Tuesday, October 27, 2009

[o produtor tinha como] ... missão salvar uma tripulação maluca de uma aterrissagem desastrosa no mundo de uma Lua que não existia*.

Ouvindo Estrelas: a luta, a ousadia e a glória de um dos maiores produtores musicais do Brasil - Marco Mazzola

* Rita Lee sobre o papel de Marco Mazzola na produção de seu primeiro disco pós-Mutantes, Atrás do Porto Tem Uma Cidade.


Sunday, October 25, 2009

turner

Onde as Ruas Não Têm Nome

Ganhador do "Nobel" da criminologia diz que violência se repete em poucos lugares das cidades e que polícias estão agindo de forma errada

MARCELO NINIO - DE JERUSALÉM

No combate ao crime, menos pode ser mais. Aplicada ao espaço das cidades, essa é a tese do professor David Weisburd, professor na Universidade de Jerusalém, que acaba de receber o Prêmio Estocolmo de 2010, considerado o mais importante do mundo na área de criminologia.

Duas décadas de pesquisas em cidades dos EUA levaram Weisburd à conclusão de que a grande maioria dos crimes ocorre em um número restrito de ruas.

Os dados já começam a influenciar a ação das polícias americanas, que passaram a concentrar suas patrulhas nos locais mais perigosos, deslocando esforços de áreas com menor incidência de crimes. Em entrevista à Folha, Weisburd explicou sua tese.


FOLHA - Por que o sr. decidiu concentrar suas pesquisas na ideia de espaço?

DAVID WEISBURD - Por muitos anos, a pesquisa na área de criminologia teve como foco entender por que as pessoas cometem crimes. Em meu trabalho, comecei a fazer perguntas diferentes: onde o crime ocorre? Por que ele ocorre ali?

São perguntas que me interessam por estar na interseção entre a pesquisa básica e a aplicação prática. Muito do meu trabalho se baseia no que podemos chamar de "lei da concentração" do crime. Estudo após estudo mostra que uma proporção muito grande do crime em uma cidade ocorre em um número relativamente pequeno de locais.

FOLHA - Bairros inteiros?

WEISBURD - Não. A visão tradicional era apontar comunidades "boas" e "más". Mas na minha pesquisa percebi que na maior parte das chamadas "más" comunidades praticamente não havia crime.

Mesmo nelas, na maioria das ruas as pessoas não estavam sendo mortas ou atacadas todos os dias. Em algumas áreas de Jersey City que pesquisei, a suposição geral era a de que toda a cidade era dominada pelo tráfico de drogas.

Eu me dei conta de que havia os pontos de venda, mas que, uma ou duas quadras adiante, a vizinhança era relativamente tranquila.

Em outro estudo que fiz em Seattle, analisei rua por rua as 30 mil quadras da cidade. Descobri que 50% do crime era restrito a 4% das quadras. O crime não estava em toda a parte, mas em locais muito específicos. E essa é uma estatística que se mantém há 16 anos, um bom exemplo do que eu chamo de "lei da concentração".

Um outro estudo em Minneapolis mostrou que 50% dos crimes ocorriam em apenas 3,5% da área da cidade. Ou seja, geralmente uma porcentagem muita pequena dos lugares produz a maior parte dos crimes.

O esquadrinhamento das ruas foi fundamental para chegar às conclusões, pois em muitos casos havia concentração do crime, mas não contínua.

Mesmo nas áreas de maior concentração urbana, onde havia mais "hot spots", a maioria dos casos que estudei mostra uma irregularidade: duas ruas boas eram seguidas de ruas "más".

Um outro estudo sobre criminalidade juvenil em Seattle mostrou que 86 das quadras, entre 30 mil, produziram um terço de todos os crimes.

FOLHA - Por que isso ocorre?

WEISBURD - Esses "hot spots" de delinquência juvenil estavam em poucas ruas, mas espalhados por toda a cidade - sobretudo perto de locais frequentados pelos jovens, como shoppings e escolas. Isso também se aplica aos crimes em geral. Crimes ocorrem onde há oportunidade.

O que meu estudo enfatiza é que há um número relativamente pequeno desses lugares e que o crime nesses lugares costuma manter-se estável.

