Sunday, September 27, 2009

O sujeito passou a vida ralando pra educar o filho pra ele ser gente boa. Agora que o filho cresceu e é um puta cara gente boa, não consegue nem olhar pro pai, porque daí lembra do tanto que o velho foi repressivo.

O Gigante de Barro
Carlos Heitor Cony

A ideia de uma ponte aérea entre os aeroportos de Campo de Marte (SP) e Jacarepaguá (RJ) não é má, embora não seja boa. Desafogaria o terminal de Congonhas, que está no limite de saturação, e aliviaria o Santos Dumont, que não está nas mesmas condições, mas começa a criar caso com o barulho que perturba quem vive ou trabalha em suas imediações.

A melhor alternativa para descongestionar o tráfego entre as duas grandes cidades talvez não seja mais uma ponte aérea, mas o trem-bala, cujos estudos e implantação volta e meia ressuscitam e falecem. Rio e São Paulo, mais cedo ou mais tarde, formarão fisicamente uma nova e gigantesca cidade, e a união ferroviária nos níveis tecnológicos do presente e do futuro será a espinha dorsal da colossal metrópole do Sudeste brasileiro.

Culpa-se JK - e com razão - pela deterioração da rede ferroviária, uma vez que foi dada absoluta prioridade às estradas de rodagem. Há muito de verdade nisso, mas a realidade é que os governos posteriores agravaram a situação.

Nada mais melancólico do que ver antigas estações apodrecendo ao tempo em quase todos os quadrantes do nosso território, e os trilhos enferrujados, cobertos de capim, lembrando que "aqui outrora ressoaram hinos."

Sei, o problema vai requerer muito dinheiro e trabalho. Mas o Brasil está começando a ficar arrogante com o seu novo status de gigante emergente, alinhado a potências nucleares como a China, a Índia e a Rússia, o decantado Bric.

Com a nossa rede ferroviária em decomposição cadavérica, e sem um projeto tecnologicamente moderno e eficiente para recuperá-la e ampliá-la, manteremos o nosso imenso interior ilhado, de difícil acesso, com rodovias congestionadas mostrando que o gigante continua com pés de barro.

Saturday, September 26, 2009

Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca? Os místicos, em análogo transe, são pródigos em emblemas: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros; Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel, de um anjo de quatro faces que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não em vão rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação têm com o Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas este relato ficaria contaminado de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei.

Jorge Luis Borges - O Aleph

Anúncios que pedem papéis da ditadura vão ao ar amanhã

O governo federal começa a veicular amanhã, ao custo de R$ 13,5 milhões, anúncios em TV, rádios, jornais e revistas para estimular a entrega de documentos sobre a localização de desaparecidos no regime militar (1964-85).

Produzida pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência, a campanha vai durar dois meses e será veiculada nacionalmente em TV e revistas - em rádio, será mais concentrada na região do Araguaia.

Os filmes para TV, que contam com a participação de familiares de desaparecidos políticos, foram dirigidos pelos cineastas Cao Hamburguer, João Batista de Andrade e Helvécio Ratton.

Segundo o governo, quem entregar documentos - o que pode ser feito pela internet (www.memoriasreveladas.gov.br) - terá a garantia de anonimato. O material coletado será encaminhado ao Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil - Memórias Reveladas.

Para o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, "qualquer que seja a divergência ideológica, histórica política sobre o período, ninguém pode ter divergência sobre o direito de localizar os restos mortais e sepultar".

na Folha de São Paulo

Wednesday, September 23, 2009


Princípio de incêndio que atingiu um trem da linha 1 - Azul (Tucuruvi - Jabaquara) do metrô interrompeu a circulação em São Paulo na manhã desta quarta-feira (23). Ônibus mudaram itinerário para atender passageiros. Um problema no sistema elétrico de um dos vagões provocou fogo.

Tuesday, September 22, 2009

Folha - O sr. pode começar explicando por que Brazil, o título, em Brazil, o filme?

Terry Gilliam - Nos anos 40, nos EUA, época em que eu cresci, havia todas aquelas músicas que vinham do sul da fronteira com o México [cantarola "Aquarela do Brasil", que está na trilha de seu filme de 1985], pareciam vir de um mundo romântico lá na América do Sul, onde o amor florescia e tudo era lindo... Eu cresci em Minneapolis (Estado de Minnesota), era frio, não tínhamos dinheiro, mas em algum lugar do mundo existia esse lugar paradisíaco, e era isso o que Brasil significava para mim. Era isso também para o personagem do filme, o oposto de tudo o que ele vivia. Nunca estive no país, mesmo depois do filme, acredita?

Folha - O sr. parece o mais não-americano dos diretores americanos, no sentido de que foge a convenções seguidas pela maior parte de seus pares.

Gilliam - Não é meu plano, é por acaso. No caso de Parnassus, por exemplo, pensei só no começo do filme, uma carruagem antiga com uma trupe exibindo um espetáculo antigo, ao qual ninguém presta atenção, uma forma de arte completamente ignorada. Aos poucos, a coisa toda cresce.

Eu gostaria de fazer um filme com efeitos especiais incríveis, como os outros diretores, mas não tenho dinheiro, então eu limito os momentos em que isso acontece no filme. Como? Em Parnassus, você tem de passar por um espelho mágico e só quando está lá dentro as coisas são fantásticas. Assim eu controlo o orçamento. Dentro do espelho, efeitos especiais; fora do espelho, realidade. Mas só isso seria chato, então resolvemos complicar um pouco a trama. Aí entrou a questão da livre escolha, que permeia o filme, entre Parnassus e seu rival.


Folha - O que o sr. acaba de falar sobre uma forma de arte ignorada, a que não se presta atenção, pode ser metáfora para seu próprio trabalho, não? Quão autobiográfico é o filme?

