, Berlin sabia que a herdeira mais recente da tradição cientista do Iluminismo, a Revolução Bolchevique, havia gerado uma ditadura opressiva que ofuscava até os excessos da era revolucionária francesa. Algo nas premissas fundamentais de toda essa abordagem do estudo da sociedade estava errado.
No curso dessas reflexões, Berlin estava fadado a encontrar toda a coorte de pensadores que, desde o começo, tinha se rebelado contra essa perspectiva. Foi aos inimigos do Iluminismo que Berlin se voltou para procurar compreender o fracasso de uma tendência geral por cujas ambições globais ele nutria total simpatia, mas possuidora de alguns pressupostos não examinados dos quais havia começado a duvidar seriamente.
Entre esses pressupostos está o de que tudo deve ser estudado com distanciamento objetivo como mero material que pode ser exaustivamente descrito, classificado ou submetido a leis causais. Para fins científicos, nada tem vida independente fora dos sistemas de leis que regem o seu comportamento, ou além dos esquemas classificatórios em que se inclui. O inexplicável, o imprevisível, o indescritível são descartados por um método que é, por sua própria natureza, determinista. No caso da física, por exemplo, que para o Iluminismo era o paradigma da ciência, as coisas não têm objetivos - "causas finais", nem vida interior, nem ideais; há apenas regularidades causais. Sem dúvida, Aristóteles fora culpado de antropomorfismo, quando atribuiu causas finais a todas as coisas, inclusive ao próprio universo; mas a tendência dos pensadores do Iluminismo era eliminar por completo os objetivos. Isso parecia indevidamente austero, sobretudo quando eles começaram a estudar o homem e suas obras.
De modo mais geral, o novo quadro científico do mundo se baseava em três pressuposições cardinais, comuns à maior parte do pensamento sistemático ocidental desde os tempos de Platão. Essas pressuposições são que o cosmos constitui um único conjunto harmonioso, cuja estrutura existe independentemente de qualquer observador; que podemos descobrir o que é essa estrutura e encontrar as respostas para todas as nossas perguntas de teoria e prática; e que possuiremos então um corpo coerente e inconsútil de conhecimento, no qual nenhuma proposição possa contradizer outra.
É contra esses dogmas monolíticos que se dirige grande parte da obra de Berlin. Às vezes ele os ataca diretamente, outras vezes expõe as deficiências desses dogmas examinando as idéias de alguns de seus opositores mais formidáveis. Ele separa a esfera humana - na qual a liberdade, a escolha e a ação intencional consciente são centrais - do mundo das forças impessoais. O seu primeiro passo é defender uma forma não-determinista de liberdade humana. "'Da esperança e do medo libertados'" representa a esse respeito um golpe desfechado contra uma das ortodoxias centrais que perpassam a história da filosofia ocidental.
A questão do livre-arbítrio e do determinismo preocupou Berlin durante toda a vida. Nesse ensaio, ele discorda da antiga doutrina de que qualquer aumento de conhecimento acarreta um aumento de liberdade. Na sua forma mais rígida, essa visão virtualmente identifica a racionalidade e a liberdade. Berlin rejeita a doutrina do autodeterminismo clássico, de que a verdadeira liberdade é autogoverno racional. Não posso ser considerado livre, se nada, inclusive eu mesmo e a minha natureza, pode ser concebivelmente diferente do que é. Nesse caso, as noções de liberdade e responsabilidade se tornam vãs.
O passo seguinte é dado no nível da vida humana coletiva quando, em "A inevitabilidade histórica", Berlin ataca as teorias deterministas que vêem a história como algo que obedece a leis inalteráveis. Essas visões são inspiradas em parte pelo sucesso das ciências naturais, em parte pela crença profundamente arraigada na teleologia, segundo a qual todas as coisas, inclusive os seres humanos, perseguem objetivos; e são não menos inspiradas pelo nosso perene desejo de abdicar da responsabilidade. Berlin desmascara todas essas posições como dogmáticas e não empíricas. Mas, contra o determinismo, ele também aponta um argumento mais geral que nos leva ao próprio núcleo de sua visão do homem.
