Sunday, May 31, 2009


Estudos Sobre a Humanidade
Uma antologia de ensaios

Organização: Henry Hardy / Tradução: Rosaura Eichenberg / Capa: João Baptista da Costa Aguiar / Páginas: 720

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A imensa diversidade da vida humana e a multiplicidade de suas modalidades de conhecimento são a base do pluralismo do historiador das idéias Isaiah Berlin. Segundo ele, valores essenciais se chocam: liberdade e igualdade, espontaneidade e planejamento, verdade e unidade, justiça e independência pessoal. Admitir essas contradições levaria a uma maior compreensão da humanidade - vista como um conjunto de seres livres, criativos e conscientes.

Suas concepções, porém, estão longe de se traduzirem num relativismo irrestrito ou num compromisso pragmático com os diversos interesses em jogo na sociedade. Influenciado por pensadores que se desviaram da herança iluminista, tais como Vico, Herder, Maquiavel, Joseph de Maistre e Nietzsche, o ensaísta contrapõe as obras desses escritores às leituras de filósofos como Descartes, Voltaire, Hegel e, especialmente, Marx, de quem escreveu uma elogiada biografia.

Os textos de Estudos sobre a humanidade dão bem a medida do pensamento pluralista de Berlin. "A busca do ideal", ensaio que abre o livro, traça a genealogia de sua formação intelectual. Em "Dois conceitos de liberdade", o autor faz uma distinção entre liberdade positiva, aquela regulamentada pelo Estado em benefício da igualdade de todos, e liberdade negativa, por meio da qual os indivíduos governam seus destinos com autonomia.

Outra de suas distinções fundamentais - a oposição entre história e ciência - aparece em "O conceito da história científica" e em "O divórcio entre a ciência e as humanidades". Berlin se volta contra as teorias que procuram explicar o comportamento humano de acordo com pressupostos científicos. Segundo ele, nenhum sistema de classificação é capaz de dar conta da totalidade da experiência humana.

A defesa da individualidade aparece em dois perfis de homens públicos - Winston Churchill e Franklin Delano Roosevelt - e no ensaio que trata da mais pessoal das realizações humanas: a literatura. Em "O ouriço e a raposa", a partir da obra de Tolstoi, Berlin aponta para duas visões de mundo antagônicas. Os ouriços - como Platão, Dante, Pascal, Dostoievski e Proust - acreditam num saber geral e universalizante. Já as raposas - Goethe, Shakespeare, Balzac, Puchkin e Joyce, entre outros - perseguiriam um conhecimento pulverizado e particular.

O pluralismo de Berlin procura conjugar essas concepções díspares e aparentemente conflitantes. A percepção dinâmica da variedade de idéias e de sentimentos humanos empreende uma tentativa de equação por meio do compartilhamento da diversidade - situação capaz de representar a base da verdadeira liberdade.

Introdução

Roger Hausheer


É paradoxal que, numa época de confusão moral e política sem precedentes, haja um aumento de interesse pelas exposições populares de ciência, cujo tema só é plenamente compreensível para um punhado de especialistas. No entanto, o próprio campo que mais nos interessa e é acessível a todos nós em virtude da nossa humanidade, ou seja, o dos estudos humanos, não parece ter captado a imaginação popular no mesmo grau. Isso é especialmente lamentável porque, em grande parte despercebido pelo público em geral, nos últimos duzentos anos ocorreu um progresso na compreensão acerca dos seres humanos, um avanço cuja relevância para os interesses atuais é inestimável. A obra de Isaiah Berlin constitui uma parte essencial desse desenvolvimento, podendo ser realmente vista como uma espécie de panorama.

Berlin passou a maior parte da sua longa vida refletindo sobre problemas humanos centrais, especialmente as questões da identidade e valor humanos, associação e organização, teoria e prática política. Em grande medida, seu interesse por essas questões surgiu da sua própria vida.

Nascido em Riga, súdito judeu do czar russo, ele ainda era criança em Petrogrado durante as primeiras fases da Revolução Russa, quando testemunhou um episódio que o fez odiar para sempre a violência. Chegando à Inglaterra, com onze anos, rapidamente se adaptou ao seu novo ambiente e realizou uma deslumbrante carreira acadêmica em Oxford. Suas origens legaram-lhe três lealdades principais - judaica, russa e inglesa. Foi talvez essa primeira colisão na formação de um homem supremamente inteligente e sensível que estimulou o seu interesse por um aglomerado de questões que sempre o preocuparam. Sua infância foi rompida por uma das grandes tempestades políticas do século, sendo o começo de sua maturidade dominado pela Segunda Guerra Mundial e por seu trabalho como analista político em Washington e Moscou. Além disso, embora ele raramente fale, nenhum relato de sua vida pode omitir a perseguição e a perda de muitos parentes próximos no holocausto nazista e sob a tirania soviética.

Há, portanto, uma qualidade autêntica no que ele diz sobre as grandes questões de nosso tempo e que está freqüentemente ausente nos escritos dos acadêmicos. E, ao contrário de muitos intelectuais, Berlin manteve ligações estreitas com a vida pública. Sua ampla rede de contatos o tornou um observador privilegiado, às vezes um participante ativo, de alguns dos principais acontecimentos da época. Os seus famosos despachos de Washington no tempo da guerra e a sua íntima associação com Chaim Weizmann durante o período que precede a fundação do Estado de Israel são apenas dois dos exemplos mais conhecidos.

Há, também, o seu especial caráter intelectual, a sua extraordinária capacidade de entrar numa ampla diversidade de perspectivas e recriá-las. É a sua habilidade de se transpor para as mentes de outros tempos e lugares e de temperamentos radicalmente diferentes que o torna um explorador tão perspicaz da condição moderna; e a sua viagem de descoberta pode ser vista como análoga, na esfera mental, àquelas explorações pioneiras do mundo externo que constituíram os principais triunfos da humanidade ocidental desde a Renascença. Ele é um dos primeiros e mais prescientes participantes de uma situação aflitiva que um número cada vez maior de pessoas está se dando conta de partilhar: o confronto de culturas e valores que permeia o nosso mundo. Nessa área, não há pensador contemporâneo que tenha mais a nos dizer.

No entanto, apesar de Berlin ser justamente renomado, como deixa claro o prefácio de Noel Annan, a sua reputação ainda é unilateral - em parte por ter se tornado vítima de si mesmo: seu brilho em conferências e conversas, bem como seu grande dom para a amizade, às vezes desviam a atenção de sua realização intelectual. Conhecê-lo é saber imediatamente por que ele é tão célebre. Mas sair desse primeiro estágio para a imersão no corpus completo de seus escritos é um grande passo. Além disso, a facilidade com que percorre, em sua atividade, tantos campos não relacionados prima facie significa que diferentes leitores vão admirá-lo por partes aparentemente desconexas de sua ouvre, sem nenhuma percepção de que é tudo fragmento de um mesmo quadro.

Ainda mais, há obstáculos reais no caminho de uma plena recepção de suas visões em toda a sua originalidade freqüentemente subversiva. Para começar, a influência de padrões científicos de pensamento sobre nossa perspectiva geral tem se tornado bastante difundida; e a esmagadora maioria é hoje acriticamente escrava de formas mais ou menos cruas de cientismo. Essa índole geral constitui uma importante barreira para compreender a realização de Berlin, embora nenhum pensador a tenha combatido com mais persistência. Além disso, como uma grande parte da atenção de Berlin tem se voltado para o exame das estruturas mais profundas, as categorias que formam as matérias básicas da nossa experiência, seus leitores enfrentam uma cabal dificuldade de ver o que lhes está tão próximo - parte de si mesmos e de seu equipamento perceptivo - que não pode ser "visto" de modo algum, apenas sentido e apontado com gestos.

Existe também o perigo de uma espécie de rejeição emocional a certas afirmações de Berlin. Alguns de nossos ideais e crenças mais caros, parte dos alicerces de nossa concepção de nós mesmos, são revelados como algo menos sólido e eterno do que tínhamos imaginado, o que pode ser profundamente perturbador. E a doutrina do pluralismo objetivo, o âmago da contribuição de Berlin, subverte os princípios racionalistas mais importantes que reinaram pelo menos por dois mil anos, subjacentes não só às doutrinas políticas dos grandes e opressivos construtores de sistemas, mas até às dos liberais modernos mais moderados. Um importante passo preliminar para compreender a realização de Berlin é afastar esses equívocos, dissipar a resistência irracional, unindo os fios de sua contribuição para compreendermos a nós mesmos como seres livres, criativos e autocríticos. Desse ponto de vista, todos os seus ensaios parecem partes de um único projeto que é lentamente revelado.

Embora em certo sentido Berlin seja um filósofo, preocupado em analisar nossos conceitos e categorias básicos, ele é também extremamente curioso sobre a imensa diversidade da vida humana. O seu interesse por história, literatura e artes, pela política e a vida social - por toda expressão da existência e do comportamento humanos - tem sido de amplo alcance. Seu desejo de conhecimento pelo prazer do conhecimento foi um motivo fundamental para que se decidisse a abandonar a filosofia pura na época da guerra: no fim da vida ele buscava o conhecer mais do que no começo. E não foi por acaso que a disciplina cumulativa para a qual ele se voltou tenha sido a história das idéias. Já quando escrevia sobre Marx na década de 1930, ele deparara com a abordagem científica e sociológica do Iluminismo francês. Como empirista e adepto dos métodos racionais, Berlin estava fadado a simpatizar com o desejo iluminista de eliminar a teologia e a metafísica, a superstição, a tradição e a autoridade cega. Por que não haveria uma ciência do homem no mesmo nível do sistema newtoniano na física? Condorcet falara do dia em que haveria uma sociologia naturalista capaz de estudar os humanos como as ciências naturais estudam as abelhas e os castores. Foi esse programa que propiciou a inspiração intelectual central da Revolução Francesa. No entanto, embora a revolução fosse uma tempestade purificadora, ela conseguiu tudo menos realizar a sua meta positiva de uma duradoura ordem social calcada na razão. E, na época em que escrevia o seu livro sobre Marx, Berlin sabia que a herdeira mais recente da tradição cientista do Iluminismo, a Revolução Bolchevique, havia gerado uma ditadura opressiva que ofuscava até os excessos da era revolucionária francesa. Algo nas premissas fundamentais de toda essa abordagem do estudo da sociedade estava errado.

No curso dessas reflexões, Berlin estava fadado a encontrar toda a coorte de pensadores que, desde o começo, tinha se rebelado contra essa perspectiva. Foi aos inimigos do Iluminismo que Berlin se voltou para procurar compreender o fracasso de uma tendência geral por cujas ambições globais ele nutria total simpatia, mas possuidora de alguns pressupostos não examinados dos quais havia começado a duvidar seriamente.

Entre esses pressupostos está o de que tudo deve ser estudado com distanciamento objetivo como mero material que pode ser exaustivamente descrito, classificado ou submetido a leis causais. Para fins científicos, nada tem vida independente fora dos sistemas de leis que regem o seu comportamento, ou além dos esquemas classificatórios em que se inclui. O inexplicável, o imprevisível, o indescritível são descartados por um método que é, por sua própria natureza, determinista. No caso da física, por exemplo, que para o Iluminismo era o paradigma da ciência, as coisas não têm objetivos - "causas finais", nem vida interior, nem ideais; há apenas regularidades causais. Sem dúvida, Aristóteles fora culpado de antropomorfismo, quando atribuiu causas finais a todas as coisas, inclusive ao próprio universo; mas a tendência dos pensadores do Iluminismo era eliminar por completo os objetivos. Isso parecia indevidamente austero, sobretudo quando eles começaram a estudar o homem e suas obras.

De modo mais geral, o novo quadro científico do mundo se baseava em três pressuposições cardinais, comuns à maior parte do pensamento sistemático ocidental desde os tempos de Platão. Essas pressuposições são que o cosmos constitui um único conjunto harmonioso, cuja estrutura existe independentemente de qualquer observador; que podemos descobrir o que é essa estrutura e encontrar as respostas para todas as nossas perguntas de teoria e prática; e que possuiremos então um corpo coerente e inconsútil de conhecimento, no qual nenhuma proposição possa contradizer outra.

É contra esses dogmas monolíticos que se dirige grande parte da obra de Berlin. Às vezes ele os ataca diretamente, outras vezes expõe as deficiências desses dogmas examinando as idéias de alguns de seus opositores mais formidáveis. Ele separa a esfera humana - na qual a liberdade, a escolha e a ação intencional consciente são centrais - do mundo das forças impessoais. O seu primeiro passo é defender uma forma não-determinista de liberdade humana. "'Da esperança e do medo libertados'" representa a esse respeito um golpe desfechado contra uma das ortodoxias centrais que perpassam a história da filosofia ocidental.

A questão do livre-arbítrio e do determinismo preocupou Berlin durante toda a vida. Nesse ensaio, ele discorda da antiga doutrina de que qualquer aumento de conhecimento acarreta um aumento de liberdade. Na sua forma mais rígida, essa visão virtualmente identifica a racionalidade e a liberdade. Berlin rejeita a doutrina do autodeterminismo clássico, de que a verdadeira liberdade é autogoverno racional. Não posso ser considerado livre, se nada, inclusive eu mesmo e a minha natureza, pode ser concebivelmente diferente do que é. Nesse caso, as noções de liberdade e responsabilidade se tornam vãs.