Gilliam - Tem um pouco de tudo, na verdade. A cena em que Parnassus perde tudo e vai pedir esmola remete um pouco a quando eu fiz Tideland (2005), meu último filme antes desse, que é ignorado até hoje. Então, eu fui às ruas de Nova York pedir dinheiro para completar o filme, literalmente. Ou seja, é sempre tudo fantasia e imaginação, mas sempre com um pé na realidade.

Folha - Quão difícil é ser o sr. nessa indústria?

Gilliam - Eu não tenho escolha, então só sou. Vivo na Inglaterra há 42 anos e não perdi meu sotaque norte-americano, ou seja, fui formado em algum momento assim e assim fiquei. Mas não sou otimista em relação à indústria. Hoje, você só pode fazer um filme com orçamento de US$ 200 milhões ou de US$ 2 milhões. Não há nada no meio-termo, e eu estou no meio-termo, meus filmes custam entre US$ 20 milhões e US$ 40 milhões. Parnassus custou US$ 30 milhões.

É como no resto da sociedade americana nos últimos anos: os ricos ficaram mais ricos, os pobres, mais pobres, e a classe média está sendo varrida do mapa. Os filmes que atualmente são feitos refletem isso, de uma maneira estranha. O que me aborrece, porque é significativo da atmosfera para o cinema hoje em dia. Imagine: eu tinha o próximo filme de Heath Ledger depois de ele fazer o Coringa em Batman - O Cavaleiro das Trevas, que todo o mundo sabia que seria um dos maiores sucessos de todos os tempos, e ainda assim ninguém me dava dinheiro! É uma loucura.

Folha- É uma sensação ambígua ver o filme pronto sem o ator principal por perto?

Gilliam - Ah, sim... Eu adoraria ver o filme que planejei fazer com ele. É o mesmo filme, poucas coisas mudaram depois da morte dele, quer dizer, além da óbvia grande mudança. Ele me disse que gostaria de ver o filme pronto, eu gostaria que ele visse também, nenhum de nós teve o desejo realizado.

Folha - Em uma das cenas, feitas já depois da morte dele, o personagem encontra barquinhos com as fotos da Princesa Diana e dos atores Rudolph Valentino e James Dean, numa referência aos que morreram jovens e no auge. O sr. acha que Heath Ledger foi vítima da cultura de celebridades atual?

Gilliam - Não, Heath era muito centrado. Eu não sei o que aconteceu exatamente, ou ele tomou muitas pílulas para tentar dormir, acordou e esqueceu que já tinha tomado, sei lá, mas todas as histórias que cercam sua morte são bobagens. Não havia neurose nele, e isso é que torna tudo trágico.

Folha - De onde veio o personagem que ele interpreta, Tony Liar (Tony Mentiroso)?

Gilliam - Ah, ele é escorregadio, não é? Tudo começou com [o ex-primeiro-ministro britânico] Tony Blair. Ele foi tão escorregadio, empolgado e bom de convencer as pessoas das coisas mais ridículas, como a Guerra do Iraque. Quer dizer, uma coisa era o presidente Bush mentir a respeito, mas Blair era um sujeito basicamente decente. Ele me intriga.

Folha - O sr. estudou na mesma escola que Barack Obama, Occidental College, em Los Angeles, embora em épocas diferentes. O sr. votou nele?

Gilliam - Não pude, porque abri mão de minha cidadania americana em 2006. Mas eu teria votado. Finalmente poderia ter escolhido um dos 'mocinhos' num meio de bandidos. O fato de ele ter sido eleito me dá um pouco mais de esperança em relação aos EUA, mas, cara, eles estão dando uma surra nele, não estão? Mas ele é bom, e eu espero que ele se cerque das pessoas certas e acho que tem a firmeza de caráter para sobreviver a isso.

Folha - Seu próximo projeto é a biografia de Dom Quixote, abandonada em 2000. É seu Fitzcarraldo, no sentido de sonho impossível de realizar?

Gilliam - Se você vai filmar a vida de Dom Quixote, é bom que o projeto seja um sonho impossível! [Risos] Mas é engraçado, porque eu briguei com advogados por sete, oito anos para conseguir os direitos do roteiro de volta, venci e falei, "agora vai". Mas aí eu li o texto e achei que não era muito bom. Reescrevi e está muito melhor! É quase uma sorte o filme ter sofrido o colapso que sofreu.

Folha - Então, o sr. não acredita no que a indústria chama de "a maldição de Gilliam"?

Gilliam - Não, não acredito... Acho que é quase o oposto, eu sou quase sortudo. Não acho que foi a "maldição de Gilliam" que matou Heath nem que matou o filme de Quixote. Os deuses do cinema gostam de tornar as coisas mais difíceis para mim, mas acho que o resultado são filmes melhores, porque foram tão difíceis de ser feitos. Já me acostumei a encontrar dificuldades, que dão soluções interessantes na tela.

Folha - As restrições financeiras o forçam a ser mais criativo, de certa maneira?

Gilliam - Sim, claro. Dão um equilíbrio interessante, de eu não ter o tanto de dinheiro que queria para fazer, mas o tanto que eu deveria gastar. Caso contrário, se eu tivesse total liberdade, seria ridículo. Eu não saberia me concentrar e quereria tudo. Assim, é mais simples: de seis coisas eu posso ter duas. E pronto.

Sunday, September 20, 2009

Borges e O Justiceiro (11.4.2007)

Bráulio Tavares

Um dos contos mais atuais de Jorge Luís Borges é "Deutsches Requiem" (no livro O Aleph). Nele, o nazismo é mostrado pelo lado de dentro, pelo ponto de vista de um cara que acredita que aquele pesadelo é o futuro do mundo. Otto Dietrich Zur Linde, o narrador, vê com euforia a ascensão do nazismo e sua expansão devastadora pela Europa. No final, quando o resto do mundo se ergue contra Hitler e o esmaga por todos os lados, ele ainda consegue ver nisto uma vitória. Suas palavras finais são: “Ameaça o mundo agora uma época implacável. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima. Que importa que a Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a violência, e não a servil timidez cristã. Se a vitória e a injustiça e a felicidade não são para a Alemanha, que sejam para outras nações. Que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno”.