Se sabemos que o crime é concentrado em um número limitado de lugares, que ele se mantém estável e que há certos motivos para ocorrer ali, a conclusão natural é a de que precisamos levar a polícia até eles, não à cidade inteira.

Para a polícia, o recado é simples: não desperdice suas patrulhas em todo lugar.

FOLHA - Concentrar a ação policial num ponto não provoca a migração do crime?

WEISBURD - Fiz estudos sobre isso, enfocando tráfico e prostituição, e descobri que o crime não se desloca facilmente. As ruas próximas não ficaram piores e o crime não migrou para outras áreas da cidade.

Há alguns motivos para não haver deslocamento. Criminosos atuam em certas regiões por um motivo. Traficantes de drogas, quando são cercados por policiais, não se mudam imediatamente, pois naquela área eles conhecem as pessoas, sabem quem vai denunciá-los ou não à polícia etc. É o lugar deles.

Crime, em grande medida, é como qualquer outro trabalho. As pessoas trabalham onde é mais cômodo.

FOLHA - Como o policiamento concentrado se aplicaria a um ambiente como o Rio, onde os pontos de tráfico estão espalhados pela cidade?

WEISBURD - O espaço tem que ser o foco. Em São Paulo e no Rio, há milhares de ruas, não dá para patrulhar a cidade inteira com a mesma eficiência. O sucesso depende de como a polícia faz o seu trabalho.

A primeira coisa é fazer um mapeamento para saber onde estão os "hot spots", e por que motivo.

Também é importante falar com os moradores, criar uma sensação de cumplicidade. A polícia não pode ser vista como uma força de ocupação, mas como parte da comunidade. A legitimidade da ação policial é um elemento crítico para o seu sucesso.


A Guerra do Rio é Uma Metáfora Cavilosa

ELIO GASPARI

Uma cidade não pode ser transformada num cenário de prorrogação de um filme

O Rio ganhou um novo problema, a blindagem dos helicópteros da polícia. (E por que só os da polícia?) Os três jovens mortos na entrada do morro dos Macacos são uma nota de pé de página. Três dias de desordens nas estações da Supervia já são coisa do passado. De uma hora para outra, o carioca sente-se num cenário de Tropa de Elite.

Primeiro, ele parou de caminhar pelas ruas do bairro depois do jantar. Um país com a taxa de fecundidade de 6,3 filhos por casal não podia ir para a frente. Depois, faz tempo, surgiram as grades nos jardins do recuo dos edifícios. Do Leblon ao Leme há algo como 10 mil metros de calçadas gradeadas, mas não poderia ser diferente: nessa época a população favelada do Rio dobrara de 335 mil pessoas para 722 mil.

Isso acontecia numa cidade em que, até 1983, pareceu irrelevante o fato de os ônibus não passarem pelo túnel Rebouças, inaugurado em 1966. Parecia natural que a choldra da zona norte não tivesse acesso fácil a Copacabana e Ipanema.

Na virada do século foi preciso blindar o carro. Pensando bem, era uma impropriedade estatística. A taxa de fecundidade das brasileiras caíra para 2,9 filhos por casal. Estavam nascendo menos pobres, portanto, não fazia sentido que a população favelada chegasse a 722 mil almas, quase 15% da população da cidade.

Aos perigos e transtornos impostos ao carioca somou-se a cenografia de uma guerra. A crise da segurança pública do Rio não é uma guerra. Pode ser pior, mas não é guerra. Os quatro anos da ocupação alemã em Paris foram menos cruentos que quaisquer quatro anos do Rio, desde 1980. A ideia de uma guerra pressupõe um inimigo perfeitamente identificado e a disposição de se utilizar todas as forças disponíveis para submetê-lo. Guerra pressupõe tentar devolver o Vietnã do Norte à Idade da Pedra.

Não há guerra no Rio, o que há é uma metáfora de conveniência. Ela cria o cenário da emergência, mas não pode dar o passo seguinte, que seria o reconhecimento de que uma parte da cidade está em guerra com outra, como aconteceu na Argélia, ou na África do Sul da fase mais agressiva do "apartheid".