O passo seguinte é dado no nível da vida humana coletiva quando, em "A inevitabilidade histórica", Berlin ataca as teorias deterministas que vêem a história como algo que obedece a leis inalteráveis. Essas visões são inspiradas em parte pelo sucesso das ciências naturais, em parte pela crença profundamente arraigada na teleologia, segundo a qual todas as coisas, inclusive os seres humanos, perseguem objetivos; e são não menos inspiradas pelo nosso perene desejo de abdicar da responsabilidade. Berlin desmascara todas essas posições como dogmáticas e não empíricas. Mas, contra o determinismo, ele também aponta um argumento mais geral que nos leva ao próprio núcleo de sua visão do homem.

Poucos pensadores modernos são tão conscientes quanto Berlin das categorias centrais que constituem a nossa noção de seres humanos. Sabemos desde Kant que há uma estrutura de categorias pela qual a nossa concepção do mundo exterior é determinada. Vemos, pensamos e agimos segundo essas categorias, e, apesar de sermos capazes de ter consciência disso, elas não podem ser em si mesmas objetos de uma ciência. A pesquisa intensamente difícil que revela essas categorias pode ser estendida em duas direções: pode ser levada mais a fundo na esfera da subjetividade, revelando as suas estruturas básicas; e pode explorar a emergência histórica de algumas das pressuposições mais profundas sobre o que somos como seres humanos. Embora a contribuição de Berlin tenha permanecido em grande parte na última esfera, o que ele diz sobre a primeira é ainda assim de grande interesse. Ele possui uma forte consciência de um "senso de realidade" primordial, anterior a todos os demais pensamentos e análises racionais, inclusive a ciência profética. As páginas em que descreve isso, particularmente em "A inevitabilidade histórica" e "O ouriço e a raposa", brilham com uma luminosidade rara na filosofia moderna. Esse senso primitivo é a raiz de nossa convicção de que somos seres livres em algum sentido absolutamente não-determinista. Tão básica é essa convicção que todo o nosso vocabulário moral nela se baseia: noções como responsabilidade, elogio, remorso e mérito resistem ou caem com ela. Não podemos descartá-la sem descartar uma parte tão grande de nosso senso fundamental de humanidade que a tentativa se revela impossível. Procurar explicar essa consciência não analisável das "categorias" em termos científicos é como tentar fazer a base da montanha se equilibrar no seu cume: ela está vários níveis abaixo e além do alcance dos conceitos causais.

Há, portanto, razões convincentes pelas quais os humanos não podem ser estudados apenas como objetos naturais exaustivamente explicáveis pela ciência natural. Em "O conceito de história científica" em particular, Berlin mostra como a história difere da ciência e explica por que uma ciência da história é conceitualmente impossível. Esse ensaio, junto com "Ainda existe a teoria política?", sugere um programa para o tipo de história das idéias que Berlin defende. Os seres humanos se interpretam a partir de muitos modelos gerais. Alguns desses modelos são tão velhos quanto a própria humanidade, e assim virtualmente universais; outros mudam, às vezes dramaticamente, ao longo da história. A tradição ocidental no pensamento político tem sido uma sucessão desses modelos. Quando se tornam antiquados e não acompanham os padrões mutáveis da experiência, são substituídos por outros. Nenhum modelo consegue abranger globalmente a totalidade da experiência: cada um é exclusivo e, na melhor das hipóteses, lança luz sobre um recorte da vida humana. Mas, ao contrário das teorias científicas suplantadas, esses modelos retêm um valor permanente, pois cada um abre suas próprias portas especiais do autoconhecimento; e deveria ser uma preocupação central dos historiadores das idéias, em toda e qualquer geração, questionar esses modelos e avaliar a sua relevância para os problemas singulares de seu tempo. Berlin passou a vida empenhado nessa atividade, com alguns resultados extraordinários.

Virtualmente toda a obra de Berlin na história das idéias gira em torno do que ele considera a maior revolução em nossa perspectiva básica desde a Renascença: a rebelião contra o monismo. O escritor cuja obra contém, para Berlin, as primeiras premonições dessa mudança é Maquiavel. Segundo Berlin, é muito provável que ele tenha sido o primeiro a justapor com nitidez dois sistemas de moralidade mutuamente exclusivos: a ética cristã, que visa à perfeição da vida individual; e a da Roma republicana, que visa ao poder e à glória do corpo político. Não existem critérios para escolher entre esses dois sistemas igualmente válidos. É isso, e não o "maquiavelismo" de Maquiavel, que tem nos afligido desde então. Marca a primeira fratura irreparável na crença numa única estrutura universal de valores.

Outras rachaduras foram abertas pelo gênio estranho e isolado de Giambattista Vico. Segundo a interpretação de Berlin, Vico foi pioneiro em afirmar explicitamente que os humanos não possuem uma essência inalterável; que eles compreendem as suas obras e o mundo da história por eles próprios criado de um modo que não lhes permite compreender o mundo da natureza exterior; que há uma distinção entre o conhecimento que adquirimos como agentes, a partir de dentro, e aquele que adquirimos pela observação, a partir de fora; que uma cultura tem um padrão difuso pelo qual todos os seus produtos são marcados; que todas as instituições e criações humanas são formas de auto-expressão; que não existem padrões permanentes na arte ou na vida, e que tudo o que é humano deve ser julgado a partir das normas de seu tempo e lugar; e que uma nova variedade de conhecimento deve ser acrescentada aos dois tipos tradicionais (dedutivo e empírico) - uma forma de conhecimento pela qual entramos no universo mental de outras eras e outros povos por meio da imaginação que os recria.

As implicações para a concepção de Berlin sobre a história cultural são evidentes: as obras de Vico deram origem à distinção fundamental entre as ciências e as humanidades. A conseqüência fatal para o monismo é que, se existe uma lacuna intransponível entre essas duas províncias, abriu-se uma brecha no dogma de que todo o conhecimento deve formar um conjunto inconsútil.

É no mundo alemão que Berlin vê a revolta contra os dogmas centrais do Iluminismo realmente vingar. O movimento Sturm und Drang escarnecia de todas as formas de organização política e, em toda esfera da vida, rejeitava regras desse tipo. Foi o grande contra-racionalista J. G. Hamann quem primeiro expressou conscientemente essa revolta. Ele era contra qualquer abstração. As generalizações científicas tinham, na melhor das hipóteses, um valor instrumental - não podiam produzir um conhecimento inatacável. O verdadeiro conhecimento só nos é dado pelos sentidos, pela imaginação espontânea e pela intuição. Tudo o que vale a pena conhecer é conhecido pela percepção direta. A teoria da linguagem de Hamann - segundo a qual a linguagem não mapeia uma realidade eterna preexistente, mas cria o seu próprio mundo, com a implicação de que há tantos mundos quanto linguagens - possui uma ressonância moderna e teve um imenso impacto sobre o seu discípulo J. G. Herder.

Para Berlin, Herder é de importância central. Revelando algumas das principais categorias que transformaram o mundo moderno, ele trouxe uma contribuição permanente para o autoconhecimento humano. Três idéias novas se originaram com ele: o populismo, a crença de que os homens só podem se compreender plenamente como membros de uma cultura identificável, com raízes na língua, tradição, história; o expressionismo, a noção de que as obras dos homens "estão acima de todas as vozes que se fazem ouvir", formas de comunicação que transmitem uma visão total da vida; e o pluralismo, o reconhecimento de uma variedade indefinida de culturas e sistemas de valores, todos igualmente definitivos e incomensuráveis uns em relação aos outros, de modo que se torna incoerente a crença num caminho universalmente válido para a realização humana.

Depois disso, nada mais foi o mesmo. Desde o início do século XIX, particularmente nas terras alemãs, uma nova e poderosa imagem enfeitiçou a imaginação européia. Berlin lança luz sobre esse fato tanto em "O Contra-Iluminismo" como em "A apoteose da vontade romântica". Sucessivos escritores alemães foram cada vez mais longe na sua rejeição à noção de objetividade, deixando Vico e Herder muito para trás - não apenas na esfera da ética e da estética, mas também em relação à própria existência do mundo objetivo. Ocorre uma mudança revolucionária de categorias, pela qual a vontade usurpa a função do intelecto, e a criação livre substitui a descoberta científica. Embora isso tenha começado no campo artístico e nas relações privadas, logo transbordou para a política e a vida social, com resultados catastróficos.

Nesse ponto a figura central, para Berlin, é Fichte, que inaugurou uma era com sua filosofia do ego absoluto que tudo cria. O indivíduo heróico que impõe a sua vontade à natureza ou sociedade torna-se o modelo dominante. A noção do ser assertivo e criativo que gera os seus próprios valores e metas passa a inspirar muitos movimentos artísticos e políticos bastante diversos. Esse é o ponto de origem do pragmatismo, existencialismo, subjetivismo, relativismo. O conhecimento é rebaixado ao status de servo de nossos objetivos práticos, e o próprio mundo não é senão a imagem moldada pelos nossos projetos de vida. O heroísmo e o martírio, a integridade e a autenticidade são os valores em torno dos quais as existências são desde então organizadas. A verdade ou a falsidade de um ideal já não é considerada importante, nem sequer é proposta como questão.

As implicações para a idéia de nacionalismo são muito grandes. O nacionalismo surge como uma doutrina coerente nas páginas de Herder, cujo arquiinimigo era o materialismo universalista francês. Berlin apresenta o pensamento não só como uma rejeição às regras racionais universais, mas também como uma reação alemã à atitude condescendente dos franceses dominantes. Essa reação natural de orgulho ferido, da parte de um povo atrasado para com outro mais avançado, é o primeiro caso de uma atitude que deveria se tornar cada vez mais predominante no século XIX e que hoje em dia se tornou uma síndrome em todo o mundo. Para Herder, o senso de nacionalidade é benigno: mas quando o ser criativo livre dos românticos alemães assume formas coletivas, como acontece tão facilmente, e torna-se identificado com uma nação, raça, cultura ou alguma outra entidade suprapessoal, ocorrem combates mortais. Cada entidade separada persegue as suas próprias metas independentes, que procura concretizar e impor a todos. Sem critérios universais de julgamento, segue-se a guerra de todos contra todos. Isso é nacionalismo agressivo com vingança, e desse estágio para o fascismo e o nacional-socialismo é um pequeno passo.


Conceitos-chave

Liberdade negativa

É a ausência de restrições impostas à ação do indivíduo. Segundo essa concepção, a pessoa é livre se ninguém a impede de fazer o que ela deseja. Quando se pensa na relação indivíduo e Estado, pela concepção da liberdade negativa, o indivíduo deve ser resguardado das restrições que o Estado o impõe. As leis devem proteger o indivíduo da ação de outros indivíduos e do Estado.
Em linhas gerais, é associada ao liberalismo político e aos direitos civis.

Liberdade positiva

É a presença de controles que possibilitam ao indivíduo agir livremente, segundo sua vontade.

Aplicada à política, a concepção da liberdade positiva defende que o Estado deve fornecer ao indivíduo as condições materiais (saúde e educação, por exemplo), para que ele esteja plenamente apto a fazer suas escolhas. É associada à social-democracia e aos direitos sociais.

Pluralismo

É o reconhecimento da diversidade de valores humanos.

Opõe-se ao monismo (uma verdade única que pode determinar toda a vida). O pluralismo ético defendido por Berlin diz que sociedades têm conjuntos de valores diferentes, que podem ser compartilhados entre si, mas elas são diferentes nos seus conjuntos de valores.

Incomensurabilidade

Para Berlin, os valores não podem ser medidos, e não há um procedimento para resolver os conflitos de valor.

Assim, a ideia de unidade perfeita - como aparece na tradição filosófica utilitária, ao defender a síntese de valores em uma única categoria, como "bem-estar" ou "felicidade" - é impossível.


Mais!

Caderno Mais! entrevista três acadêmicos sobre Isaiah Berlin

Cyrus Afshar
da Folha de S.Paulo

Admirado pela direita, visto com desconfiança pela esquerda, o filósofo político Isaiah Berlin, que completaria cem anos no próximo sábado, era, sobretudo, um "humanista", na opinião de três destacados acadêmicos brasileiros ouvidos pela Folha.

Newton Bignotto, professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais, Ricardo Musse, professor do departamento de sociologia da USP e Fábio Wanderley Reis, cientista político e professor emérito também da UFMG - debatem seu legado e as implicações políticas e sociais de suas ideias e conceitos mais importantes.

Para eles, os conceitos que consolidou - pluralismo, liberdade positiva e liberdade negativa - podem ajudar a compreender os interesses em jogo por trás dos conflitos nas democracias contemporâneas e ajudam a organizar o debate de ideias.

Na entrevista abaixo, discutem também o que significa ser de direita no Brasil de hoje.

Folha - O que é ser direita no Brasil?

Newton Bignotto - É uma pergunta difícil de responder hoje. Primeiro porque essas noções, derivadas da Revolução Francesa e que tiveram tanta importância nos dois séculos que se seguiram, se dissolveram razoavelmente. E, sobretudo, no Brasil, onde poucas pessoas se declaram de direita e nenhum partido se declara de direita. O máximo que podemos chegar, no cenário político, é encontrar pessoas com posições conservadoras, por exemplo, com relação ao aborto, ou, no campo político, com o modo de financiar campanhas. É difícil encontrar uma identidade na direita brasileira ou, pelo menos, que pudesse responder à forma como nós designávamos. Eu tenho quase dificuldade em encontrar no cenário político forças que se autodesignem de direita.

Ricardo Musse - Isaiah Berlin não é um teórico da direita brasileira. Ele é um liberal quase clássico em sua vertente, fortemente ligado ao Iluminismo. No Brasil, ele seria de centro-esquerda. Ele mesmo se diz, em seus textos, mais de centro-esquerda. Ele foi muito admirado por Noel Annan, um dos gurus da ex-premiê britânica Margareth Thatcher. Então, talvez por isso ocorra a associação. Mas a obra dele não se enquadra nesse perfil de um pensador de direita.