A monstruosidade da ideologia é reforçada, por contraste, pela beleza poética desta última frase, que encerra a mais altruísta das filosofias. Zur Linde exprime aquilo que Borges mais detestava e desprezava, mas o autor cede ao personagem sua melhor inspiração literária. Para quê? Para evitar a caricatura, mostrar que o Nazismo é uma doença mental que pode acometer a qualquer um. O nazismo veio para implantar o terror, a guerra, a loucura à mão armada. Veio para ameaçar o mundo com uma monstruosidade tão absurda e desmedida que para destruí-la, para torná-la inviável, foi preciso criar “um monstro ainda maior, e ainda mais monstro”. E o reino dos monstros começou de fato a imperar sobre a Terra.

Hitler afirmou certa vez: “Quem quiser viver é constrangido a matar. Martelo ou bigorna. Minha intenção é preparar o povo alemão para ser o martelo”. Esta frase estava (me parece óbvio) na memória de Borges quando ele compôs o fecho do seu conto. Zur Linde vai além de Hitler, pois percebe que a função do nazismo era trazer para o mundo A Lei do Martelo e da Bigorna, e para que isto acontecesse era indiferente qual dos dois a Alemanha viria a ser.

Na história em quadrinhos O Justiceiro, escrita pelo irlandês Garth Ennis, na última parte do episódio "Nascido para matar", ambientado na Guerra do Vietnam, lemos a certa altura:

Há uma grande Besta-Fera à solta no mundo dos homens. Ela despertou em tempos sombrios para enfrentar um terrível inimigo. Percorreu a Europa e o longínquo Pacífico, esmagando o Mal que encontrou pelo caminho. No entanto, quando foi vitoriosa, quando a perversidade da Cruz Gamada e do Sol Nascente teve fim, os guardiões da Besta-Fera julgaram por bem não devolvê-la ao seu sono. A Fera tem muitas cabeças, cada qual com um nome escrito: Lockheed, Bell, Monsanto, Dow, Grumman, Colt e muitos mais. E elas são muito famintas. Por isso, a Fera deve se alimentar... e, a cada geração, nosso país vai à guerra pra garantir seu sustento”. A Fera que nos livrou de Hitler está à solta, mas quem vai nos livrar da Fera?

Uma rápida passagem pelo myspace (não precisa muito) e fica clara a ausência da precariedade e da exuberância que marcavam a produção de música brasileira até o fim dos anos 80 do século XX. Exemplo de exuberância: Gilberto Gil, experimentando de tudo um pouco, errando muito, mudando sempre, pleno de falta de foco, transbordante de força criativa. Exemplo de precariedade: Belchior, Elba Ramalho, Ednardo, tirando leite de seus talentos de pedra. Exemplo de exagero: Fagner. Mistura de exuberância e precariedade: Maria Bethânia, capacidade dramática sem medida, musicalidade à beira do cômico. Algo de patético acompanha a escuta da temerária* e hoje praticamente extinta MPB, os (exuberantes) falsetes místicos de Milton, a pretensão metafísica (precária) de Caetano, a auto-confiança (exuberante) de Chico Buarque, capaz de cantar a palavra paralelepípedo como se fosse a coisa mais natural do mundo. Na penúltima década dos 1900, as dezenas de bandas imitando o rock americano soavam totalmente brasileiras, pela reveladora precariedade da música que faziam.

Este tempo já passou. Não precisa muito, 45 minutos de myspace e está estampado o controle contábil de custo-benefício que organiza a produção de todos os estilos-bandas-cantores-cantoras-selos-coletivos-festivais-gravadoras. Nem exuberância, nem precariedade. Só eficácia. Os produtores ensinaram à gurizada espacializar o som, distribuir no espectro as frequências, a desempaçocar o track. Solos, levadas, instrumentos e instrumentistas eficazes (amplificadores de boa marca). Todo mundo fez aula. Todo mundo curte cuidar do make up. Todos os bateras sabem se comportar em cena. Todo mundo fica bem na foto. Todos os fotógrafos profissionais. Todos os encartes em elegante couché fosco. Assessores de imprensa cheios de contatos. Produtores antenados com as novas tendências. Clean. Pasteurizado. Anódino. Eficaz.

A eficácia, em si mesma e por si só, Lorenzo Mammì ensinou, é o oposto do que buscaram os dois grandes mestres brasileiros, João Gilberto e Antônio Carlos Jobim. João pelo exagero monástico, Tom pelo desmazelo caseiro, de quintal, quase sempre bêbado.

Vi que há por aí um livro, O Cálculo Neurótico do Gozo (algo assim) que, desconfio, pensa sobre a característica psíquica inextrícavel de pretendermos estar adequados à norma. Parece que, se é para a norma que gozamos ou não, muito esperto (e adequado aos novos tempos) é calcular o estritamente necessário para cumprir a determinação. Nem mais nem menos. Como aquele taxista que cobrava $10,00 por hora e só dirigia a 10 por hora. Lacan explica.

* Que se arroja aos perigos, sem pensar nas conseqüências que daí possam advir; imprudente.

Capítulo 1

Ela não dava, porque não tinha. Ela havia intuído isso, num sentido muito agudo. Tal falta a agredia. Vai daí, recusava. Sua recusa alimentava nele a idéia, repetida para não recordar - sintomática - de que apesar de ter, ela não queria dar.

Capítulo 2

Ao partir, para conhecer o desamparo teve que aprender a ausência: a falta que a envergonhava tanto. A falta recordada - o traço de saudade - e a impossibilidade de voltar fez emergir o que quer dizer a diferença entre recusa e renúncia.

Epígrafes de Maria Rita Kehl

- Sobre Ética e Psicanálise -


Introdução - Por Que Articular Ética e Psicanálise?