Esse passo não é dado porque, apesar dos surtos demofóbicos, a sociedade brasileira nunca se associou a um projeto desse tipo. Colocando a coisa de outro modo: o pedaço da sociedade que seria capaz de apoiar uma política de violência segregacionista levando-a a consequências extremas, ainda não tem coragem para vocalizar suas propostas e não haverá de tê-la nos próximos anos. Pensar que essa linha de pensamento não existe é colocar a ingenuidade a serviço das boas maneiras.

A metáfora da guerra não define o inimigo mas, cavilosamente, deixa-o subentendido. Ele está na favela ("fábrica de marginais", na definição do governador Sérgio Cabral). Essa guerra sem inimigo produz cenários, cenas de batalha, vítimas e juras de vingança, nada mais. Tudo fica parecido com Tropa de Elite. Uma metáfora pode sustentar um filme, mas não resolve as questões da segurança de uma cidade.

Se o clima de guerra sair da agenda do Rio, não há qualquer garantia de que as coisas melhorem, mas pelo menos será retirada a cortina de fantasia que mascara políticas públicas fracassadas.

Friday, October 23, 2009

Meu criado mudo repleto de livros

O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição - Theodor W. Adorno

Contos (Marchen, 1955) - Hermann Hesse - Tradução: Angelina Peralva

Contos de Perrault - Charles Perrault - Introdução de P. J. Stahl e Ilustrações de Gustave Doré - Tradução: Regina Regis Junqueira

Parâmetros Curriculares Nacionais - Documento Introdutório - MEC

O Filantropo - Rodrigo Naves

Saturday, October 17, 2009

Robin
Fran Papaterra

Deitado aqui neste divã eu lembro muito bem
De um ritual, um ser satânico, animal
Que, bem ou mal, me fez refém
Sons, assombrações, penumbra
Batmacumba, o tempo ecoa
Sombra de um mamífero que voa

Será pecado ou tudo bem, o bem que vence o mal
Que foi que eu fiz, será que eu posso ser feliz
Quem é que diz o que é normal?
Cai a máscara e eis que surge
O dúbio, a dúvida, a verdade
As diversas faces da amizade

O tempo vem lento e vai veloz
No teto a memória intacta
Saiba que eu passei por maus lençóis
Dentro da caverna escura só nós dois
Ai, que dura é a vida dos heróis!
Ai, que dura é a vida dos heróis!

Monday, October 12, 2009

J. D. Salinger
For Esmé - with Love and Squalor
The New Yorker, April 8, 1950, pages 28-36

JUST RECENTLY, by air mail, I received an invitation to a wedding that will take place in England on April 18th. It happens to be a wedding I'd give a lot to be able to get to, and when the invitation first arrived, I thought it might just be possible for me to make the trip abroad, by plane, expenses be hanged. However, I've since discussed the matter rather extensively with my wife, a breathtakingly levelheaded girl, and we've decided against it--for one thing, I'd completely forgotten that my mother-in-law is looking forward to spending the last two weeks in April with us. I really don't get to see Mother Grencher terribly often, and she's not getting any younger. She's fifty-eight. (As she'd be the first to admit.)

All the same, though, wherever I happen to be I don't think I'm the type that doesn't even lift a finger to prevent a wedding from flatting. Accordingly, I've gone ahead and jotted down a few revealing notes on the bride as I knew her almost six years ago. If my notes should cause the groom, whom I haven't met, an uneasy moment or two, so much the better. Nobody's aiming to please, here. More, really, to edify, to instruct.

In April of 1944, I was among some sixty American enlisted men who took a rather specialized pre-Invasion training course, directed by British Intelligence, in Devon, England. And as I look back, it seems to me that we were fairly unique, the sixty of us, in that there wasn't one good mixer in the bunch. We were all essentially letter-writing types, and when we spoke to each other out of the line of duty, it was usually to ask somebody if he had any ink he wasn't using. When we weren't writing letters or attending classes, each of us went pretty much his own way. Mine usually led me, on clear days, in scenic circles around the countryside. Rainy days, I generally sat in a dry place and read a book, often just an axe length away from a ping-pong table.