Fábio Wanderley Reis - Acho que ser direita em qualquer lugar do mundo pode ser posto em termos de certos valores que subsistem - apesar da tentativa de desqualificação de esquerda e direita que há por aí.

Por um lado, [trata-se] da ênfase na ordem ou eventualmente na ênfase na adesão a uma dinâmica eficiente no plano econômico - do sistema capitalista em particular.

Enquanto no outro lado, na esquerda, você teria a preocupação com a igualdade, com promoção social dos destituídos, dos mais pobres, uma perspectiva mais igualitária, em que o valor básico da igualdade é um valor de referência por excelência.

Isso é o que é possível dizer genericamente.

Quanto ao Brasil, o que nós temos, se tomarmos o eleitorado em geral, é uma grande confusão. Não há a menor dúvida - e as pesquisas mostram reiteradamente isso há muito tempo - que o grosso do eleitorado popular não entende essas categorias e as usa de maneira equivocada, errônea, que envolve confusões banais como [associar direita a] "ser um sujeito direito", coisas desse tipo.

As categorias, do ponto de vista da percepção do eleitorado, são em grade medida irrelevantes, se tomadas no sentido estrito.

As pessoas não conhecem o significado disso. Naturalmente, nas pessoas que têm atividades políticas, existe algum conhecimento, ainda que possa haver muitos equívocos associados a isso. Mas creio que o fundamental é uma percepção marcadamente negativa da ideia de direita, do que resulta que todo mundo, todos os políticos, todos os militantes recusam a pecha de direitista como uma pecha insuportável, como algo que não seria de modo nenhum aceitável.

Folha - Por que há, no Brasil, uma dificuldade de setores da elite política de se assumirem como "de direita", quando não ocorre a mesma coisa nos outros países?

Bignotto - Os partidos políticos brasileiros, ou pelo menos a maioria deles, não têm um perfil político definido - e nunca tiveram. Mais que isso: temem ter esse perfil porque querem disputar eleitores em todas as faixas. Os próprios programas dos partido são muito vagos. E isso impede que haja uma identidade tanto programática quanto uma identidade ideológica. De fato nós não tivemos uma construção de um ideário, pelo menos em relação aos partidos atuais, que exija deles essa definição. Então, no Brasil, se formos pegar os programas, as cartas de intenção, dá a impressão de nós só temos partidos de centro.

Reis - A [categoria] "direita" adquiriu no país uma conotação marcadamente negativa, se transformou em uma pecha, em um xingamento. As pessoas são levadas a se dissociarem disso. As pessoas podem eventualmente se assumir como conservador ou algo desse tipo. De qualquer modo, trata-se de evitar que o carimbo "de direita" seja pregado na peça.

Folha - Qual a influência das ideias de Isaiah Berlin nas correntes políticas atuais?

Bignotto - Seria interessante situar Isaiah Berlin dentro do quadro mais amplo do liberalismo. Ele é tipicamente um pensador liberal e que, nesse sentido, foi um pensador liberal influente na primeira metade da sua obra - que vai até os anos 1960 - porque ele leva um combate contra os totalitarismos e contra outras forças que ele associava à formação dos regimes totalitários, e isso marca fortemente sua posição liberal nesse quadro.

Do ponto de vista teórico, Berlin não tem uma obra sistemática. Ele foi mais um ensaísta do que um filósofo sistemático. No entanto, algumas de suas contribuições foram importantes. Por exemplo, foi ele que consolidou - não inventou - a distinção entre liberdade positiva e liberdade negativa. Isso foi uma contribuição interessante que ele deu, porque hoje em dia isso é usado, em uma linguagem da filosofia política, com muita frequência - independentemente da corrente do pensador. Outra contribuição fundamental foi ter chamado a atenção para ideia de pluralismo ético. E ter dado tanta importância à ideia de liberdade é o que marca sua herança atual.

Musse - É uma influência muito modesta. Ele foi um pensador muito estudado em sua dimensão individual na década de 1990, quando teve maior impacto na Inglaterra, no mundo anglo-saxão. Os conceitos mais discutidos foram as duas liberdades - positiva e negativa - e o conceito de pluralismo. Esse foi o ponto da discussão política mais debatido.

Reis - A influência direta dele é muito pequena. Ele não é um autor muito festejado, muito citado, muito lido. Não existe uma atenção especial voltada para ele nem mesmo no meio acadêmico, eu diria. Claro que ali se tem conhecimento de Berlin, especialmente do ensaio mais clássico em que ele distingue as duas formas de liberdade [Dois Conceitos de Liberdade, publicado em Four Essays on Liberty, Quatro Ensaios sobre a Liberdade].

É o ensaio que responde à atenção maior que se tem em relação a ele, especialmente aqui. Se você vai mesmo aos EUA, você pode ter discussões do liberalismo, em geral no campo da filosofia política, em que há pouca menção de Berlin.

Folha - O que é o conceito de pluralismo de Isaiah Berlin?

Bignotto - A partir da leitura de Maquiavel e de escritores russos, como Tolstoy e Dostoievsky, ele pensou: o que esses pensadores têm em comum? Para ele, têm em comum esses pensadores que sociedades diferentes vão ter conjuntos de valores diferentes. A pergunta que fica é: isso é relativismo? Ele responde: não, isso não é relativismo, isso é pluralismo.

Não é a ideia de que nós não tenhamos ou possamos partilhar ideias no campo ético, mas sim que sociedades concretas históricas terão um conjunto de valores diferentes, que poderão comerciar, negociar entre si, nós podemos reconhecer isso em outras sociedades, mas elas serão diferentes nos seus conjuntos de valores. E ele chamava isso de pluralismo ético, o fato que civilizações diferentes necessariamente reconhecerão valores diferentes.

Musse - É preciso, primeiro, observar que a sua obra mescla ideias próprias com a historiografia das ideias. Mas, de certa forma, nós poderíamos dizer que há uma unidade - aí no sentido de que a leitura que ele faz de certos leitores, de certos temas, já deixa entrever sua visão política-teórica que está centrada no conceito de pluralismo. Então o repertório de que ele trata - Maquiavel, Vico, Herder, Herzen - e mesmo os grandes conceitos históricos que ele aborda - romantismo, utopismo - são focados a partir dessa questão do que ele denomina de pluralismo. A própria trajetória de Berlin é de certo modo emblemática porque ela se inicia com a filosofia empírica inglesa, com a recepção do círculo de Viena, com a filosofia tradicional de Oxford do entreguerras e depois ele se volta para aquilo que nós chamamos de filosofia europeia propriamente. Mas o ponto pelo qual ele faz essa travessia é o Iluminismo. Ele tem uma visão dual do Iluminismo. Ele incorpora muitos pontos, mas também tem muitas críticas desta filosofia. Mas é a partir desse ponto que se desenrolou a sua obra, tanto como historiador das ideias quanto como pensador político. Grande parte das questões e dos conceitos que ele desenvolve são forjados no âmbito do iluminismo - que de certa forma tem atualidade na discussão contemporânea-- vide, por exemplo Habermas, que se propõe a refundar os valores do iluminismo. O pluralismo dele não é como o pluralismo de [Max] Weber. É até estranho que ele não discuta, não cite Weber, que é o pluralista contemporâneo mais destacado com a sua teoria do politeísmo dos valores. Só que o politeísmo weberiano dos valores supõe um conflito, uma competição entre esses valores. Há uma guerra perpétua entre esses valores. E Berlin está olhando em um sentido mais amplo. Existe uma leitura de incorporação de conceitos do Herder que nós podemos designar como pluralismo cultural. Há um reconhecimento da diversidade dos valores humanos. Esse reconhecimento é tão amplo que ele chega, em determinados textos, a reconhecer o nazismo como uma expressão da diversidade cultural humana.

Folha - Mas isso não é perigoso?

Musse - Esse é um dos dilemas de seu pensamento. Aí nós entraríamos na questão das contradições, das ambiguidades e das antinomias de seu pensamento. É uma questão clássica do Iluminismo: ele procura conciliar seu pluralismo cultural com um certo universalismo moral e, por meio disso, evitar o relativismo, aquilo que seria um niilismo inerente ao relativismo, que tudo seria aceitável. Apelando para o bom-senso da ação moral, ele diz que o relativismo destoa das nossas concepções do que é certo e errado, justo e injusto. Resumindo, eu diria que ele constrói seu pluralismo cultural pensando em termos culturais, civilizacionais, mas procura rejeitar o perigo de um relativismo. E o faz porque uma das questões decisivas é o domínio sobre as ações humanas. E ele encara essa questão da ação humana um pouco como ela foi colocada na época do Iluminismo. Ele vai colocar sua ideia de pluralismo em relação á ideia de monismo. O monismo seria uma espécie de determinismo, uma verdade única que, mesmo que não tenha sido ainda encontrada, ela o será em algum momento - e por meio dela se pode determinar toda a vida, a conduta da vida, a ação humana. Já pluralismo supõe uma variedade de verdades, não o regime único da verdade. A grande questão do pluralismo é a dificuldade de explicar o oposto. Quando ele adota o pluralismo, a sua dificuldade é justificar o universalismo moral. E, para tanto, ele recorre a uma ideia de identidade humana, de natureza humana, que é complicado no meu modo de ver, porque, por mais que ela não seja única, ela tem um estoque limitado.

Aí que surge a dificuldade: que tipos de comportamento podem ser vistos como da natureza humana e onde está essa fronteira.

Folha - Em que países o pensamento de Berlin encontrou mais eco?

Bignotto - Como Berlin foi basicamente um ensaísta, e a produção dele estava dispersa - a maior parte dispersa antes de seu principal editor do final da vida, Hardy, ter realizado o trabalho de "ajuntamento" das diversas conferências, ensaios e artigos - ele encontra muito eco na Inglaterra, onde Berlin se estabeleceu, e nos EUA.

Pessoalmente, foi muito ligado a Israel. Inicialmente foi nesses países. Depois que esse editor passou a reunir seus trabalhos, passou a ser mais conhecido na França e no próprio Brasil, onde alguns livros foram publicados e ele passou a ter um acolhimento interessante.

Musse - Acho que esse respaldo aconteceu, sobretudo, no Reino Unido. Ele teve uma recepção, digamos, diferenciada. Lá, foi lido um filósofo original, como um pensador político, como um teórico da política. No resto do mundo - e, em particular, no Brasil também é assim - ele foi lido e admirado como um grande historiador das ideias. As pessoas tenderam a ler a obra do Berlin sem se preocupar com suas posições políticas, mas, sim, com a sua reconstituição no território das ideias, valorizando sua erudição, sua capacidade panorâmica de fazer grandes associações entre grandes movimentos culturais, intelectuais.

Reis - Sem dúvida no Reino Unido, onde ele teve atuação mais destacada na sua carreira. Ele era inclusive um lorde, apesar de ser estrangeiro de origem. A [pouca] presença que ele possa ter fora de lá é devido diretamente ao fato de que ele estava na Inglaterra. Especialmente em um contexto em que, de longe, a maior produção na área de ciência política se faz nos EUA, uma carreira toda ela "inglesa" não é razão para que se tenha grande visibilidade. É claro que isso admite exceções. Claro que há um grau significativo de visibilidade para o que se faz na Inglaterra. Mas, sem dúvida não compete, desse ponto de vista, com a visibilidade que o fato de trabalhar e produzir nos EUA confere.

Folha - A definição de liberdade negativa e de liberdade positiva é um bom critério para posicionar tendências políticas de pessoas e de partidos no eixo direita-esquerda no espectro ideológico? Por quê?

Bignotto - Em relação aos partidos, acho que não. Porque na verdade Berlin é autor de um texto clássico sobre Benjamin Constant, em que ele separa liberdade dos antigos e liberdade dos modernos.

O que apontava esse texto era que a liberdade dos antigos exigia uma forma de participação intensa na vida pública, enquanto na modernidade, com o aparecimento da figura do indivíduo e a centralidade da vida pública em torno dessa figura, o conceito que deveria matizar essa ideia seria o de liberdade negativa - cuja primeira definição, na verdade, está na obra de Hobbes, como "não impedimento" das ações.

Então, acho que é um critério interessante para compreender no interior das teorias democráticas. Não me parece eficaz para dividir partidos. Ela não diz respeito a isso. Ela diz respeito à relação do indivíduo com o corpo político, a maneira como ele se relaciona com o conjunto de leis que estruturam um corpo político. Mas não propriamente de direita e esquerda.

Musse - Há um certo traço de Guerra Fria no pensamento dele, sobretudo nesses conceitos. Há uma certa marcação. O conceito de pluralismo é mais decisivo e mais determinante na obra dele do que os conceitos de liberdade negativa e de liberdade positiva. Inclusive porque esses conceitos se anulam mutuamente. Ele reconhece que, em certos momentos, a liberdade negativa, que ele privilegia, pode redundar no hiperindividualismo, em um capitalismo desgovernado.

Enquanto a liberdade positiva, que ele critica como uma matriz de um utopismo, pode, algumas vezes, ter uma contribuição positiva para a vida individual.

Esse é um diagnóstico que nós podemos identificar nos seus artigos sobre o [ex-presidente dos EUA Franklin] Roosevelt e o New Deal, em que há uma mitigação desses dois pontos, do antagonismo entre liberdade negativa e positivo.

Mas Berlin não faz essa associação [entre as duas liberdades e as ideologias de direita e de esquerda], e eu também não gostaria de fazer. Eu não considero uma boa aplicação, e ele também tomou o cuidado de não fazer.