Poucos pensadores modernos são tão conscientes quanto Berlin das categorias centrais que constituem a nossa noção de seres humanos. Sabemos desde Kant que há uma estrutura de categorias pela qual a nossa concepção do mundo exterior é determinada. Vemos, pensamos e agimos segundo essas categorias, e, apesar de sermos capazes de ter consciência disso, elas não podem ser em si mesmas objetos de uma ciência. A pesquisa intensamente difícil que revela essas categorias pode ser estendida em duas direções: pode ser levada mais a fundo na esfera da subjetividade, revelando as suas estruturas básicas; e pode explorar a emergência histórica de algumas das pressuposições mais profundas sobre o que somos como seres humanos. Embora a contribuição de Berlin tenha permanecido em grande parte na última esfera, o que ele diz sobre a primeira é ainda assim de grande interesse. Ele possui uma forte consciência de um "senso de realidade" primordial, anterior a todos os demais pensamentos e análises racionais, inclusive a ciência profética. As páginas em que descreve isso, particularmente em "A inevitabilidade histórica" e "O ouriço e a raposa", brilham com uma luminosidade rara na filosofia moderna. Esse senso primitivo é a raiz de nossa convicção de que somos seres livres em algum sentido absolutamente não-determinista. Tão básica é essa convicção que todo o nosso vocabulário moral nela se baseia: noções como responsabilidade, elogio, remorso e mérito resistem ou caem com ela. Não podemos descartá-la sem descartar uma parte tão grande de nosso senso fundamental de humanidade que a tentativa se revela impossível. Procurar explicar essa consciência não analisável das "categorias" em termos científicos é como tentar fazer a base da montanha se equilibrar no seu cume: ela está vários níveis abaixo e além do alcance dos conceitos causais.
Há, portanto, razões convincentes pelas quais os humanos não podem ser estudados apenas como objetos naturais exaustivamente explicáveis pela ciência natural. Em "O conceito de história científica" em particular, Berlin mostra como a história difere da ciência e explica por que uma ciência da história é conceitualmente impossível. Esse ensaio, junto com "Ainda existe a teoria política?", sugere um programa para o tipo de história das idéias que Berlin defende. Os seres humanos se interpretam a partir de muitos modelos gerais. Alguns desses modelos são tão velhos quanto a própria humanidade, e assim virtualmente universais; outros mudam, às vezes dramaticamente, ao longo da história. A tradição ocidental no pensamento político tem sido uma sucessão desses modelos. Quando se tornam antiquados e não acompanham os padrões mutáveis da experiência, são substituídos por outros. Nenhum modelo consegue abranger globalmente a totalidade da experiência: cada um é exclusivo e, na melhor das hipóteses, lança luz sobre um recorte da vida humana. Mas, ao contrário das teorias científicas suplantadas, esses modelos retêm um valor permanente, pois cada um abre suas próprias portas especiais do autoconhecimento; e deveria ser uma preocupação central dos historiadores das idéias, em toda e qualquer geração, questionar esses modelos e avaliar a sua relevância para os problemas singulares de seu tempo. Berlin passou a vida empenhado nessa atividade, com alguns resultados extraordinários.
Virtualmente toda a obra de Berlin na história das idéias gira em torno do que ele considera a maior revolução em nossa perspectiva básica desde a Renascença: a rebelião contra o monismo. O escritor cuja obra contém, para Berlin, as primeiras premonições dessa mudança é Maquiavel. Segundo Berlin, é muito provável que ele tenha sido o primeiro a justapor com nitidez dois sistemas de moralidade mutuamente exclusivos: a ética cristã, que visa à perfeição da vida individual; e a da Roma republicana, que visa ao poder e à glória do corpo político. Não existem critérios para escolher entre esses dois sistemas igualmente válidos. É isso, e não o "maquiavelismo" de Maquiavel, que tem nos afligido desde então. Marca a primeira fratura irreparável na crença numa única estrutura universal de valores.
Outras rachaduras foram abertas pelo gênio estranho e isolado de Giambattista Vico. Segundo a interpretação de Berlin, Vico foi pioneiro em afirmar explicitamente que os humanos não possuem uma essência inalterável; que eles compreendem as suas obras e o mundo da história por eles próprios criado de um modo que não lhes permite compreender o mundo da natureza exterior; que há uma distinção entre o conhecimento que adquirimos como agentes, a partir de dentro, e aquele que adquirimos pela observação, a partir de fora; que uma cultura tem um padrão difuso pelo qual todos os seus produtos são marcados; que todas as instituições e criações humanas são formas de auto-expressão; que não existem padrões permanentes na arte ou na vida, e que tudo o que é humano deve ser julgado a partir das normas de seu tempo e lugar; e que uma nova variedade de conhecimento deve ser acrescentada aos dois tipos tradicionais (dedutivo e empírico) - uma forma de conhecimento pela qual entramos no universo mental de outras eras e outros povos por meio da imaginação que os recria.
As implicações para a concepção de Berlin sobre a história cultural são evidentes: as obras de Vico deram origem à distinção fundamental entre as ciências e as humanidades. A conseqüência fatal para o monismo é que, se existe uma lacuna intransponível entre essas duas províncias, abriu-se uma brecha no dogma de que todo o conhecimento deve formar um conjunto inconsútil.