The training course lasted three weeks, ending on a Saturday, a very rainy one. At seven that last night, our whole group was scheduled to entrain for London, where, as rumor had it, we were to be assigned to infantry and airborne divisions mustered for the D Day landings. By three in the afternoon, I'd packed all my belongings into my barrack bag, including a canvas gas-mask container full of books I'd brought over from the Other Side. (The gas mask itself I'd slipped through a porthole of the Mauretania some weeks earlier, fully aware that if the enemy ever did use gas I'd never get the damn thing on in time.) I remember standing at an end window of our Quonset but for a very long time, looking out at the slanting, dreary rain, my trigger finger itching imperceptibly, if at all. I could hear behind my back the uncomradely scratching of many fountain pens on many sheets of V-mail paper. Abruptly, with nothing special in mind, I came away from the window and put on my raincoat, cashmere muffler, galoshes, woollen gloves, and overseas cap (the last of which, I'm still told, I wore at an angle all my own--slightly down over both ears). Then, after synchronizing my wristwatch with the clock in the latrine, I walked down the long, wet cobblestone hill into town. I ignored the flashes of lightning all around me. They either had your number on them or they didn't.

In the center of town, which was probably the wettest part of town, I stopped in front of a church to read the bulletin board, mostly because the featured numerals, white on black, had caught my attention but partly because, after three years in the Army, I'd become addicted to reading bulletin boards. At three-fifteen, the board stated, there would be children's-choir practice. I looked at my wristwatch, then back at the board. A sheet of paper was tacked up, listing the names of the children expected to attend practice. I stood in the rain and read all the names, then entered the church.

A dozen or so adults were among the pews, several of them bearing pairs of small-size rubbers, soles up, in their laps. I passed along and sat down in the front row. On the rostrum, seated in three compact rows of auditorium chairs, were about twenty children, mostly girls, ranging in age from about seven to thirteen. At the moment, their choir coach, an enormous woman in tweeds, was advising them to open their mouths wider when they sang. Had anyone, she asked, ever heard of a little dickeybird that dared to sing his charming song without first opening his little beak wide, wide, wide? Apparently nobody ever had. She was given a steady, opaque look. She went on to say that she wanted all her children to absorb the meaning of the words they sang, not just mouth them, like silly-billy parrots. She then blew a note on her pitch-pipe, and the children, like so many underage weightlifters, raised their hymnbooks.

They sang without instrumental accompaniment--or, more accurately in their case, without any interference. Their voices were melodious and unsentimental, almost to the point where a somewhat more denominational man than myself might, without straining, have experienced levitation. A couple of the very youngest children dragged the tempo a trifle, but in a way that only the composer's mother could have found fault with. I had never heard the hymn, but I kept hoping it was one with a dozen or more verses. Listening, I scanned all the children's faces but watched one in particular, that of the child nearest me, on the end seat in the first row. She was about thirteen, with straight ash-blond hair of ear-lobe length, an exquisite forehead, and blase eyes that, I thought, might very possibly have counted the house. Her voice was distinctly separate from the other children's voices, and not just because she was seated nearest me. It had the best upper register, the sweetest-sounding, the surest, and it automatically led the way. The young lady, however, seemed slightly bored with her own singing ability, or perhaps just with the time and place; twice, between verses, I saw her yawn. It was a ladylike yawn, a closed-mouth yawn, but you couldn't miss it; her nostril wings gave her away.

The instant the hymn ended, the choir coach began to give her lengthy opinion of people who can't keep their feet still and their lips sealed tight during the minister's sermon. I gathered that the singing part of the rehearsal was over, and before the coach's dissonant speaking voice could entirely break the spell the children's singing had cast, I got up and left the church.

It was raining even harder. I walked down the street and looked through the window of the Red Cross recreation room, but soldiers were standing two and three deep at the coffee counter, and, even through the glass, I could hear ping-pong balls bouncing in another room. I crossed the street and entered a civilian tearoom, which was empty except for a middle-aged waitress, who looked as if she would have preferred a customer with a dry raincoat. I used a coat tree as delicately as possible, and then sat down at a table and ordered tea and cinnamon toast. It was the first time all day that I'd spoken to anyone. I then looked through all my pockets, including my raincoat, and finally found a couple of stale letters to reread, one from my wife, telling me how the service at Schrafft's Eighty-eighth Street had fallen off, and one from my mother-in-law, asking me to please send her some cashmere yarn first chance I got away from "camp."