Reis - Objetivamente acaba sendo. Você tem com a ideia de liberdade negativa algo que tende a ser lido em termos liberais, como uma posição em que se valoriza a autonomia dos agentes, dos cidadãos, tomada em um sentido em que autonomia equivale à afirmação de si - no limite, à afirmação irrestrita ou tão irrestrita quanto possível, sem ser objeto de interferência do Estado em particular. Enquanto a ideia de liberdade positiva supõe que você atente para a capacitação desse indivíduo para a capacitação e autorrealização etc... O que supõe, leva ou haja a expectativa de uma ação do Estado, em particular, para garantir que o sujeito possa exercer a sua autonomia. Isso, naturalmente, é um espaço de problema que acaba envolvendo muitas confusões. Na própria ideia de autonomia, por exemplo, há uma contraposição entre a noção de autonomia como a afirmação de si - que no limite é uma ideia libertina, em que você não é contido por nada, você segue os impulsos, não precisa aprender nada, você pisa nos calos de quem quer que seja se for o caso.

E no outro sentido, que é de certa maneira oposto a esse, que é a noção de autonomia como autocontrole. Autonomia envolvendo uma postura mais reflexiva, em que você tem que ter adesão necessariamente a normas e, portanto, a um elemento de solidariedade ao lado do valor de autonomia naquele outro sentido.

Seria possível contrapor o liberalismo no sentido estrito, apegado a noção de que o sujeito é livre para fazer o que quiser, nos limites da afirmação de si, "liberdade contra o que quer que seja que possa restringir essa liberdade". Você estaria contrapondo a esta posição uma postura que é cívica.

Há uma distinção, que também está nesse mesmo espaço de problemas, que é a divisão, em duas dimensões, da noção do sentido de cidadania. Uma tem a divisão civil, que vai nessa noção da componente liberal, que o cidadão é aquele que se afirma por si mesmo, no espaço privado, no mercado, que independe do Estado, que possa se afirmar contra o Estado, se for o caso, contra os demais, na medida em que isso seja necessário etc.

E, em contraste, há a dimensão cívica da cidadania, que tende a ocorrer no contexto das ideias republicanas, a experiência da Atenas clássica, da Roma republicana. É um departamento que trata da virtude como a virtude da responsabilidade em relação à coletividade. É um cidadão que está atento ao interesse coletivo, que é capaz de agir civicamente, altruisticamente, é capaz de, no limite, dar a vida pela coletividade.

Então você tem duas dimensões da cidadania, e o desafio é você conseguir um equilíbrio. Aí é que é preciso tratar de conciliar uma adesão mais radical ao anseio liberal pela ausência de restrições com a virtude cívica, uma certa atenção para o social, um certo sentido de responsabilidade perante a coletividade, de modo que você possa ter os dois lados.

Um, a afirmação de um princípio liberal, que redunda na garantia de direitos.

Por outro lado, a criação de condições para que possam ressaltar certas virtudes cívicas que mitigam a busca pelos interesses que você teria do outro lado.

Folha -As concepções de liberdade positiva e negativa são necessariamente antagônicas e conflitantes?

Bignotto - Não necessariamente. Um autor muito posterior ao Berlin, o [Philip] Pittit, que é autor de um livro bastante conhecido nos últimos anos, "Republicanismo", chama a atenção para o fato de que, no fundo, há fronteiras muito próximas entre as formas de liberdade no que diz respeito às práticas políticas efetivas.

Porque é claro que as sociedades democráticas atuais comportam uma dimensão participativa, quanto uma restrição - ou ausência de restrição - que é autorizada pela lei.

É por isso que é muito mais um marco teórico, que nos ajuda a pensar as categorias próprias da democracia contemporânea, do que uma fronteira estanque entre práticas que, uma vez colocadas para agir na sociedade seriam totalmente contrárias. Não me parece que seja assim; organiza o debate, mais do que qualquer outra coisa.

Musse - Elas são mitigadas em relação a uma afirmação mais peremptória. Em sua própria obra, ele diz que não. Ele busca em algum momento conciliar e mitigar os conceitos.

Reis - O desafio é fazer com que elas não sejam. E a saída é algo que pode ser traduzido como social-democracia. Se há uma forma de organização sociopolitica que conseguiu compatibilizar os valores que as duas concepções afirmam é claramente a social-democracia.

Você tem, por um lado, os direitos civis e políticos garantidos por aquilo que conforma o liberalismo político.

Além disso, você tem o estímulo da capacidade de cada um de ter iniciativa no âmbito do mercado - é claro que você não vai ter autonomia se as pessoas não puderem ser autônomas na esfera econômica, que é a esfera decisiva. Então o compromisso com o mercado como espaço de iniciativa particular de cada um no plano econômico é fundamental, mas, por outro lado, você tem a afirmação de um componente de solidariedade, de um componente atento para a igualdade --que é um componente trazido pelo estímulo da ação do Estado. Eu diria que a gente tem, aqui, uma forma de ver a coisa é tomar o problema como uma eventual neutralidade do Estado. Na perspectiva mais extremadamente liberal, a ideia é que o Estado deva ser neutro. Na perspectiva social-democrata, você tem uma busca de neutralidade de segundo grau: em vez de o Estado ficar fora do jogo, ele trata de criar condições para que o jogo seja jogado de maneira mais competitiva, em condições mais igualitárias.

E, portanto, em busca dessa neutralidade de segundo grau, ele intervém. Ele compensa as desigualdades de oportunidades que cada um traz do berço. Busca neutralizar os elementos de desigualdades que vem da estrutura socioeconômica dada, por meio do Estado.

Então, esse equilíbrio entre o valor liberal de autonomia de um lado e o valor social da igualdade seria algo característico da social-democracia.

O que vimos recentemente com a experiência neoliberal é muito claramente uma dinâmica que tendia a comprometer as diversas experiências social-democratas - porque ela tem diversas caras - e agora estamos vendo um movimento que resgata a perspectiva da social-democracia, o reconhecimento da necessidade da presença de intervenção e regulação por parte do Estado.

Folha - A vitória do "não" no referendo do desarmamento no Brasil, em 2005, foi uma vitória da liberdade negativa?

Bignotto - Em alguma medida, a gente pode formular isso, sim, ao passo que a ideia de liberdade negativa se aproxima da ideia de direitos civis e sobretudo de direitos individuais.

Acho que não é incorreto pensar - no plano dos direitos - que direitos, em geral, acolhem a ideia de liberdade negativa. São sobretudo os direitos individuais. Então, muitas pessoas se posicionaram em relação a essa questão da seguinte forma: "Não queremos ter nossos direitos restringidos por uma lei". Então dá para falar nesses termos, sim.

Musse - Acho difícil estender o conceito de liberdade negativa para determinados âmbitos como este. Logicamente, poderia ser dito que sim. Mas isso estaria em desacordo com o corpo central do pensamento de Berlin. Não podemos esquecer que Berlin era um humanista. E essa ideia de universalismo moral impõe um limite, porque, por um lado, a vitória do "não" é a prevalência do indivíduo sobre o Estado. É uma forma de diminuir o controle e, portanto, pode ser logicamente, como estou enfatizando, associada a essa ampliação da liberdade negativa. Mas, por outro lado, a noção moral e a própria ideia de humanidade está em desacordo com a ideia da guerra de todos contra todos, que de certa forma o "não" significava - ou pelo menos que a questão da segurança é uma questão individual, e não coletiva.

Reis - Vejo aquilo de maneira muito negativa. Não acho que seja uma forma de afirmar legitimamente o que a liberdade negativa tem de melhor. Com o estímulo da presença do Estado, da atuação reguladora do Estado e eventualmente até a atuação repressiva do Estado, percebe-se menos o fato de que, se cada um usa livremente sua liberdade negativa, isso resultará em pessoas pisando uma nos calos das outras.

Isso resultaria em violência, em briga, em criminalidade. Você teria uma sociedade hobbesiana.

Folha - Pode-se dizer que esta é uma manifestação de que a tendência encontra respaldo entre os brasileiros?

Bignotto - Acho que o problema que nós devemos nos colocar é a presença do liberalismo na sociedade brasileira. Essa separação ajudou Berlin a consolidar uma crença muito forte de tipo de liberalismo. [O sociólogo] Wanderley Guilherme dos Santos, em um texto antigo, mas muito interessante, dizia que o Brasil adotou ideias do liberalismo econômico muito cedo em sua história e que o liberalismo político sempre patinou entre nós. E eu acho que, em certo sentido, nós temos poucos atores que sejam verdadeiramente liberais e, sobretudo, poucos pensadores que nós possamos identificar como inteiramente liberais.

Então, nesse sentido é difícil dizer que encontrou respaldo. É fato que ideias próximas do liberalismo político têm ganhado espaço na mídia, assim como na sociedade civil e na sociedade brasileira em geral. E entre elas, certamente no terreno dos direitos individuais.

Reis - Depende como se lê. É algo que ilustra um certo grau em que é possível manipular com a chamada opinião pública ou o eleitorado slogans adequados. Bastaram que certos temas fossem agitados, como se aquilo envolvesse uma certa castração das pessoas, para que a coisa [a posse de armas] fosse apoiada.

Mas eu evitaria vincular aquilo como um exemplo de uma manifestação de um liberalismo em um sentido mais adequado, mais rico, por parte do eleitorado brasileiro em geral. Foi um momento infeliz, sob essa ótica.

Folha Online

O grande comunicador

O estatuto quase mítico de que Isaiah Berlin goza junto à mídia britânica atualmente ocorreu por falta de opção, defende o sociólogo inglês Steve Fuller. Para ele, o pensador sentia claramente ter falhado em sua intenção de se tornar um legítimo "filósofo de Oxford" e, por isso, lançou mão de sua grande capacidade de assimilação para se tornar um intelectual público.
Professor na Universidade de Warwick (Reino Unido), Fuller definiu o intelectual (em O Intelectual, ed. Relume Dumará) como um "personagem" que sabe que tem um papel a desempenhar, pois está no "negócio de promover ideias".
Mas Fuller, na entrevista abaixo, também é duro em relação a Berlin. Ele arrisca dizer que o filósofo não hesitaria em defender certos meios - como guerra e tortura - para resguardar o princípio da liberdade no planeta. (Marcos Flamínio Peres)


Folha - Por uma ironia da história, as ideias de Berlin foram em parte reivindicadas por partidos conservadores. Por quê?

Steve Fuller - Berlin nunca apoiou explicitamente os conservadores, embora eu possa entender a conexão entre ambos. Quando eu fazia a gradução na Universidade Columbia (EUA) no final dos anos 1970, um de meus professores, Robert Nisbet, se referia a ele como alguém que forneceu ao conservadorismo um rico "pano de fundo" histórico, como uma espécie de "Contra-Iluminismo". Isto é, não haveria apenas Edmund Burke, mas também Vico, Herder e Hamann.

Hoje, as novas gerações se esquecem de que a Guerra Fria foi travada entre "liberais" e "socialistas", e os "conservadores" foram legados à categoria de "reacionários". Berlin (talvez à sua revelia) reequilibrou a balança. Ele mostrou as origens do pluralismo no pensamento conservador e destacou que as tendências totalitárias aguardam qualquer deslize para surgir, tanto em meio ao socialismo quanto ao liberalismo.

Embora eu não partilhe de seus temores, não posso negar que ele tornou o debate político mais interessante, ao menos no nível intelectual.

Folha - Tomando a definição de seu livro, Berlin se aproxima mais do intelectual ou do acadêmico?

Fuller - A substância do pensamento de Berlin é hoje ignorada nos círculos acadêmicos, embora alguns de seus termos - como "pluralismo", "liberdade positiva" e "liberdade negativa" - ainda sejam utilizados.

Penso que ele é um pouco como Raymond Aron na França, um acadêmico com forte presença pública contra a "correção política" de sua época. Mas Aron tinha a vantagem de ter sido contraposto claramente a Sartre.

Em contraste, como acontece com frequência no Reino Unido, Berlin era "tolerado". E, com o tempo, tornou-se um "tesouro nacional" - expressão usada para a família real e pessoas excêntricas, no bom sentido.

Berlin também tem tido influência significativa fora do Reino Unido, especialmente em países onde a luta contra autoritarismos e totalitarismos permanece viva. O megainvestidor George Soros, por exemplo, está organizando na cidade natal de Berlin - Riga, na Letônia (ex-república soviética) - um evento para comemorar simultaneamente os cem anos de Berlin e os 20 anos da queda do Muro de Berlim.

Apenas na Letônia os dois "Berlins" poderiam ser considerados dignos da mesma comemoração.

Folha - O Reino Unido, país em que viveu a maior parte de sua vida, vem sendo considerado um exemplo de tolerância e multiculturalismo no Ocidente. O sr. acredita que a influência de seu pensamento tem a ver com isso? Como ele percebeu essas mudanças?

Fuller - Berlin certamente recebeu bem essas mudanças, mas não acho que suas ideias tenham de fato contribuído para elas. Um indicador melhor de seu pensamento pode ser encontrado na carreira de Michael Ignatieff [autor de Isaiah Berlin - Uma Vida, ed. Record], seu biógrafo autorizado e agora líder do Partido Liberal do Canadá. Bem conhecido como intelectual público no Reino Unido, o próprio Ignatieff tende a admitir tortura e intervenções militares, ainda que limitadas, como um meio de aumentar a liberdade no mundo.

De fato, Berlin sempre alertou contra o perigo do indivíduo se fundir na massa. A esse respeito, Ignatieff promoveu, por meio de uma Realpolitik, algo que Berlin apenas teorizara.

Folha - Por outro lado, a ideia de liberdade vem sendo ameaçada pela ascensão do terrorismo, de fundamentalismos religiosos e, numa escala geopolítica, pela emergência de uma superpotência não-democrática. Qual a validade do pensamento de Berlin para entender esse novo contexto?