O mundo não marcha senão pelo mal-entendido.
É pelo mal-entendido universal que o mundo inteiro se
entende.
Pois se, por desgraça, os homens se compreendessem,
não poderiam jamais entender-se.

Charles Baudelaire, Meu Coração Desnudado



1. O Homem Moderno, o Desamparo e o Apelo a uma Nova Ética

[...]
E, assim, criam-se mundos
que são postos de lado,
girando, quando prontos,
presente abandonado.

Em meio, pois, a treva
e luz, calor e frio,
prossegue o nosso globo
seu giro no vazio.

Joseph Brodzky, fragmento sem título


2. A Neurose, Resposta Individual à Crise Ética da Modernidade

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir.
Em direção
a ti.

Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém.

Com
o estilete claro de alma,
o estame ermo de céu,
a corola vermelha
da purpúrea palavra que cantamos
sobre, oh, sobre
o espinho.

Paul Celan - Salmo



3. A Virada Freudiana

[...]
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia
Cadáver adiado que procria?

Fernando Pessoa - D. Sebastião, Rei de Portugal

Flectere si nequeo superos, acherota movebo*

Virgílio, em epígrafe de A Interpretação dos Sonhos


4. A Ética da Cura e a Sublimação

Na dor eu passo a vau - charcos inteiros -
Questão de hábito.
Mas um leve esbarro de alegria
Me embaralha os pés,
Perco o equilíbrio - ébria.
Que nenhum seixo se ria -
Bebida inédita - é só isto!

Emily Dickinson


Conclusão - Humor, Poesia e Erotismo

Há cinco possibilidades. Primeira: Adão caiu.
Segunda: foi empurrado. Terceira: saltou. Quarta:
ao debruçar-se sobre o parapeito perdeu o equilíbrio. Quinta:
nada digno de nota aconteceu a Adão.

A primeira, de que caiu, é precária demais. A quarta,
medo, foi examinada e revelou-se inútil. A quinta,
de que nada aconteceu, não interessa. A solução é a alternativa:
saltou ou foi empurrado. E a diferença está apenas

na questão de saber se o demônio
age de dentro para fora ou de fora para
dentro: aí está
o verdadeiro problema teológico.

Robert Bringhurst - Ensaio sobre Adão

* Se não posso conciliar os deuses do céu, moverei os do inferno.

Saturday, September 19, 2009

Deutsches Requiem

Ainda que ele me tire a vida, nele confiarei.
13, 15


Meu nome é Otto Dietrich zur Linde. Um de meus antepassados, Christoph zur Linde, morreu na carga de cavalaria que decidiu a vitória de Zorndorf. Meu bisavô materno, Ulrich Forkel, foi assassinado na floresta de Marchenoir por franco-atiradores franceses, nos últimos dias de 187O; o capitão Dietrich zur Linde, meu pai, distinguiu-se no cerco de Namur, em 1914, e, dois anos depois, na travessia do Danúbio.(1) Quanto a mim, serei fuzilado por torturador e assassino. O tribunal procedeu com retidão; desde o princípio, eu me declarei culpado. Amanhã, quando o relógio da prisão der as nove horas, terei entrado na morte; é natural que pense em meus antepassados, já que tão perto estou de sua sombra, já que de algum modo sou eles.

Durante o julgamento (que felizmente durou pouco) não falei; justificar-me, então, teria perturbado o veredicto e parecido covardia. Agora as coisas mudaram; nesta noite que precede minha execução, posso falar sem temor. Não pretendo ser perdoado, porque não há culpa em mim, mas quero ser compreendido. Os que souberem ouvir-me compreenderão a história da Alemanha e a futura história do mundo. Eu sei que casos como o meu, excepcionais e assombrosos agora, serão muito em breve triviais. Amanhã morrerei, mas sou um símbolo das gerações do futuro.

Nasci em Marienburg, em 1908. Duas paixões, agora quase esquecidas, permitiram-me enfrentar com valor e até com felicidade muitos anos infaustos: a música e a metafísica. Não posso mencionar todos os meus benfeitores, mas há dois nomes que não me resigno a omitir: o de Brahms e o de Schopenhauer. Também frequentei a poesia; a esses nomes, quero juntar outro vasto nome germânico, William Shakespeare. Antes, a teologia me interessou, mas dessa fantástica disciplina (e da fé cristã) me desviou para sempre Schopenhauer, com razões diretas; Shakespeare e Brahms, com a infinita variedade de seu mundo. Quem se detiver, maravilhado, trêmulo de ternura e gratidão, ante qualquer parte da obra desses homens felizes, saiba que eu também me detive aí, eu, o abominável.

Por volta de 1927, entraram em minha vida Nietzsche e Spengler. Observa um escritor do século XVIII que ninguém quer dever nada a seus contemporâneos; eu, para libertar-me de uma influência que pressenti opressora, escrevi um artigo intitulado Abrechnung mit Spengler, no qual observava que o monumento mais inequívoco dos traços que o autor chama fáusticos não é o misto drama de Goethe (2) mas um poema escrito há vinte séculos, o De Rerum Natura. Rendi justiça, contudo, à sinceridade do filósofo da história, a seu espírito radicalmente alemão (Kerndeutsch), militar. Em 1929, entrei no Partido.

Pouco direi de meus anos de aprendizagem. Foram mais duros para mim que para muitos outros, já que, apesar de não carecer de valor, me falta qualquer vocação para a violência. Compreendi, entretanto, que estávamos à beira de um tempo novo e que esse tempo, comparável às épocas iniciais do Islamismo ou do Cristianismo, exigia homens novos. Individualmente, meus camaradas me eram odiosos; em vão, procurei raciocinar que, para o alto fim que nos congregava, não éramos indivíduos.