While I was still on my first cup of tea, the young lady I had been watching and listening to in the choir came into the tearoom. Her hair was soaking wet, and the rims of both ears were showing. She was with a very small boy, unmistakably her brother, whose cap she removed by lifting it off his head with two fingers, as if it were a laboratory specimen. Bringing up the rear was an efficient-looking woman in a limp felt hat--presumably their governess. The choir member, taking off her coat as she walked across the floor, made the table selection--a good one, from my point of view, as it was just eight or ten feet directly in front of me. She and the governess sat down. The small boy, who was about five, wasn't ready to sit down yet. He slid out of and discarded his reefer; then, with the deadpan expression of a born heller, he methodically went about annoying his governess by pushing in and pulling out his chair several times, watching her face. The governess, keeping her voice down, gave him two or three orders to sit down and, in effect, stop the monkey business, but it was only when his sister spoke to him that he came around and applied the small of his back to his chair seat. He immediately picked up his napkin and put it on his head. His sister removed it, opened it, and spread it out on his lap.

About the time their tea was brought, the choir member caught me staring over at her party. She stared back at me, with those house-counting eyes of hers, then, abruptly, gave me a small, qualified smile. It was oddly radiant, as certain small, qualified smiles sometimes are. I smiled back, much less radiantly, keeping my upper lip down over a coal-black G.I. temporary filling showing between two of my front teeth. The next thing I knew, the young lady was standing, with enviable poise, beside my table. She was wearing a tartan dress--a Campbell tartan, I believe. It seemed to me to be a wonderful dress for a very young girl to be wearing on a rainy, rainy day. "I thought Americans despised tea," she said.

It wasn't the observation of a smart aleck but that of a truth-lover or a statistics-lover. I replied that some of us never drank anything but tea. I asked her if she'd care to join me.

"Thank you," she said. "Perhaps for just a fraction of a moment."

I got up and drew a chair for her, the one opposite me, and she sat down on the forward quarter of it, keeping her spine easily and beautifully straight. I went back--almost hurried back--to my own chair, more than willing to hold up my end of a conversation. When I was seated, I couldn't think of anything to say, though. I smiled again, still keeping my coal-black filling under concealment. I remarked that it was certainly a terrible day out.

"Yes; quite," said my guest, in the clear, unmistakable voice of a small-talk detester. She placed her fingers flat on the table edge, like someone at a seance, then, almost instantly, closed her hands--her nails were bitten down to the quick. She was wearing a wristwatch, a military-looking one that looked rather like a navigator's chronograph. Its face was much too large for her slender wrist. "You were at choir practice," she said matter-of-factly. "I saw you."

I said I certainly had been, and that I had heard her voice singing separately from the others. I said I thought she had a very fine voice.

She nodded. "I know. I'm going to be a professional singer."

"Really? Opera?"

"Heavens, no. I'm going to sing jazz on the radio and make heaps of money. Then, when I'm thirty, I shall retire and live on a ranch in Ohio." She touched the top of her soaking-wet head with the flat of her hand. "Do you know Ohio?" she asked.

I said I'd been through it on the train a few times but that I didn't really know it. I offered her a piece of cinnamon toast.

"No, thank you," she said. "I eat like a bird, actually."

I bit into a piece of toast myself, and commented that there's some mighty rough country around Ohio. "I know. An American I met told me. You're the eleventh American I've met."

Her governess was now urgently signalling her to return to her own table--in effect, to stop bothering the man. My guest, however, calmly moved her chair an inch or two so that her back broke all possible further communication with the home table. "You go to that secret Intelligence school on the hill, don't you?" she inquired coolly.

As security-minded as the next one, I replied that I was visiting Devonshire for my health.

"Really," she said, "I wasn't quite bom yesterday, you know."

I said I'd bet she hadn't been, at that. I drank my tea for a moment. I was getting a trifle posture-conscious and I sat up somewhat straighter in my seat.

"You seem quite intelligent for an American," my guest mused.

I told her that was a pretty snobbish thing to say, if you thought about it at all, and that I hoped it was unworthy of her.