Fuller - Minha aposta é de que ele falaria publicamente sobre a manutenção das liberdades civis, mesmo com as ameaças terroristas em escala global. Mas, reservadamente, apoiaria os esforços de pessoas como Ignatieff, no que diz respeito a tomar decisões duras sobre torturas e guerra, com a intenção de defender essas liberdades.

Folha - Citando o pos-scriptum de seu livro, o que aconteceu com Berlin após sua morte?

Fuller - Berlin é lembrado pela mídia de massa - e com razão - como um intelectual público. Mas creio que tenha chegado a essa posição por falta de opção. Ele acreditava claramente que havia falhado em sua intenção de se tornar um "filósofo de Oxford", propriamente falando.

Entretanto, sabia de seus talentos e, em uma entrevista à BBC, descreveu a si mesmo como um grande "assimilador". E o rádio, em especial, era uma mídia em que poderia ser facilmente assimilado.

Berlin era um grande improvisador, que podia falar frases complexas e interessantes, sem anotações.

A raridade dessa capacidade ajuda a explicar a mística atual de Berlin junto à mídia britânica.
Ele representa o acadêmico que todas as pessoas querem, mas que nunca encontram, nas universidades.

Mais!

Isaiah Berlin em português

Matheus Silva

Filósofo político e historiador, Isaiah Berlin (1909-97) tornou-se conhecido pelas suas contribuições na área da filosofia política, mais especificamente nas discussões acerca da liberdade. A sua principal contribuição é uma defesa da liberdade negativa apresentada em Two Concepts of Liberty (1959). A liberdade enquanto norma política pode ser interpretada de várias maneiras. Duas interpretações interessantes estão na distinção entre a liberdade negativa e a liberdade positiva. A liberdade negativa é a liberdade interpretada como a ausência de constrangimentos ou obstáculos à ação individual. A liberdade positiva é a liberdade interpretada com uma noção de autogoverno moral ou autodeterminação do indivíduo enquanto membro de um grupo.

As diferentes teorias em filosofia política acabam por privilegiar uma das duas interpretações, que sob certos aspectos são complementares. Se os liberais enfatizam a liberdade negativa devido à importância que atribuem à ausência de constrangimentos legais e sociais, teorias como a de Rousseau enfatizam que os gêneros mais importantes de liberdade só podem existir numa sociedade organizada com os constrangimentos necessários para que se possam atingir os melhores fins. Berlin se opõe às interpretações positivas da liberdade devido às perversões e abusos políticos a que dão margem. Rousseau, com sua teoria da vontade geral, por exemplo, nos leva ao absurdo de admitir a liberdade como uma forma de escravidão.

Berlin também se opõe às interpretações necessitaristas (deterministas, fatalistas) da história (Historical Inevitability, 1954) e sustenta uma concepção antideterminista do livre-arbítrio. Defensor de uma concepção política antiutópica, sustentada com exemplos históricos, Berlin afirma que os valores mais importantes para a humanidade necessariamente entram em conflito. Os esquemas políticos, teorias morais e religiões que negam esse pluralismo do valor (que negam que a "verdadeira liberdade" possa entrar em conflito com a "verdadeira igualdade", por exemplo) têm resultado em desastres quando aplicadas na prática. Trata-se, portanto, de um filósofo político de inegável importância para qualquer discussão sobre a liberdade e a política. As suas obras traduzidas para o português são as seguintes:

* Estudos Sobre a Humanidade: Uma Antologia de Ensaios (Companhia das Letras): Uma antologia de ensaios que ilustram as concepções políticas de Isaiah Berlin, incluindo seu ensaio mais importante "Dois conceitos de liberdade", em que apresenta sua defesa da interpretação negativa da liberdade.

* A Força das Idéias (Companhia das Letras): Esta obra reúne vários ensaios sobre temas como a finalidade da filosofia, o conceito de liberdade e os destinos do marxismo. Também estão presentes o último ensaio que Berlin escreveu, "Meu Caminho Intelectual" e o ensaio "Escravidão e Emancipação Judaicas", que apresenta as suas polêmicas opiniões sionistas.

* Limites da Utopia: Capítulos da História das Idéias (Companhia das Letras): Isaiah Berlin questiona a pressuposição que está na base de todas as utopias: a idéia de que seria possível atingir o Bem absoluto. Preocupado com o aspecto totalitário presente nos projetos de sociedades ideais definitivas, Berlin faz um estudo das formas de racionalismo e anti-racionalismo que têm norteado a cultura ocidental.

* Rousseau e Outros Cinco Inimigos da Liberdade (Gradiva): Este livro é uma transcrição de seis conferências radiofônicas de Isaiah Berlin transmitidas pela BBC no ano de 1952. São seis conferências, cada uma delas sobre um "inimigo da liberdade", mais especificamente: Helvécio, Rousseau, Fichte, Hegel, Saint-Simon e Maistre.

* Pensadores Russos (Companhia das Letras): Um exame da intelectualidade russa do século XIX e sua ruptura radical com as crenças e valores tradicionais. Entre os autores estudados por Berlin estão escritores como Tolstói e Turguêniev, e o anarquista Bakunin. Alguns desses ensaios são importantes para compreensão do liberalismo.

* O Sentido de Realidade: Estudos das Idéias e de sua História (Civilização Brasileira): Berlin sempre se opôs às concepções teóricas que tendem a tornar a vida mais fácil do que é, idealizando ou ignorando a realidade histórica, incluindo a história das idéias. Os textos desta obra têm em comum a preocupação de Berlin de compreender a história das idéias.

* Isaiah Berlin: Com Toda Liberdade (Editora Perspectiva): Esta obra resulta de uma série de diálogos de Isaiah Berlin com o filósofo Ramin Jahanbegloo. Berlin apresenta o núcleo de suas idéias, com a sua habitual prosa excepcionalmente clara e direta.

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Raposas e ouriços

Autor de Dois Conceitos de Liberdade defendeu a noção de pluralismo contra a ideia de um principio explicativo universal


Certo dia uma amiga contou-me por que motivo terminara uma relação amorosa de vários anos.

Aconteceu em sala de cinema: ela e o namorado assistiam ao filme As Pontes de Madison, o melodrama de Clint Eastwood sobre escolhas agônicas que definem uma vida.

E na cena sacrificial do filme, quando a personagem Francesca [interpretada pela atriz Meryl Streep] hesita entre ficar com a família ou partir com o amante, ela, com os olhos rasos de água, olhou para o namorado. O namorado estava perdidamente entediado.

Talvez exista algum exagero na reação dela. Eu disse isso: gostos cinéfilos não justificam medidas tão drásticas, exceto se a outra pessoa gosta, sei lá, do Star Trek.

Ela riu. E depois disse a maior verdade filosófica que existe: o problema não estava no filme; estava na evidência final de que nenhum dos dois habitava já o mesmo universo.

Tarefa decisiva

Seria possível escrever vários tratados sobre o assunto. Felizmente, para nós, alguém já se encarregou da tarefa.

O nome é Isaiah Berlin, nasceu cem anos atrás, em Riga, atual capital da Letônia. Acabaria por morrer em 1997, na Inglaterra, país que o acolheu ainda na infância.

Os obituários foram generosos e aclamaram sir Isaiah como um dos mais importantes intelectuais do século 20.

Difícil discordar. Mas mais difícil será resumir, ou tentar resumir, essa importância.

Os textos elegíacos falaram de Berlin como um eminente professor de história das ideias em Oxford; como um especialista na intelligentsia russa do século 19; como um defensor clássico da liberdade; e todos lembraram o seu papel durante a Guerra Fria, condenando o totalitarismo soviético quando muitos outros preferiam desviar o olhar.

Mas nenhum dos textos foi tão cristalino como a minha amiga desencantada: Isaiah Berlin conseguiu ver as sociedades humanas como aglomerações de indivíduos que não habitam necessariamente o mesmo universo.

Somos distintos. E, precisamente por isso, desejamos valores distintos. Um estudo da história das ideias não é apenas uma tarefa intelectualmente importante.

Para Berlin, é uma tarefa conceitualmente decisiva. Dos gregos a Maquiavel; dos "philosophes" do século 18 aos românticos do século seguinte, a história dos homens é a história da diversidade humana.

Mas Berlin não se limitou a vislumbrar essa diversidade. Berlin não se limitou a cartografar a tensão recorrente entre o múltiplo e o uno: entre aqueles que defendem uma visão pluralista da existência humana (as "raposas", para usar a terminologia que Berlin pediu de empréstimo ao poeta Arquíloco) e aqueles que procuraram, nos seus esforços intelectuais, encontrar um único princípio explicativo, capaz de reduzir a multiplicidade a uma única hierarquia de valores (os "ouriços").

Berlin foi ainda mais longe ao declarar que não são apenas os homens que desejam valores distintos. Os próprios valores, disse Berlin, são também radicalmente distintos.

A importância da tese está no "radicalmente": quando afirmamos que os valores são radicalmente distintos, não pretendemos apenas dizer que eles são diferentes uns dos outros, o que seria um truísmo digno de La Palice.

Queremos afirmar que os valores são incompatíveis uns com os outros: como no filme de Clint Eastwood, os valores implicam escolhas trágicas e agônicas; escolher certos valores implica abandonar outros.

Podemos amar a liberdade. Podemos amar a igualdade. Mas não podemos ter ambas na sua expressão máxima, porque ambas se neutralizam na sua expressão máxima. "A liberdade total dos lobos seria o fim dos cordeiros", escreveu.

Mas Berlin escreveu mais: os valores não são apenas distintos e por vezes incompatíveis. Eles podem ser incomensuráveis. Eles podem ser tão radicalmente distintos que não existe uma forma de os avaliar ou medir "a priori".

Contra as utopias

A filosofia contemporânea ainda hoje discute as verdadeiras implicações do pluralismo de Isaiah Berlin.

Até que ponto esse pluralismo é distinto de uma forma de relativismo moral e cultural?

Até que ponto esse pluralismo permite sustentar uma posição liberal, ou seja, uma posição que concede à liberdade do indivíduo prioridade lexical sobre todos os outros valores? E até que ponto é racionalmente impossível hierarquizar valores incomensuráveis?

Não vou perder o tempo dos digníssimos leitores com esse debate esotérico que, confissão pessoal, ocupou os últimos sete anos da minha vida, em Lisboa e em Oxford.

Prefiro dizer simplesmente que o pluralismo de Berlin, a defesa de que os seres humanos são distintos e também por isso desejam valores radicalmente distintos, é o mais poderoso argumento contra o mundo fechado das utopias.

O pensamento utópico acredita e professa que, no passado ou no futuro, existiu ou existirá um estado onde as necessidades humanas se encontram resolvidas.

Um mundo perfeito onde os seres humanos desejam necessariamente os mesmos fins de vida e onde os valores caros à existência se encontram harmoniosamente reconciliados na sua expressão máxima.

Infelizmente, o pensamento utópico falsifica a natureza dos homens e a própria natureza dos valores.

O século 20, com seu longo cortejo de horrores e atrocidades, não foi apenas um século de crimes vulgares. Foi um século que cometeu esses crimes porque pretendeu iludir a natureza pluralista dos homens e dos valores sob a capa da mais feroz uniformidade.

As utopias estão condenadas ao fracasso, não porque os homens são fracos, ou ignorantes, ou insuficientemente sonhadores. Mas porque a própria ideia de utopia como um estado perfeito onde os homens desejam os mesmos valores e onde os valores podem ser harmonizados na sua expressão máxima assenta na mais pura falsidade existencial e filosófica.

Os homens não são assim. Os valores também não.

Cem anos depois do seu nascimento, o legado de Isaiah Berlin permanece válido para o futuro: as nossas sociedades só sobrevivem quando somos capazes de estabelecer equilíbrios entre valores concorrentes, sem nunca permitir que o poder político leve ao extremo esses valores.

No extremo, eles apenas se destroem; eles apenas destroem as sociedades que marcham na cegueira rumo à solução final.

João Pereira Coutinho - Mais!

[...] Não é difícil reconstruir esse processo. Existem, num dado momento, uma escolha objetal, uma ligação da libido a uma pessoa particular; então, devido a uma real desconsideração ou desapontamento proveniente da pessoa amada, a relação objetal foi destroçada. O resultado não foi o normal - uma retirada da libido desse objeto e um deslocamento da mesma para um novo -, mas algo diferente, para cuja ocorrência várias condições parecem ser necessárias. A catexia objetal provou ter pouco poder de resistência e foi liquidada. Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o ego. Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado. Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação.

Uma ou duas coisas podem ser diretamente inferidas no tocante às precondições e aos efeitos de um processo como este. Por um lado, uma forte fixação no objeto amado deve ter estado presente; por outro, em contradição a isso, a catexia objetal deve ter tido pouco poder de resistência. Conforme Otto Rank observou com propriedade, essa contradição parece implicar que a escolha objetal é efetuada numa base narcisista, de modo que a catexia objetal, ao se defrontar com obstáculos, pode retroceder para o narcisismo. A identificação narcisista com o objeto se torna, então, um substituto da catexia erótica, e, em conseqüência, apesar do conflito com a pessoa amada, não é preciso renunciar à relação amorosa. Essa substituição da identificação pelo amor objetal constitui importante mecanismo nas afecções narcisistas; Karl Laudauer (1914), recentemente, teve ocasião de indicá-lo no processo de recuperação num caso de esquizofrenia. Ele representa, naturalmente, uma regressão de um tipo de escolha objetal para o narcisismo original. Mostramos em outro ponto que a identificação é uma etapa preliminar da escolha objetal, que é a primeira forma - e uma forma expressa de maneira ambivalente - pela qual o ego escolhe um objeto. O ego deseja incorporar a si esse objeto, e, em conformidade com a fase oral ou canibalista do desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja fazer isso devorando-o. Abraham, sem dúvida, tem razão em atribuir a essa conexão a recusa de alimento encontrada em formas graves de melancolia.