Asseveram os teólogos que, se a atenção do Senhor se desviasse um só segundo de minha mão direita que escreve, esta recairia no nada, como se a fulminasse um fogo sem luz. Ninguém pode ser, digo, ninguém pode provar um copo d’água ou partir um pedaço de pão sem justificativa. Para cada homem, essa justificativa é diferente; eu esperava a guerra inexorável que iria provar nossa fé. Bastava-me saber que eu seria um soldado de suas batalhas. Certa vez, temi que nos defraudassem a covardia da Inglaterra e da Rússia. O acaso, ou o destino, teceu de outra maneira meu futuro: em 1° de março de 1939, ao escurecer, houve distúrbios em Tilsit que os jornais não registraram; na rua detrás da sinagoga, duas balas me atravessaram a perna, que foi necessário amputar.(3) Dias depois, entravam na Boêmia nossos exércitos; quando as sirenas o anunciaram, eu estava no sedentário hospital, tratando de perder-me e esquecer-me nos livros de Schopenhauer. Símbolo de meu vão destino, dormia no rebordo da janela um gato enorme e fofo.

No primeiro volume de Parerga und Paralipomena reli que todos os fatos que podem ocorrer a um homem, desde o instante de seu nascimento até o de sua morte, foram prefixados por ele. Assim, toda negligência é deliberada, todo casual encontro, uma hora marcada, toda humilhação, uma penitência, todo fracasso, uma misteriosa vitória, toda morte, um suicídio. Não há consolo mais hábil que o pensamento de que escolhemos nossas desgraças; essa teleologia individual nos revela uma ordem secreta e prodigiosamente nos confunde com a divindade. Que ignorado propósito (meditei) me fez procurar esse entardecer, essas balas e essa mutilação? Não foi o temor da guerra, eu o sabia; algo mais profundo. Por fim, pensei entender. Morrer por uma religião é mais simples que vivê-la com plenitude; lutar em Éfeso contra as feras é menos duro (milhares de mártires obscuros o fizeram) que ser Paulo, servo de Jesus Cristo; um ato é menos que todas as horas de um homem. A batalha e a glória são facilidades; mais árdua que a ação de Napoleão foi a de Raskolnikov. Em 7 de fevereiro de 1941, fui nomeado subdiretor do campo de concentração de Tarnowitz.

O exercício desse cargo não me foi grato; mas não pequei nunca por negligência. O covarde se prova entre as espadas; o misericordioso, o piedoso, procura o exame dos cárceres e da dor alheia. O nazismo, intrinsecamente, é um fato moral, um despojar-se do velho homem, que está viciado, para vestir o novo. Na batalha, essa mutação é comum, entre o clamor dos capitães e o vozerio; não é assim em um infame calabouço, onde nos tenta com antigas ternuras a insidiosa piedade. Não em vão escrevo essa palavra; a piedade pelo homem superior é o último pecado de Zaratustra. Quase o cometi (confesso) quando nos mandaram de Breslau o insigne poeta David Jerusalém.

Era um homem de cinquenta anos. Pobre de bens deste mundo, perseguido, negado, vituperado, consagrara seu gênio a cantar a felicidade. Creio lembrar que Albert Soergel, na obra Dichtung der Zeit, o compara a Whitman. A comparação não é feliz; Whitman celebra o universo de modo prévio, geral, quase indiferente; Jerusalém alegra-se de cada coisa, com minucioso amor. Jamais emprega enumerações, catálogos. Ainda posso repetir muitos hexâmetros daquele profundo poema que se intitula Tse Yang, Pintor de Tigres, que está como que raiado de tigres, que está como que carregado e atravessado de tigres transversais e silenciosos. Tampouco esquecerei o solilóquio Rosencrantz Fala com o Anjo, no qual um prestamista londrino do século XVI inutilmente trata, ao morrer, de vindicar suas culpas, sem suspeitar que a secreta justificativa de sua vida é ter inspirado a um de seus clientes (que o viu uma única vez e de quem não se lembra) o caráter de Shylock. Homem de memoráveis olhos, de pele citrina, de barba quase negra, David Jerusalém era o protótipo do judeu sefardim, embora pertencesse aos depravados e enfadonhos Ashkenazim. Fui severo com ele; não permiti que me abrandassem nem a compaixão nem sua glória. Eu havia compreendido há muitos anos que não existe coisa no mundo que não seja germe de um Inferno possível; um rosto, uma palavra, uma bússola, um anúncio de cigarros poderiam enlouquecer uma pessoa, se esta não conseguisse esquecê-los. Não estaria louco um homem que continuamente tivesse em mente o mapa da Hungria? Determinei aplicar esse princípio ao regime disciplinar de nossa casa e... (4) Em fins de 1942, Jerusalém perdeu a razão; em 1° de março de 1943, conseguiu matar-se. (5)

Ignoro se Jerusalém compreendeu que, se eu o destruí, foi para destruir minha piedade. Diante de meus olhos, ele não era um homem, nem sequer um judeu; transformara-se no símbolo de uma detestada área de minha alma. Eu agonizei com ele, eu morri com ele, eu de algum modo me perdi com ele; por essa razão, fui implacável.

Enquanto isso, giravam sobre nós os grandes dias e as grandes noites de uma guerra feliz. Havia no ar que respirávamos um sentimento parecido com o amor. Como se bruscamente o mar estivesse perto, havia um assombro e uma exaltação no sangue. Tudo, naqueles anos, era diferente, até o sabor do sonho. (Talvez eu nunca tenha sido inteiramente feliz, mas se sabe que a desventura requer paraísos perdidos.) Não há homem que não aspire à plenitude, quer dizer, à soma de experiências de que um homem é capaz; não há homem que não tema ser defraudado em alguma parte desse patrimônio infinito. Mas minha geração teve tudo, porque primeiro lhe foi proporcionada a glória e depois a derrota.