She blushed-automatically conferring on me the social poise I'd been missing. "Well. Most of the Americans I've seen act like animals. They're forever punching one another about, and insulting everyone, and--You know what one of them did?"

I shook my haad.

"One of them threw an empty whiskey bottle through my aunt's window. Fortunately, the window was open. But does that sound very intelligent to you?"

It didn't especially, but I didn't say so. I said that many soldiers, all over the world, were a long way from home, and that few of them had had many real advantages in life. I said I'd thought that most people could figure that out for themselves.

"Possibly," said my guest, without conviction. She raised her hand to her wet head again, picked at a few limp filaments of blond hair, trying to cover her exposed ear rims. "My hair is soaking wet," she said. "I look a fright." She looked over at me. "I have quite wavy hair when it's dry."

"I can see that, I can see you have."

"Not actually curly, but quite wavy," she said. "Are you married?"

I said I was.

She nodded. "Are you very deeply in love with your wife? Or am I being too personal?"

I said that when she was, I'd speak up.

She put her hands and wrists farther forward on the table, and I remember wanting to do something about that enormous-faced wristwatch she was wearing--perhaps suggest that she try wearing it around her waist.

"Usually, I'm not terribly gregarious," she said, and looked over at me to see if I knew the meaning of the word. I didn't give her a sign, though, one way or the other. "I purely came over because I thought you looked extremely lonely. You have an extremely sensitive face."

I said she was right, that I had been feeling lonely, and that I was very glad she'd come over.

"I'm training myself to be more compassionate. My aunt says I'm a terribly cold person," she said and felt the top of her head again. "I live with my aunt. She's an extremely kind person. Since the death of my mother, she's done everything within her power to make Charles and me feel adjusted."

"I'm glad."

"Mother was an extremely intelligent person. Quite sensuous, in many ways." She looked at me with a kind of fresh acuteness. "Do you find me terribly cold?"

I told her absolutely not--very much to the contrary, in fact. I told her my name and asked for hers. She hesitated. "My first name is Esme. I don't think I shall tell you my full name, for the moment. I have a title and you may just be impressed by titles. Americans are, you know."

I said I didn't think I would be, but that it might be a good idea, at that, to hold on to the title for a while.

Just then, I felt someone's warm breath on the back of my neck. I turned around and just missed brushing noses with Esme's small brother. Ignoring me, he addressed his sister in a piercing treble: "Miss Megley said you must come and finish your tea!" His message delivered, he retired to the chair between his sister and me, on my right. I regarded him with high interest. He was looking very splendid in brown Shetland shorts, a navy-blue jersey, white shirt, and striped necktie. He gazed back at me with immense green eyes. "Why do people in films kiss sideways?" he demanded.

"Sideways?" I said. It was a problem that had baffled me in my childhood. I said I guessed it was because actors' noses are too big for kissing anyone head on.

"His name is Charles," Esme said. "He's extremely brilliant for his age."

"He certainly has green eyes. Haven't you, Charles?" Charles gave me the fishy look my question deserved, then wriggled downward and forward in his chair till all of his body was under the table except his head, which he left, wrestler's-bridge style, on the chair seat. "They're orange," he said in a strained voice, addressing the ceiling. He picked up a comer of the tablecloth and put it over his handsome, deadpan little face.

"Sometimes he's brilliant and sometimes he's not," Esme said. "Charles, do sit up!"

Charles stayed right where he was. He seemed to be holding his breath.

"He misses our father very much. He was s-l-a-i-n in North Africa."

I expressed regret to hear it.

Esme nodded. "Father adored him." She bit reflectively at the cuticle of her thumb. "He looks very much like my mother--Charles, I mean. I look exactly like my father." She went on biting at her cuticle. "My mother was quite a passionate woman. She was an extrovert. Father was an introvert. They were quite well mated, though, in a superficial way. To be quite candid, Father really needed more of an intellectual companion than Mother was. He was an extremely gifted genius."

I waited, receptively, for further information, but none came. I looked down at Charles, who was now resting the side of his face on his chair seat. When he saw that I was looking at him, he closed his eyes, sleepily, angelically, then stuck out his tongue--an appendage of startling length--and gave out what in my country would have been a glorious tribute to a myopic baseball umpire. It fairly shook the tearoom.