S. Freud - 1917 - Luto e Melancolia

Saturday, May 30, 2009

Franz Kafka - 28 Aforismos IV

22

Tu és a tarefa. Nenhum discípulo nos arredores.

23

Flui em ti ilimitada coragem advinda dos verdadeiros adversários.

24
Compreender a ventura de que o chão, sobre o qual estás parado, não pode
ser maior do que os dois pés que o cobrem.

25

Como se pode estar satisfeito com o mundo, a não ser quando nele se exile?

Wednesday, May 27, 2009

Grande e pequeno

Você dirá: grande, pequeno, qual a diferença? O homem não se mede por fita métrica. O fundamental é a cabeça, não os pés. No entanto, se uma pessoa adquire uma idéia ridícula, nunca se sabe até onde persistirá. Permitam-me contar-lhes uma história. Havia um casal em nossa cidade. Ele chamava-se Pequeno Motie, e ela, Motiekhe. Jamais alguém chamou-a pelo seu nome verdadeiro. Quanto a ele, não era apenas pequeno; dificilmente ultrapassaria um pigmeu. Os ociosos trocistas — e existe sempre uma porção deles por aí — divertiam-se à custa do pobre homem. O assistente de professor, diziam, tomou-o pela mão e conduziu-o à presença de Reb Berish, que ensinava crianças mais novas no cheder. Na Simkhas Torah*, os homens embriagaram-se e convocaram-no, com os meninos pequenos, para a leitura da Tora. Alguém deu-lhe uma bandeira — com uma maçã e uma vela no mastro. Quando uma mulher deu à luz, os gaiatos foram dizer-lhe que precisavam de um menino para a oração junto ao berço, a fim de espantar os maus espíritos. Se ao menos tivesse uma barba decente! Mas não, ela era apenas um tufo — alguns pêlos aqui e ali. Ele não tinha filhos e, para dizer a verdade, parecia-se mesmo com um escolar. Sua esposa, Motiekhe, tampouco era uma beleza, mas impunha-se pelo corpo. Bem, seja como for, os dois viviam juntos, e Motie veio a enriquecer. Comerciava com cereais e possuía um armazém. O proprietário de terras local simpatizou com ele, embora se divertisse, de vez em quando, com o tamanho do homem. Pensando bem, era natural. De que adianta ser grande se o buraco no bolso é maior ainda?

O pior de tudo, porém, foi que Motiekhe (Deus a perdoe!) estava sempre a arreliá-lo. Tampinha faça isto, Tampinha faça aquilo. Sempre com alguma coisa para ele fazer em lugares que não podia alcançar. "Enfie um prego na parede, ali em cima!" "Pegue a caçarola de cobre na prateleira!" Ridicularizava-o em frente de estranhos, também, e as histórias espalhavam-se depois pela cidade. Um dia chegou a dizer (vocês admitem tal declaração de uma honesta esposa judia?) que ele precisava de um banquinho para subir à cama do casal. Não imagina a tagarelice que isso causou! Se alguém aparecia à procura dele, quando estava ausente, ela dizia: "Dê uma olhada embaixo da mesa".

Havia um professor, de língua maldosa, que disse como chegara, certa ocasião, a perder a férula. Olhou em volta — e lá estava Motie, usando a férula como bengala. Naqueles anos as pessoas dispunham de tempo, e nada melhor do que afiar as línguas. O próprio Motie recebia os motejos com um sorriso, como diz o ditado, mas eles feriam. Antes de tudo, que há de tão engraçado assim em ser pequeno? Um homem de pernas compridas valerá mais aos olhos de Deus? Tudo isso, vejam bem, acontecia somente entre a gentalha. Pessoas piedosas evitavam comentários aleivosos.

Motie não era sábio; simplesmente um homem comum. Gostava de ouvir as parábolas de pregadores visitantes na sinagoga. Nas manhãs de sábado cantava salmos com o resto da congregação. Também apreciava um ocasional copo de uísque. Às vezes ia à nossa casa. Meu pai (que ele repouse em paz!) comprava aveia em seu armazém. Ouvia-se então Motie arranhar a aldrava qual gato pedindo para entrar. Nós, moças, éramos pequenas naquele tempo, e o cumprimentávamos com efusões de riso. Papai alcançava-lhe uma cadeira e dirigia-se a ele como Reb Motie, mas nossas cadeiras eram altas e tínhamos dificuldade em subir. Quando o chá era servido, ele impacientava-se e esticava o corpo, incapaz de atingir a beira do copo com os lábios. Línguas cruéis diziam que ele punha calços nos sapatos, e que uma vez caíra dentro de um balde de madeira, desses que se usam à guisa de chuveiro, nas casas de banho. À parte isso tudo, tratava-se de um competente negociante. E Motiekhe tinha em sua companhia vida fácil e confortável. A casa era bonita e as prateleiras do guarda-comida estavam sempre repletas do que havia de melhor.

Agora ouçam bem. Um dia, marido e mulher tiveram uma briga. Uma palavra puxou outra, e dentro em pouco a briga tornou-se feia. Acontece em toda família. Mas, para felicidade, um vizinho estava presente. Motiekhe (que ela não se vingue de mim!) tinha a boca bem azeitada, e quando furiosa esquecia-se até de Deus. Gritou para o marido: "Seu anão! Coisinha nojenta! Que tipo de homem é você? Igual a uma mosca. Tenho vergonha de ser vista, a caminho da sinagoga, ao lado de tamanha insignificância!" E por aí foi, pondo mais lenha na fogueira, até que o sangue fugiu do rosto dele. Ele nada disse, o que a enfureceu ainda mais. Ela gritou: "Que posso fazer com um anãozinho desses? Comprar um banquinho e pô-lo no berço. Se minha mãe me amasse de verdade, teria encontrado um homem para mim, e não uma criança recém-nascida!"

Estava frenética, não sabia mais o que dizia. Ele, que tinha cabelo ruivo e rosto corado, tornara-se branco como giz, e retrucou: "Seu segundo marido será bastante grande para me compensar". E ao dizer isso, entregou os pontos e chorou como uma criancinha. Jamais alguém o vira chorar, sequer no Yom Kippur*. A mulher perdeu imediatamente a fala. Não sei o que aconteceu depois, eu não estava lá. Devem ter ajeitado as coisas. Mas, como diz o provérbio, as feridas cicatrizam e as palavras permanecem.

Antes de transcorrer um mês, os habitantes da cidade tinham novidade. Motie trouxera para casa um ajudante de Lublin. Que pretendia com um ajudante? Até então, dirigira seus negócios sozinho, e bastante bem. O recém-chegado percorreu a rua e todos viraram-se para observá-lo: um gigante, preto como azeviche, com olhos negros e barba negra. Os outros comerciantes perguntaram a Motie: "Para que precisa de um ajudante?" E ele respondeu: "Os negócios prosperam, graças a Deus! Já não consigo suportar sozinho o peso da responsabilidade". Bem, pensaram, ele deve saber o que faz. Mas, numa cidade pequena, todo mundo vê o que o vizinho pôs na caçarola. O homem de Lublin — seu nome era Mendl — não parecia comerciante. Perambulava pelo pátio, a olhar estupidamente e a rolar os olhos negros para cá e para lá. Nos dias de feira punha-se, qual estaca, entre as carroças, sobressaindo entre os camponeses e mascando palha.

Quando apareceu na casa de orações, perguntaram-lhe: "Que fazia em Lublin?" Respondeu: "Sou lenhador". "Tem mulher?" Não", respondeu, era viúvo. Os ociosos da Rua do Tijolo tinham algo acerca de que tagarelar. E, coisa estranha, o homem era tão grande quanto Motie era pequeno. Quando conversavam, o recém-chegado tinha de pender a cabeça até a cintura, e Motie erguer-se na ponta dos pés. Quando desciam a rua juntos, todo mundo corria à janela para vê-los. O sujeito grandalhão disparava à frente, e Motie era obrigado a correr atrás, a trote. Quando levantava o braço, o homem poderia tocar o telhado. Era como aquela história da Bíblia, quando os espiões israelitas pareciam gafanhotos, e os outros, gigantes. O ajudante vivia na casa de Motie e Motiekhe servia-lhe as refeições. As mulheres perguntavam-lhe: "Por que motivo Motie trouxe esse Golias para casa?" E ela respondia: "É o que eu gostaria de saber. Se ao menos fosse bom comerciante... Mas não distingue trigo de centeio. Come como um cavalo e ronca que nem um boi. E, além de tudo, é um imbecil. Economiza palavras como se fossem moedas de ouro".

Motiekhe tinha uma irmã a quem abria o coração magoado. Motie precisava de um ajudante, disse ela, como precisaria abrir um buraco na cabeça. Tomou-o por pura maldade. O homem não levantava uma palha. Acabaria por arruiná-los. Aquelas foram suas palavras. Em nossa cidade não havia segredos. Vizinhos escutavam nas janelas alheias e punham o ouvido no buraco da fechadura. "Por maldade?", perguntou a irmã, e Motiekhe rompeu a chorar: "Porque eu o chamei de bebê prematuro".

A história correu logo a cidade, mas as pessoas acharam difícil acreditar. Que espécie de maldade era aquela? A quem ele pretendia ferir com semelhante sujeira? O dinheiro era dele, não da mulher. Mas quando um homem põe uma idéia falsa na cabeça, Deus tenha piedade dele! Essa é a verdade, tal como está escrito... não me lembro mais onde.

Duas semanas passaram-se antes de Motiekhe procurar em lágrimas o rabi.

"Rabi", disse ela, "meu marido perdeu o juízo. Pôs um preguiçoso glutão dentro de casa. E como se isso não bastasse, dá todo o dinheiro a ele." Acrescentou que o estranho controlava a bolsa, e quando ela, Motiekhe, precisava de alguma coisa, tinha de pedir-lhe. Ele era o caixa. "Santo rabi", gritou a mulher. "Motie fez isso para me pirraçar, porque eu o chamei de fantoche."
O rabi não conseguia perceber o que ela pretendia. Era um santo homem, porém inútil em questões mundanas. Disse apenas: "Não posso interferir nos negócios de seu marido". "Mas, rabi", ela exclamou, "será a nossa ruína!". O rabi mandou chamar Motie, mas este insistiu: "Já carreguei muitas sacas de cereal e agora posso dar-me ao luxo de ter um ajudante". No fim, o rabi despediu a ambos com esta ordem: "Que haja paz!" Que mais podia fazer?

Então, de súbito, o Pequeno Motie caiu doente. Ninguém sabia o que o atormentava, porém foi perdendo a cor. Pequeno como era, encolheu ainda mais. Foi à sinagoga rezar e deixou-se pender num canto qual sombra. No dia de feira não foi visto entre as carroças. A mulher perguntou: "Que tem você, meu marido?" E ele respondeu: "Nada, absolutamente nada". Mandou chamar o médico, mas de que adiantam médicos? Receitou algumas ervas, que em nada ajudaram. No meio do dia, Motie foi para a cama e estirou-se. Motiekhe indagou: "Onde é que dói?" E ele respondeu: "Não sinto dor". "Nesse caso, por que está deitado aí como um enfermo?" E ele disse: "Não tenho mais forças". "Como pode ter forças se come como um passarinho?" Mas ele se limitou a observar: "Não tenho apetite".

Que mais dizer? Todo mundo via que Motie estava na pior. Apagava-se qual vela. Motiekhe queria que ele fosse a Lublin consultar médicos, mas em vão. Ela começou a lamentar-se e gemer: "Que vai ser de mim? Com quem pretende deixar-me?" E ele respondeu: "Você desposará o grandalhão". "Patife! Assassino!", gritou ela. "Você me é muito mais caro do que qualquer gigante. Por que então me atormenta? E se eu me arrepender agora? Falei aquilo por falar. Você é meu marido, meu bebê. Você é tudo que tenho no mundo. Sem você minha vida não vale um grão de poeira." Porém tudo quanto ele disse foi: "Sou um ramo seco. Com ele você terá filhos".

Se eu fosse contar-lhes tudo o que aconteceu, teria de ficar aqui um dia e uma noite. Os cidadãos mais influentes da cidade foram falar-lhe. O rabi visitou o doente. "Que bobagem é essa que meteu na cabeça? O mundo a Deus pertence, não aos homens." Mas Motie fingia não compreender. Quando a esposa viu que as coisas iam de mal a pior, franziu o sobrolho e ordenou ao estranho que partisse. Mas Motie disse: "Não, ele fica. Enquanto respirar, sou o senhor aqui".

Todavia, o homem foi dormir na hospedaria. Mas de manhã estava de volta e encarregou-se dos negócios. Tudo passara agora às suas mãos: o dinheiro, as chaves, a derradeira migalha. Motie jamais tomara nota das despesas, mas o ajudante registrava tudo num livro razão. Além disso, era miserável. Motiekhe pedia dinheiro para o sustento da casa e ele exigia contas de cada copeque. Pesava e media, cobrava até as migalhas. Ela rebelou-se: "Você é um forasteiro! Isso não é de sua conta! Vá para os infernos, seu ladrão, seu assassino, seu salteador de estradas!" A resposta dele era: "Se seu marido me expulsar, irei". Porém, na maioria das vezes, nada respondia, limitando-se a grunhir como urso.