Em outubro ou novembro de 1942, meu irmão Friedrich pereceu na segunda batalha de El Alamein, nos areais egípcios; um bombardeio aéreo, meses depois, destruiu nossa casa natal; outro, em fins de 1943, meu laboratório. Acossado por vastos continentes, morria o Terceiro Reich; sua mão estava contra todos e as mãos de todos contra ele. Então, algo singular ocorreu, que agora creio entender. Eu me acreditava capaz de esgotar o copo de cólera, mas nas fezes me deteve um sabor não esperado, o misterioso e quase terrível sabor da felicidade. Ensaiei diversas explicações; não me bastou nenhuma. Pensei: "A derrota me satisfaz porque secretamente sei que sou culpado e só o castigo pode redimir-me". Pensei: "A derrota me satisfaz porque é um fim e estou muito cansado". Pensei: "A derrota me satisfaz porque ocorreu, porque está inumeravelmente unida a todos os fatos que são, que foram, que serão, porque censurar ou deplorar um único fato real é blasfemar contra o universo". Essas razões ensaiei, até dar com a verdadeira.

Tem-se dito que todos os homens nascem aristotélicos ou platônicos. Isso equivale a declarar que não há debate de caráter abstrato que não seja um momento da polêmica de Aristóteles e Platão; através dos séculos e latitudes, mudam os nomes, os dialetos, as faces, mas não os eternos antagonistas. Também a história dos povos registra uma continuidade secreta. Armínio, quando decapitou num lamaçal as legiões de Varo, não se sabia precursor de um Império Alemão; Lutem, tradutor da Bíblia, não suspeitava que seu fim era forjar um povo que destruísse para sempre a Bíblia; Christoph zur Linde, morto por uma bala moscovita em 1758, preparou de algum modo as vitórias de 1914; Hitler acreditou lutar por um país, mas lutou por todos, até por aqueles que agrediu e detestou. Não importa que seu eu o ignorasse; sabiam-no seu sangue, sua vontade. O mundo morria de judaísmo e dessa enfermidade do judaísmo que é a fé em Jesus; nós lhe ensinamos a violência e a fé na espada. Essa espada nos mata e somos comparáveis ao feiticeiro que tece um labirinto e que se vê forçado a errar nele até o fim de seus dias, ou a Davi, que julga um desconhecido e o condena à morte e ouve depois a revelação: "Tu és aquele homem". Muitas coisas há que destruir para edificar a nova ordem; agora sabemos que a Alemanha era uma dessas coisas. Demos algo mais que nossa vida, demos o destino de nosso querido país. Que outros maldigam e outros chorem; a mim me alegra que nosso dom seja orbicular e perfeito.

Ameaça agora o mundo uma época implacável. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima. Que importa que a Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a violência, não as servis timidezes cristãs. Se a vitória e a injustiça e a felicidade não são para a Alemanha, que sejam para outras nações. Que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno.

Olho meu rosto no espelho para saber quem sou, para saber como me portarei dentro de algumas horas, quando me defrontar com o fim. Minha carne pode ter medo; eu não.

Jorge Luis Borges - O Aleph

Notas

(1) É significativa a omissão do antepassado mais ilustre do narrador, o teólogo e hebraísta Johannes Forkel (1799-1846), que aplicou a dialética de Hegel à cristologia e cuja versão literal de alguns dos Livros Apócrifos mereceu a censura de Hengstenberg e a aprovação de Thilo e Geseminus. (N. do E.)

(2) Outras nações vivem com inocência, em si e para si, como os minerais ou os meteoros; a Alemanha é o espelho universal que a todas recebe, a consciência do mundo (
das Weltbewusstsein). Goethe é o protótipo dessa compreensão ecumênica. Não o censuro, mas não vejo nele o homem fáustico da tese de Spengler.

(3) Murmura-se que as consequências dessa ferida foram muito graves. (N. do E.)

(4) Foi inevitável omitir aqui algumas linhas. (N. do E.)

(5) Nem nos arquivos nem na obra de Soergel figura o nome de Jerusalém. Tampouco o registram as histórias da literatura alemã. Não creio, entretanto, que se trate de personagem falso. Por ordem de Otto Dietrich zur Linde foram torturados em Tarnowitz muitos intelectuais judeus, entre eles a pianista Emma Rosenzweig. "David Jerusalém" é talvez símbolo de vários indivíduos. Dizem-nos que morreu em 1° de março de 1943; em 1 ° de março de 1939, o narrador foi ferido em Tilsit. (N. do E.)

Ruminar

Engolir

Digerir

Wednesday, September 16, 2009

Tuesday, September 08, 2009

dois mil e 1 e 2 e tempo afora...

parece que sobrevivi bem ao terceiro sete de setembro, data em que se comemora a queda da minha torre gêmea. sem as fanfarras da epifania, a luz que jorrou porta adentro já esmaecida, a dor lancinante da flecha preta agora crônica - contagem do tempo. para o fato de que o alcance de suas ações não tem destino certo, o homem inventou a promessa. para a irreversibilidade delas, o perdão. dolorido de não ter perdão. aferrolhado a símbolos, sem imagens com quem se mirar: terceiro ano do segundo setênio. 7 e 7 são 14, com mais 7, 21, o carro, a temperança, o mundo; há noite por onde eu vou...

Monday, September 07, 2009

Metafísica Darwinista

[...] "acima do amor ao próximo está o amor ao Pai. Muito sangue de nossos semelhantes correu - na perseguição aos romanos, nas cruzadas, nas Inquisições -, em nome do amor ao Pai. O amor ao Pai está em contradição com o amor ao próximo. O mandato cristão não se sustenta como princípio norteador de uma ética para a modernidade, pois as condições de enunciação desse mandato portam uma dificuldade suplementar. Há uma contradição nos termos do apelo cristão: devo amar ao próximo para ser mais amado pelo Pai, por obediência a ele e temor ao Juízo Final, quando se decidirá, entre os muitos que foram chamados, quais serão os escolhidos. Isso equivale amar ao próximo mais do que o próximo me ama, de modo a ser escolhido para entrar no reino dos céus no lugar dele. Amar ao próximo para passá-lo para trás na preferência do Pai, o qual, por sua vez - embora supostamente ame a todos de modo igual -, já teria anunciado que não deixará de beneficiar seus prediletos. A dimensão da rivalidade (mortífera) entre irmãos está embutida nas condições da fraternidade cristã".