É no mundo alemão que Berlin vê a revolta contra os dogmas centrais do Iluminismo realmente vingar. O movimento Sturm und Drang escarnecia de todas as formas de organização política e, em toda esfera da vida, rejeitava regras desse tipo. Foi o grande contra-racionalista J. G. Hamann quem primeiro expressou conscientemente essa revolta. Ele era contra qualquer abstração. As generalizações científicas tinham, na melhor das hipóteses, um valor instrumental - não podiam produzir um conhecimento inatacável. O verdadeiro conhecimento só nos é dado pelos sentidos, pela imaginação espontânea e pela intuição. Tudo o que vale a pena conhecer é conhecido pela percepção direta. A teoria da linguagem de Hamann - segundo a qual a linguagem não mapeia uma realidade eterna preexistente, mas cria o seu próprio mundo, com a implicação de que há tantos mundos quanto linguagens - possui uma ressonância moderna e teve um imenso impacto sobre o seu discípulo J. G. Herder.
Para Berlin, Herder é de importância central. Revelando algumas das principais categorias que transformaram o mundo moderno, ele trouxe uma contribuição permanente para o autoconhecimento humano. Três idéias novas se originaram com ele: o populismo, a crença de que os homens só podem se compreender plenamente como membros de uma cultura identificável, com raízes na língua, tradição, história; o expressionismo, a noção de que as obras dos homens "estão acima de todas as vozes que se fazem ouvir", formas de comunicação que transmitem uma visão total da vida; e o pluralismo, o reconhecimento de uma variedade indefinida de culturas e sistemas de valores, todos igualmente definitivos e incomensuráveis uns em relação aos outros, de modo que se torna incoerente a crença num caminho universalmente válido para a realização humana.
Depois disso, nada mais foi o mesmo. Desde o início do século XIX, particularmente nas terras alemãs, uma nova e poderosa imagem enfeitiçou a imaginação européia. Berlin lança luz sobre esse fato tanto em "O Contra-Iluminismo" como em "A apoteose da vontade romântica". Sucessivos escritores alemães foram cada vez mais longe na sua rejeição à noção de objetividade, deixando Vico e Herder muito para trás - não apenas na esfera da ética e da estética, mas também em relação à própria existência do mundo objetivo. Ocorre uma mudança revolucionária de categorias, pela qual a vontade usurpa a função do intelecto, e a criação livre substitui a descoberta científica. Embora isso tenha começado no campo artístico e nas relações privadas, logo transbordou para a política e a vida social, com resultados catastróficos.
Nesse ponto a figura central, para Berlin, é Fichte, que inaugurou uma era com sua filosofia do ego absoluto que tudo cria. O indivíduo heróico que impõe a sua vontade à natureza ou sociedade torna-se o modelo dominante. A noção do ser assertivo e criativo que gera os seus próprios valores e metas passa a inspirar muitos movimentos artísticos e políticos bastante diversos. Esse é o ponto de origem do pragmatismo, existencialismo, subjetivismo, relativismo. O conhecimento é rebaixado ao status de servo de nossos objetivos práticos, e o próprio mundo não é senão a imagem moldada pelos nossos projetos de vida. O heroísmo e o martírio, a integridade e a autenticidade são os valores em torno dos quais as existências são desde então organizadas. A verdade ou a falsidade de um ideal já não é considerada importante, nem sequer é proposta como questão.
As implicações para a idéia de nacionalismo são muito grandes. O nacionalismo surge como uma doutrina coerente nas páginas de Herder, cujo arquiinimigo era o materialismo universalista francês. Berlin apresenta o pensamento não só como uma rejeição às regras racionais universais, mas também como uma reação alemã à atitude condescendente dos franceses dominantes. Essa reação natural de orgulho ferido, da parte de um povo atrasado para com outro mais avançado, é o primeiro caso de uma atitude que deveria se tornar cada vez mais predominante no século XIX e que hoje em dia se tornou uma síndrome em todo o mundo. Para Herder, o senso de nacionalidade é benigno: mas quando o ser criativo livre dos românticos alemães assume formas coletivas, como acontece tão facilmente, e torna-se identificado com uma nação, raça, cultura ou alguma outra entidade suprapessoal, ocorrem combates mortais. Cada entidade separada persegue as suas próprias metas independentes, que procura concretizar e impor a todos. Sem critérios universais de julgamento, segue-se a guerra de todos contra todos. Isso é nacionalismo agressivo com vingança, e desse estágio para o fascismo e o nacional-socialismo é um pequeno passo.