Enquanto o verão permaneceu quente, o Pequeno Motie ainda conseguiu levantar-se alguma vezes. Chegou até a jejuar no Yom Kippur. Mas logo depois do Succoth* começou a definhar rapidamente. Meteu-se na cama e não mais se ergueu. A esposa trouxe o médico de Zamosc, mas o médico nada pôde fazer. Ela consultou feiticeiras, mediu túmulos com um pavio e fez velas para oferendas na sinagoga, enviou mensageiros a rabis santos, mas Motie enfraquecia dia após dia. Deitado de costas, fitava o teto. Era preciso ajudá-lo a vestir o xale de orações e pôr os amuletos pela manhã; já não tinha forças para arranjar-se sozinho. Comia quase nada: uma colherada de aveia de vez em quando. Deixara de benzer o vinho no Sabbath. O altão chegava da sinagoga, abençoava os anjos e recitava a bênção.

Ao ver para onde as coisas se encaminhavam, Motiekhe convocou três judeus e pediu a Bíblia. Lavou as mãos, pegou o Livro Santificado e exclamou: "Todos são testemunhas. Juro pelo Livro Santo e por Deus Todo-Poderoso que não me casarei com este homem, mesmo que fique viúva até os noventa!" Dito o quê, cuspiu no grandalhão — bem no olho. Ele enxugou o rosto com um lenço e saiu. Motie observou: "Não tem importância. Você será absolvida de falso juramento..."

Uma semana depois, Motie agonizava. Não demorou muito e ele cessava de existir. Foi estendido no chão, com velas à cabeceira e os pés apontando a porta. Motiekhe beliscou-lhe as bochechas e gritou: "Assassino! Você nos tirou a vida! Não tem direito a um funeral sagrado! Devia ser enterrado fora da cerca do cemitério!" Ela não estava em seu juízo perfeito.

O grandalhão saiu de casa e permaneceu invisível. A agência funerária pediu dinheiro para o sepultamento, mas Motiekhe não tinha um copeque. Teve de empenhar as próprias jóias. Os que prepararam Motie para o funeral disseram depois que ele estava tão leve como um passarinho. Vi-os transportarem o corpo. Era como se uma criança estivesse embaixo da colcha. Em cima dela, a caneca que ele usara para medir cereais. Pedira que a pusessem ali, como lembrança de que sempre tomara medidas exatas. Cavaram o túmulo e sepultaram-no. De repente, o gigante apareceu, dando a impressão de que emergia da terra. Começou a dizer o Kaddish, mas a viúva guinchou: "Seu Anjo da Morte, foi você quem o tirou deste mundo!" E atirou-se a ele, com os punhos. Foi difícil contê-la.

O dia foi curto. Logo tombou a noite, e Motiekhe sentou-se num banquinho, para iniciar os sete dias de luto. Enquanto isso, o altão entrava no quintal e saía dele, transportando coisas, fazendo isso e aquilo. Mandou um menino entregar dinheiro à viúva para suas necessidades. Assim se repetiu, dia após dia. Finalmente, a comunidade resolveu interferir e chamou o homem à presença do rabi. "Que história é essa?", exigiram. "Por que se agarra àquela casa?" A princípio, permaneceu silencioso, como se julgasse que as palavras não lhe diziam respeito. Em seguida, tirou um papel do bolso e mostrou-o: Motie fizera-o guardião de todos os seus bens terrenos. Pará a esposa, deixara somente os pertences caseiros. Os habitantes da cidade leram o testamento e quedaram-se atônitos. "Como pôde ele fazer isso?", perguntou o rabi. Bem, fora bastante simples: Motie viajara a Lublin, procurara o maior homem que pudesse encontrar e tornara-o seu herdeiro e testamenteiro. Antes disso, o homem não passava de um capataz de um grupo de madeireiros.

O rabi deu suas instruções: "A viúva fez promessa e jurou, portanto você não deve entrar na casa. Devolva-lhe a propriedade, este caso é absurdo". Mas o gigante ponderou: "Não se alteram disposições mortuárias". Foram estas suas palavras. Os líderes da comunidade insultaram-no, ameaçaram-no com as três letras de excomunhão e com uma surra. Mas ele não se assustava facilmente. Era alto como um carvalho, e quando falava sua voz parecia sair, abafada, de um barril.

Nesse ínterim, Motiekhe mantinha o voto. Sempre que um visitante aparecia com suas condolências, ela renovava o juramento... com velas, livros de orações, qualquer coisa de que lançasse mão. No Sabbath, um grupo de homens chegou para orar. Ela correu aos Sagrados Pergaminhos e jurou também por eles. Não faria a vontade de Motie, gritou. Ele não teria sua vingança.

E soluçou com tanta amargura que todos choraram com ela.

Bem, ela acabou desposando-o. Não me lembro quanto tempo resistiu, se seis meses ou nove... De qualquer maneira, durou menos de um ano. O grandalhão tinha tudo e ela nada possuía. Pôs o orgulho de banda e procurou o rabi. "Santo rabi, que posso fazer? Motie assim quis, Ele assombra meus sonhos. Ele me belisca. Grita em meu ouvido que haverá de me estrangular." Arregaçou a manga, ali mesmo na sala do rabi, e mostrou-lhe um braço coberto de marcas pretas e azuis. O rabi não queria tomar sozinho a decisão e escreveu a Lublin. Três rabis chegaram e debruçaram-se sobre o Talmude durante três dias. Por fim, concederam-lhe — como é mesmo que se chama? — a licença.

O casamento foi uma festa tranqüila, mas a multidão fez bastante barulho para compensar. Imaginem só todas as zombadas e apupos! Antes do casamento, Motiekhe estava achatada qual tábua e parecia verde e amarela. Mas logo após as bodas, começou a florescer como uma rosa. Já não era jovem, e no entanto engravidou. A cidade ardia de curiosidade. Tal como chamara o primeiro marido de "tampinha", passou a chamar o segundo de "o alto". Era "o alto para cá", "o alto para lá". Vivia a atirar-lhe olhares babosos e condoia-se de suas asneiras. Ao cabo de nove meses, deu à luz um menino. A criança era tão grande que ela sofreu três dias as dores do parto. Pensaram que fosse morrer, mas ela resistiu. Metade da cidade foi ver a circuncisão. Alguns apresentaram cumprimentos festivos, outros riram. Foi um espetáculo.

A princípio, tudo parecia bem. Antes de mais nada, não faltava motivo: um filho em idade madura! Mas, se Motie tivera sorte em todos os empreendimentos, Mendl era um desastrado. O senhorio antipatizou com ele. Os outros comerciantes evitaram-no. O armazém foi invadido por ratos grandes como gatos, que devoraram os grãos. Todo mundo dizia ser castigo do Alto, e não demorou muito para Mendl arruinar-se como comerciante. Voltou a ser capataz nos bosques. Agora, ouçam isto: ele sobe a uma árvore e bate de leve na casca com o malho. E a árvore tomba bem em cima dele. O vento não soprava. O sol brilhava firme. Ele não teve tempo de soltar um grito.

Motiekhe durou mais, porém parecia fora de seu juízo. Tudo o que fazia era murmurar infindavelmente: baixo, alto, baixo, alto... Todos os dias ia ao cemitério lamentar-se sobre as sepulturas, corria de uma para outra. Quando morreu, eu já deixara a cidade. Fui morar com os pais de meu marido.

Como eu estava dizendo, o ódio... Ninguém deve caçoar do próximo. Pequeno é pequeno, grande é grande. Este mundo não nos pertence. Não o fizemos. Mas um homem arquitetar uma coisa tão desnaturada! Já ouviram coisa igual? Olhem, o mal deve ter-se apoderado dele. Estremeço todas as vezes que penso nisso.

* Festa comemorativa do dia em que o povo de Israel recebeu a Tora. (N. do T.)

* Dia do Perdão, feriado religioso. (N. do T.)

* Literalmente: "barraca", "choça". Data religiosa celebrada durante a colheita do outono e relativa ao refúgio encontrado pelos judeus quando erravam pelo deserto. (N. do T.)

Título do original: Short Friday - Copyright © by Isaac Bashevis Singer

Tradução: Hélio Pólvora (Breve Sexta-Feira)

Não confio em ninguém

A partir do dia em que começaram a falar que ele se tornaria o rabi de Yavrov, o Rabi Jonathan Danziger, de Yampol, não teve mais um minuto de descanso. Seus inimigos de Yampol invejavam-lhe a partida para uma cidade maior, embora não desejassem sua permanência lá, já que um outro lhe tomara o lugar. Os anciãos queriam que o rabi deixasse a cidade sem, também, poder ir para Yavrov. Tentaram arruinar suas oportunidades de partir, com rumores sórdidos. Pretendiam tratá-lo como haviam tratado o rabi anterior: teria de abandonar a cidade vilipendiado, em carroça puxada por bois. Mas por quê? Que mal ele fizera? Não ofendera a honra de ninguém; portara-se, invariavelmente, como amigo de todos. No entanto, todos guardavam surdos rancores contra ele. Um dizia que o rabi dera interpretação errada ao Talmude; outro tinha um cunhado que desejava o lugar do rabi; um terceiro julgava que o Rabi Jonathan devia seguir um líder hassídico. Os açougueiros queixavam-se de que o rabi declarava muitas vacas não-kosher; o abatedor ritual, que o rabi examinava-lhe a faca duas vezes por semana. A atendente da casa de banhos queixara-se porque, uma ocasião, na véspera de um dia santo, o rabi considerara impuro o banho ritual, e assim as mulheres não puderam copular com os maridos.

Na Rua da Ponte, a ralé insistia que o rabi desperdiçava muito tempo com livros, que não prestava atenção às pessoas comuns. Nas tavernas, rufiões divertiam-se, aos gritos, imitando a maneira de o rabi recitar "Escutai, ó Israel", e sua forma de cuspir quando mencionava ídolos. Os cultos provavam que o rabi cometia erros em gramática hebraica. A mulher do rabi era escarnecida pelas senhoras porque falava com sotaque da Grande Polônia e porque bebia chicória e café sem açúcar. Zombavam de tudo. Não admitiam que a mulher do rabi assasse pão toda quinta-feira, ao invés de uma vez de três em três semanas. Olhavam com desconfiança a filha do rabi, a viúva Yentl, que, segundo comentavam, passava tempo demais tricotando e bordando. Antes de cada Páscoa formava-se fila para os matzohs, e os inimigos do rabi corriam à sua casa para quebrar as janelas. Depois do Succoth, quando muitas crianças caíram doentes, as matronas piedosas proclamaram que o rabi não limpara a cidade de pecados, que permitira às moças saírem com o cabelo à mostra, e que o Anjo da Morte punira, por causa disso, as inocentes crianças com sua espada. De uma ou de outra forma, cada grupo carpia queixas e encontrava faltas. E com tudo isso, o rabi recebia o baixíssimo salário de cinco gulden por semana, vivendo quase à míngua.

Como se não lhe bastassem todos os inimigos, os amigos comportavam-se com hostilidade. Comunicavam-lhe acusações mínimas. O rabi advertiu-os de que aquilo constituía pecado, citando o Talmude, segundo o qual o boato atinge três partes: o boateiro, a vítima do boato e o que ouve o boato. O boato alimenta a raiva, o ódio, dessacraliza o Santo Nome. O rabi suplicava aos fiéis que não o atormentassem com calúnias; no entanto, qualquer palavra de seus inimigos lhe era transmitida. Se o rabi exprimia sua desaprovação ao mensageiro da calúnia, então essa pessoa passava logo ao campo hostil. O rabi já não conseguia rezar e estudar em paz. Rogava a Deus: "Até quando suportarei esta geena? Até os condenados não sofrem mais de doze meses..." Agora que o Rabi Jonathan estava prestes a assumir o posto em Yavrov, percebia que a situação tendia a repetir-se. Já notava oposição em Yavrov. Também ali, a exemplo de Yampol, havia um ricaço cujo cunhado cobiçava o lugar do rabi. Além disso, embora o rabi de Yavrov ganhasse a vida vendendo velas e fermento, alguns mercadores haviam levado a mercadoria proibida para suas lojas, ainda que sob ameaça de excomunhão.

O rabi ainda não completara os cinqüenta, mas já estava grisalho. De alto porte, tinha os ombros caídos. A barba outrora cor de palha tornara-se branca e esparsa como a de um velho. De sob as sobrancelhas espessas e dos olhos pendiam bolsas musgosas, de um azul acastanhado. Sofria de todos os tipos de indisposição. Tossia, fosse inverno ou verão. O corpo era só ossos; estava tão magro que, ao andar, o vento inflava a cauda do casaco, quase erguendo-o no ar. A esposa queixava-se de que ele não comia bem, não bebia bem, não dormia o bastante. Acossado por pesadelos, acordava com estremeções. Sonhava com perseguições e pogroms, e por isso tinha de jejuar com freqüência. O rabi julgava-se punido por seus pecados. Às vezes dizia palavras duras contra seus torturadores; questionava os caminhos de Deus e chegava a duvidar de Sua misericórdia. Punha o xale de orações e os amuletos e, de súbito, um pensamento cintilava na mente: e se não houver Criador? Após semelhante blasfêmia, o rabi condenava-se a não provar comida o dia inteiro, até as estrelas apagarem-se no céu. "Ai de mim, para onde vou?", suspirava o rabi. "Sou um homem perdido."