Maria Rita Kehl - Duas Vertentes da Crise Ética Contemporânea - Sobre Ética e Psicanálise

Sunday, September 06, 2009

The Problem We All Live With by Norman Rockwell (1894-1978)

"Todas as formas de racismo, intolerância étnica, religiosa ou nacional fundam-se na tentativa de fazer do semelhante um igual, ao preço de fazer do diferente um absoluto estranho".

In Spring 1960, Ruby Bridges was one of several African-American kindergarteners in New Orleans to take a test to determine which children would be the first to attend integrated schools. Six students were chosen; of these six, two decided to stay in their original schools, three were assigned to McDonogh Elementary school, and only Bridges was assigned to William Frantz. Her father initially was reluctant, but her mother felt strongly that the move was needed not only to give her own daughter a better education, but to "take this step forward ... for all African-American children.

[...] o senhor não se torna senhor pelo seu desejo, mas vem ocupar um lugar já preparado naqueles que domina, o que leva à importante constatação de que a tirania se engendra primordialmente do desejo de servir e se articula estruturalmente ao próprio surgimento do sujeito em um tempo dominado pelo discurso do mestre. O desejo do homem é o desejo do Outro, e quem cuida do desejo do senhor é o escravo.

Doris Rinaldi - A subjetividade hoje: os paradoxos da servidão voluntária

A centralidade social no emprego e a relevância quantitativa da classe operária típica (trabalho produtivo direto) fizeram que a partir do século XIX e durante a maior parte do século XX se associasse a expressão “trabalhadores” a “empregados”.

Essa introjecção arquetípica gera uma correlação que beira a identidade nas construções simbólicas de nossa sociedade. O que se põe em dúvida em razão das mutações do mundo do trabalho é se essa correção entre trabalhador e empregado ainda tem sentido nas sociedades contemporâneas e se permanecem válidas as categorias que separam o “autônomo” do “trabalhador” (empregado) ou se os mecanismos de proteção foram afetados por essas transformações. Isso coloca a necessidade de refletir sobre o conceito de emprego e de subordinação em termos jurídicos, para por em evidência se eles foram alterados no sistema atual ou se apenas devem ser recontextualizados.

A concepção positivista e essencialista do fenômeno jurídico conduz os intérpretes a buscar o conceito de “subordinação jurídica” por um viés puramente “objetivo”, o que esconde em realidade a busca por um ente inatingível. Busca-se a sujeição na “natureza” como se fosse uma substância distinta e separável dos demais elementos da realidade social. O trabalho subordinado, por isso, seria algo cientificamente palpável e que por mecanismos abstratos permitiria o enquadramento de todas as modalidades de trabalho em “relação de emprego” e “relação autônoma”.

O que a nossa realidade social e o nosso passado escravocrata indicam é que esse sonho dogmático é impossível de ser alcançado se quisermos superar os critérios puramente formalistas, os quais mantiveram o nosso sistema jurídico infenso à nossa brutal desigualdade. Há que se evoluir da objetivação da subordinação para a tutela dos sujeitos tuteláveis ou, pelo menos, mesclar critérios objetivos e subjetivos.

José Aparecido dos Santos* - Escravidão, Fordismo e Toyotismo: a Subordinação Jurídica na Perspectiva da Experiência Econômica e Social Brasileira

*Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Juiz Titular da 17ª Vara do Trabalho de Curitiba

Jose Aparecido Dos Santos

Morpheus: Você é um escravo. Como todo mundo. Você nasceu num cativeiro, nasceu numa prisão que não consegue sentir ou tocar. Uma prisão para sua mente. Infelizmente é impossível dizer o que é Matrix. Você tem de ver por si mesmo.


Labor – Escravidão


1 - O labor é a atividade humana que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida.

O labor assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie.

O labor é uma atividade assinalada pela necessidade e concomitante futilidade do processo biológico, do qual deriva, uma vez que é algo que se consome no próprio metabolismo, individual ou coletivo. Porque é atividade que os homens compartilham com os animais, Hannah Arendt qualifica-a como a do animal laborans.

[...] É típico de todo labor nada deixar atrás de si: o resultado do seu esforço é consumido quase tão depressa quanto o esforço é despendido. E, no entanto, esse esforço, a despeito de sua futilidade, decorre de enorme premência; motiva-o um impulso mais poderoso que qualquer outro, pois a própria vida depende dele.


2 - Os antigos [...] achavam necessário ter escravos em virtude da natureza servil de todas as ocupações que servissem às necessidades de manutenção da vida.

A degradação do escravo era um rude golpe do destino, um fado pior que a morte, por implicar a transformação do homem em algo semelhante a um animal doméstico.

Ao contrário do que ocorreu nos tempos modernos, a instituição da escravidão na antiguidade não foi uma forma de obter mão-de-obra barata nem instrumento de exploração para fins de lucro, mas sim a tentativa de excluir o labor das condições da vida humana. Tudo que os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal era considerado inumano. (Esta era também, por sinal, a razão da teoria grega, tão mal interpretada, da natureza inumana do escravo. Aristóteles, que sustentou tão explicitamente a sua teoria para depois, no leito de morte, alforriar seus escravos, talvez não fosse tão incoerente como tendem a pensar os modernos. Não negava que os escravos pudessem ser humanos; negava somente o emprego da palavra "homem" para designar membros da espécie humana totalmente sujeitos à necessidade).


As duas qualidades que, segundo Aristóteles, o escravo não possui – e é por causa desses defeitos que ele não é humano – são as faculdades de deliberar e decidir (to bouleutikon) e de prever e escolher (proairesis). Isto é, naturalmente, outra maneira de dizer que o escravo é sujeito à necessidade.

Não possuir lugar próprio e privado. Ser, contra a vontade, servo da necessidade; a verdade é que o emprego da palavra "animal" no conceito de animal laborans, ao contrário do outro uso, muito discutível, da mesma palavra na expressão animal rationale, é inteiramente justificado. O animal laborans é, realmente, apenas uma das espécies animais que vivem na terra – na melhor das hipóteses a mais desenvolvida.

Hannah Arendt – A Condição Humana



A Quinta História

Esta história poderia chamar-se As Estátuas. Outro nome possível é O Assassinato. E também Como Matar Baratas. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem.

A primeira, Como Matar Baratas, começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de dentro delas. Assim fiz. Morreram.

A outra história é a primeira mesmo e chama-se O Assassinato. Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão tranqüila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente, cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada. Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras, grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No morro um galo cantou.

A terceira história que ora se inicia é a das Estátuas. Começa dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora. Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! — essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te... Elas que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam. Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: "é que olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de..." — de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo. Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da história anterior canta o galo.

A quarta narrativa inaugura nova era no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila-indiana. Eu iria então renovar todas as noites o açúcar letal? como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? no vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia. Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude: "Esta casa foi dedetizada".

A quinta história chama-se Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia. Começa assim: queixei-me de baratas.

Clarice Lispector - A Legião Estrangeira - por indicação da Ju G.

Saturday, September 05, 2009

O Dia em que a Terra Parou. Mais um filme em que Keanu Reeves mostra como é possível tornar-se um astro a partir de uma expressão apenas. O indefectível quase-autômato de Keanu Reeves. Mais patético é o artifício criado pelos aliens para devastar o mundo humano na Terra: gafanhotos construídos por clonagem a partir de uma perfuratriz com broca de diamante! Praga do Egito, apocalipse, e um robozão de... silicone! Ê, Hollywood!

Meu criado mudo repleto de livros

Sobre Ética e Psicanálise - Maria Rita Kehl

5 Lições sobre a Teoria de Jacques Lacan - J. -D. Nasio

A Balada do Cárcere - Bruno Tolentino

Indignação - Philip Roth

A Eficácia Simbólica - Antropologia Estrutural - Claude Lévi-Strauss

Lacan - Vladimir Safatle

A Legião Estrangeira - Clarice Lispector

O Tempo e o cão - a atualidade das depressões - Maria Rita Kehl

não necessariamente nesta ordem

Norman Rockwell pinta, munido de técnica hiper realista, o homem ordinário, a gente comum. Há, no século XX este fascínio pelo homem comum. Descobriu-se a intranscendência do ser humano. O nada-além depois do fim. Para nós esta descoberta foi inicialmente sentida como um avanço. Sabemos hoje como é um pouco mais complicado que apenas avançar ou aceitar a finitude não transcender. E sabemos, com o máximo de clareza, como as experiências pré-modernas de ascensão já não nos servem mais. Impasse.

Há o entretenimento. A arte para se consumir. Para entrar por um ouvido e sair pelo outro. Para ocupar o tempo de folga. Meu criado mudo está repleto, como registro a seguir, de reflexões complexas sobre consumo, tempo, arte, verticalidade psico-social... o entretenimento não está nem aí para aquilo tudo.

E há o filme Uma Noite no Museu 2.

O personagem, ex-guarda noturno do Museu de História Natural de Nova York, agora, na sequência do primeiro filme, é dono de uma empresa de gadgets* e, milionário, não tem mais tempo para visitar os amigos "de cera" e vê-los ganhar vida todos os dias no museu, entre o pôr do sol e o amanhecer.

O museu está prestes a passar por reformas estruturais e os personagens históricos, então, são despachados, em definitivo, para o porão do Smithsonian em Washington.

Todo o filme é sobre o caminho de volta, da capital federal à Nova York e do reencontro com seu desejo por parte do personagem interpretado por Ben Stiller.

O desfecho traz o guarda de volta ao antigo posto, os "bonecos vivos" em exibições noturnas abertas ao público e um diálogo que revela que Larry Daley (Stiller) doou sua fortuna para a instituição mediante a garantia de que tudo nela seria mantido como antes.

A alegoria parece clara (e, muitas vezes já usada). O tempo dos antepassados é que confere realidade para os tempos atuais. Sem o solo seguro da tradição, as geringonças se sucedem sem criar significado. Um pequeno detalhe dá graça especial e específica ao final de Noite no Museu 2: todo o dinheiro do mundo não seria suficiente para substituir a vivência de estar entre personas - literalmente - mágicas noite após noite. O que, afinal e exatamente, o dinheiro proporciona? Se, de certa maneira, são momentos extraordinários, o que de mais extraordinário pode haver do que encontrar, assim que escurece, vivos e reunidos, os maiores indivíduos da história do mundo? Esta quase imperceptível manobra do roteiro confere verossimilhança à decisão de Daley. Não há qualquer imperativo moral, compromisso ou senso de dever. É muito mais divertido passar as noites no museu!

No mais, entretenimento. Que, por ser feito para entrar por um ouvido e sair pelo outro, desdiz a própria "mensagem" que pretende passar. Contraditório? Sem a menor dúvida, o que nos obriga a considerar que a hipótese inversa, a de que o filme não se resigna a ser mero entretenimento, é igualmente válida. Filmes claros, sem ambiguidades, ou seja, feitos de uma camada só, não são feitos em Hollywood. Costumam passar, às dúzias, nos cinemas de "reserva cultural" das grandes capitais. Quem quiser certezas, melhor não frequentar o shopping.

*Gadget (do Inglês: geringonça, dispositivo) é uma gíria tecnológica recente que se refere, genericamente, a um equipamento que tem um propósito e uma função específica, prática e útil no cotidiano.


Friday, September 04, 2009



Homecoming Marine

Thursday, September 03, 2009