Na cozinha sentavam-se mãe e filha e cada uma defendia suas intenções. Ziporah, a mulher do rabi, procedia de família rica. Quando moça fora julgada bela, mas os anos de pobreza arruinaram-lhe a aparência. Em seu gorro antiquado, que lhe caía mal, e vestido do tempo do Rei Sobieski, parecia vergada e macilenta; o rosto enrugado adquirira a ferrugem de uma pêra que não amadurece. As mãos eram grandes e cheias de veias, como as de um homem. Mas Ziporah encontrava um consolo em toda a sua miséria: o trabalho. Lavava, cortava lenha, carregava água do poço, encerava o chão. Em Yampol diziam que, de tanto esfregar os pratos, ela fazia buracos na louça. Esfregava as toalhas de mesa e os lençóis com tal esmero que não ficava um fio do tecido original. Ela própria consertava as sandálias do rabi. Das seis crianças que dera à luz, somente Yentl sobrevivera.

Yentl saiu ao pai: tinha o cabelo amarelado, era alta, de pele lisa, sardenta e busto chato. Yentl não era menos diligente que a mãe, mas a mãe não lhe permitia tocar em trabalho caseiro. O marido de Yentl, Ozer, um estudante de yeshiva, morrera de fraqueza causada por doença. Yentl agora costurava, tricotava, lia livros que pedia de empréstimo a mascates. A princípio havia recebido muitas ofertas de casamento, porém conseguiu desencorajar os contratantes. Nunca deixou de prantear o marido. Assim que alguém começava a arranjar-lhe compromisso, Yentl começava a sentir eólicas. Os habitantes de Yampol espalharam o rumor segundo o qual ela fizera a Ozer juramento à beira do seu leito de morte de jamais voltar a casar-se. Não tinha uma só amiga em Yampol. No verão pegava um cesto, uma corda e penetrava nos bosques para apanhar bagas e cogumelos. Semelhante conduta era considerada das mais impróprias a uma filha de rabi.

A mudança para Yavrov parecia boa perspectiva, mas a mulher do rabi e Yentl preocuparam-se muito mais do que se alegraram. Nem mãe nem filha tinham uma peça decente de roupa ou uma jóia. Durante os anos em Yampol ficaram tão isoladas que a mulher do rabi queixou-se ao marido de não saber mais dirigir-se às pessoas. Orava em casa, evitava escoltar noivas à sinagoga ou participar de cerimônias de circuncisão. Yavrov, no entanto, era diferente. Ali, as senhoras enfeitavam-se com vestidos da moda, peles caras, perucas de seda, sapatos de salto alto e bicos pontudos. As moças casadas iam à sinagoga com chapéus de plumas. Todas tinham uma corrente de ouro ou um broche. Como chegar a um lugar desses envergando farrapos, com móveis quebrados e linho esfiapado? Yentl não quis mudar-se. Que faria em Yavrov? Não era moça nem mulher casada; em Yampol tinha ao menos um pedaço de terra e um túmulo.

O Rabi Jonathan ouviu e sacudiu a cabeça. Recebera um contrato de Yavrov, mas nenhum adiantamento ainda. Seria assim mesmo ou julgavam-no ingênuo? Teve vergonha de pedir dinheiro. Era contra sua natureza usar a Tora para obter lucro. O rabi andava para cá e para lá em seu gabinete. "Pai do Céu, salvai-me. Entrei em águas profundas, estou prestes a submergir!"

2

Era hábito do rabi rezar na sinagoga e não na casa de orações, porque entre os judeus pobres tinha menos inimigos. Orava ao romper do dia, assim que se formava o primeiro quorum. O Pentecostes acabara de passar. Às três e meia a estrela matutina aparecia. Às quatro o sol já brilhava. O rabi gostava da quietude da manhã, quando a maior parte dos habitantes ainda dormia atrás dos postigos cerrados. Jamais se cansava de observar o sol surgir: púrpura, dourado, lavado pelas águas do Grande Mar. O sol nascente sempre lhe trazia o mesmo pensamento: ao contrário do sol, o filho do homem jamais renasce; por isso está condenado à morte. O homem tem lembranças, culpas, ressentimentos. Eles se amontoam como pó, impedindo-o de receber a luz e a vida que desce do firmamento. Mas a criação de Deus, esta se renova constantemente. Se o céu se torna nevoento, volta logo a clarear. O sol se põe, mas renasce todas as manhãs. Não há marca do passado na lua ou nas estrelas. A incessante recriação da natureza é óbvia, sobretudo na aurora. O orvalho cai, os pássaros trinam, o rio reflete luminosidade, a grama está úmida e fresca. Feliz o homem capaz de se renovar sempre ao lado da criação, "quando todas as estrelas da manhã cantam juntas".

Aquela manhã era igual a outras. O rabi levantou-se cedo a fim de ser o primeiro a chegar à sinagoga. Bateu à porta de carvalho para advertir os espíritos que ali oravam de sua chegada. Em seguida, entrou na antecâmara escura. A sinagoga tinha centenas de anos, mas permanecia quase como no dia em que fora erguida. Tudo exsudava eternidade: as paredes cinzentas, o teto alto, os candelabros de latão, a pia de cobre, a estante com os quatro pilares, a Arca esculpida com as tábuas dos mandamentos e os dois leões dourados. Raios de sol penetravam pelas janelas ovaladas, de vidros manchados. Até os fantasmas que ali oravam geralmente saíam ao cantar do galo, abrindo lugar para os vivos, porém deixando atrás de si uma tranqüilidade e um repouso completos. O rabi começou a andar para cima e para baixo e a recitar o "Senhor do universo". Repetia as palavras: "E após todas as coisas chegarem ao seu termo, Ele reinará sozinho", várias vezes. O rabi imaginou a família humana perecendo, casas ruindo, tudo o que era mau desfazendo-se e a luz de Deus voltando a ocupar o espaço inteiro. A retração de Seu poder, as forças demoníacas, tudo o que era mesquinho e sórdido cessaria. Tempo, acidentes, paixões e lutas desapareceriam, pois que não passavam de ilusão e logro. A verdade real estava na bondade absoluta.

O rabi disse suas preces, contemplando o significado íntimo das palavras. Pouco a pouco os fiéis começaram a chegar: o primeiro quorum foi composto de trabalhadores manuais que acordavam com os galos — Leibush, o carteiro, Chaim Jonah, o vendedor de peixe, Avrom, o seleiro, Shloime Meyer, que cultivava pomares nos arredores de Yampol. Cumprimentaram o rabi, depois puseram os amuletos e xales. Ocorreu ao rabi que seus inimigos da cidade ou eram ricos ou indolentes. Os pobres e trabalhadores, estes viviam vida honesta, estavam ao seu lado. "Por que não pensei nisso antes?", o rabi perguntou-se. "Por que isso não me ocorreu antes?" Sentiu amor repentino por aqueles judeus que não enganavam ninguém, que não sabiam defraudar e roubar, limitando-se a cumprir a sentença de Deus: "Comerás o pão com o suor do teu rosto..." Ei-los agora a enrolar os amuletos em volta dos braços, a beijar os debruns dos xales de orações, aceitando o jugo do reino dos céus. A tranqüilidade matinal banhava-lhes o rosto e a barba. Seus olhos brilhavam com a doçura dos que desde a infância suportam o fardo.

Era segunda-feira. Após a confissão o pergaminho foi retirado da Arca, enquanto o rabi entoava "Abençoado seja Teu nome". A abertura da Arca Sagrada sempre o comovia. Lá estavam os Santos Pergaminhos, a Tora de Moisés, costurada em seda e decorada com correntes, coroas, lâminas prateadas — tudo idêntico, mas cada um com seu destino. Alguns pergaminhos eram lidos em dias úteis, outros apenas no Sabbath, outros ainda retirados apenas no Dia do Júbilo da Lei. Também havia muitos livros usados da Lei, com letras esmaecidas e papel de luto. Sempre que pensava naquelas ruínas santas, o rabi sentia dor no coração. Oscilou para a frente e para trás, murmurando as palavras aramaicas: "Reinarás sobre tudo... Eu, o servidor do Santíssimo, abençoado seja Ele, inclino-me diante Dele e do esplendor de Sua lei..." Ao chegar às palavras "Não confio em ninguém", o rabi parou. As palavras ficaram presas na garganta.

Pela primeira vez percebeu que mentia. Ninguém confiava mais nos outros do que ele. A cidade inteira dava-lhe ordens, ele dependia de todo mundo. Qualquer um podia prejudicá-lo. Hoje era em Yampol, amanhã seria em Yavrov. Ele, o rabi, tornara-se escravo dos poderosos da comunidade. Devia esperar presentes, favores e buscar eterno apoio. O rabi começou a examinar os outros fiéis. Nenhum precisava de aliados. Nenhum se preocupava com quem lhe era simpático ou não. Ninguém dava um tostão por boatos. "Então, de que vale a mentira?", pensou o rabi. "A quem estou iludindo? Ao Todo-Poderoso?" O rabi estremeceu e cobriu o rosto, envergonhado. Seus joelhos dobraram-se. Já havia posto o pergaminho na mesa de leitura, mas não o percebeu. De súbito, alguma coisa dentro dele começou a rir. Ergueu a mão, como se proferindo juramento. Um júbilo de há muito esquecido dominou-o e ele sentiu uma determinação inesperada. Num átimo tudo se lhe tornou claro...

Chamaram o rabi para a leitura e ele subiu os degraus da estante. Colocou uma franja no pergaminho, levou-o à testa e depois beijou-o. Recitou a bênção em voz alta. Em seguida, fez-se a leitura. Era o capítulo "Envia teus homens..." Referia-se aos espiões que saíram em busca da terra de Canaã e que retornaram assustados pelos filhos de Anak. "A covardia destruiu a geração do deserto", disse o Rabi Jonathan a si mesmo. "E se não temiam gigantes, por que devo tremer diante de pigmeus? Isso é pior do que covardia; não passa de orgulho. Tenho medo de perder os paramentos rabínicos." Os fiéis fitaram boquiabertos o rabi. Parecia transformado. Dele emanava força misteriosa. "Provavelmente porque está de partida para Yavrov", explicaram entre si.

Após a oração, os homens começaram a se dispersar. Shloime Meyer pegou o xale, pronto a partir. Era um homem pequeno, de forte ossatura, barba amarela, olhos amarelos, sardas amarelas. Seu gorro de lona, seu sobretudo de gabardina e as botas grosseiras recebiam raios amarelos de sol. O rabi fez-lhe um sinal.

— Shloime Meyer, espere um pouco, por favor.

— Sim, rabi.

— Como vão os pomares? — perguntou. — A colheita promete?

— Graças a Deus. Se não ventar muito, tudo correrá bem.

— Tem homens para a colheita?

Shloime Meyer pensou um minuto.

— É difícil, mas nós nos arranjaremos.

— Por que é difícil obter trabalhadores?

— O trabalho não é fácil. Passam o dia em cima de escadas e à noite têm de dormir no celeiro.

— Quanto você paga?

— Não muito.

— Dá para a subsistência?

— A comida é por minha conta.

— Shloime Meyer, contrate-me. Apanharei frutas para você.

Os olhos de Shloime Meyer brilharam, divertidos.

— Por que não?

— Não estou brincando.

Os olhos de Shloime Meyer entristeceram-se.

— Não sei o que o rabi pretende.

— Não sou mais rabi.

— O quê? Qual o motivo?

— Se me conceder um minuto, eu lhe direi.

Shloime Meyer escutou com atenção. A assembléia partira e os dois estavam sozinhos. Conversavam em pé, perto do púlpito. Embora o rabi falasse com calma, cada palavra ecoava como se alguém invisível as repetisse.

— Que me diz agora, Shloime Meyer? — perguntou por fim o rabi.

Shloime Meyer fez uma cara de quem acabara de engolir alguma coisa azeda. Sacudiu a cabeça.

— Que posso dizer? Tenho medo de ser excomungado.

— Você não deve temer ninguém. "Não temerás o rosto do homem." Esta é a essência do judaísmo.

— Que dirá sua esposa?

— Ela me ajudará no trabalho.

— Nosso trabalho não foi feito para pessoas de sua posição.

— Os que confiam no Senhor redobram forças.

— Bem, bem...

— Concorda, então?

— Se o rabi deseja...

— Não me chame mais de rabi. Doravante sou seu empregado. E prometo ser trabalhador honesto.

— Não estou preocupado com isso.

— Quando parte para os pomares?

— Dentro de umas duas horas.

— Passe lá em casa com sua carroça. Estarei à espera.

— Sim, rabi.

Shloime Meyer demorou-se mais um pouco e depois saiu. Perto da porta da antecâmara, relanceou os olhos para trás. O rabi continuava só, as mãos apertadas, o olhar errando de parede a parede. Despedia-se da sinagoga onde rezara durante tantos anos. Tudo tão familiar! Os doze signos do zodíaco, as sete estrelas, as figuras do leão, o gamo, o leopardo e a águia, o inexprimível nome de Deus pintado em vermelho. Os leões dourados no topo da Arca encaravam o rabi com olhos ambarinos, enquanto suas línguas recurvas sustentavam as tábuas com os dez mandamentos. Parecia ao rabi que aquelas bestas sagradas perguntavam: "Por que esperou tanto? Não podia ver logo que não se pode servir a Deus e ao homem ao mesmo tempo?" Suas bocas abertas pareciam rir com benigna ferocidade. O rabi repuxou a barba. "Bem, nunca é tarde demais. A eternidade está à minha disposição..." Andou na direção dos fundos, até chegar ao pórtico. Não existe mezuzah numa sinagoga, mas o rabi tocou o umbral com o dedo indicador e depois com os lábios.

Em Yampol, em Yavrov, a notícia estranha não tardou a se espalhar. O Rabi Jonathan, sua esposa e a filha Yentl tinham ido colher frutas nos pomares de Shloime Meyer.

Título do original: Short Friday - Copyright © by Isaac Bashevis Singer

Tradução: Hélio Pólvora (Breve Sexta-Feira)