"Stop that," Esme said, clearly unshaken. "He saw an American do it in a fish-and-chips queue, and now he does it whenever he's bored. Just stop it, now, or I shall send you directly to Miss Megley."

Charles opened his enormous eyes, as sign that he'd heard his sister's threat, but otherwise didn't look especially alerted. He closed his eyes again, and continued to rest the side of his face on the chair seat.

I mentioned that maybe he ought to save it--meaning the Bronx cheer--till he started using his title regularly. That is, if he had a title, too.

Esme gave me a long, faintly clinical look. "You have a dry sense of humor, haven't you?" she said--wistfully. "Father said I have no sense of humor at all. He said I was unequipped to meet life because I have no sense of humor."

Watching her, I lit a cigarette and said I didn't think a sense of humor was of any use in a real pinch.

"Father said it was."

This was a statement of faith, not a contradiction, and I quickly switched horses. I nodded and said her father had probably taken the long view, while I was taking the short (whatever that meant).

"Charles misses him exceedingly," Esme said, after a moment. "He was an exceedingly lovable man. He was extremely handsome, too. Not that one's appearance matters greatly, but he was. He had terribly penetrating eyes, for a man who was intransically kind."

I nodded. I said I imagined her father had had quite an extraordinary vocabulary.

"Oh, yes; quite," said Esme. "He was an archivist--amateur, of course."

At that point, I felt an importunate tap, almost a punch, on my upper arm, from Charles' direction. I turned to him. He was sitting in a fairly normal position in his chair now, except that he had one knee tucked under him. "What did one wall say to the other wall?" he asked shrilly. "It's a riddle!"

I rolled my eyes reflectively ceilingward and repeated the question aloud. Then I looked at Charles with a stumped expression and said I gave up.

"Meet you at the corner!" came the punch line, at top volume.

It went over biggest with Charles himself. It struck him as unbearably funny. In fact, Esme had to come around and pound him on the back, as if treating him for a coughing spell. "Now, stop that," she said. She went back to her own seat. "He tells that same riddle to everyone he meets and has a fit every single time. Usually he drools when he laughs. Now, just stop, please."

"It's one of the best riddles I've heard, though," I said, watching Charles, who was very gradually coming out of it. In response to this compliment, he sank considerably lower in his chair and again masked his face up to the eyes with a corner of the tablecloth. He then looked at me with his exposed eyes, which were full of slowly subsiding mirth and the pride of someone who knows a really good riddle or two.

"May I inquire how you were employed before entering the Army?" Esme asked me.

I said I hadn't been employed at all, that I'd only been out of college a year but that I like to think of myself as a professional short-story writer.

She nodded politely. "Published?" she asked.

It was a familiar but always touchy question, and one that I didn't answer just one, two, three. I started to explain how most editors in America were a bunch--

"My father wrote beautifully," Esme interrupted. "I'm saving a number of his letters for posterity."

I said that sounded like a very good idea. I happened to be looking at her enormous-faced, chronographic-looking wristwatch again. I asked if it had belonged to her father.

She looked down at her wrist solemnly. "Yes, it did," she said. "He gave it to me just before Charles and I were evacuated." Self-consciously, she took her hands off the table, saying, "Purely as a momento, of course." She guided the conversation in a different direction. "I'd be extremely flattered if you'd write a story exclusively for me sometime. I'm an avid reader."

I told her I certainly would, if I could. I said that I wasn't terribly prolific.

"It doesn't have to be terribly prolific! Just so that it isn't childish and silly." She reflected. "I prefer stories about squalor."

"About what?" I said, leaning forward. "Squalor. I'm extremely interested in squalor."

I was about to press her for more details, but I felt Charles pinching me, hard, on my arm. I turned to him, wincing slightly. He was standing right next to me. "What did one wall say to the other wall?" he asked, not unfamiliarly.

"You asked him that," Esme said. "Now, stop it."

Ignoring his sister, and stepping up on one of my feet, Charles repeated the key question. I noticed that his necktie knot wasn't adjusted properly. I slid it up into place, then, looking him straight in the eye, suggested, "Meetcha at the corner?"

The instant I'd said it, I wished I hadn't. Charles' mouth fell open. I felt as if I'd struck it open. He stepped down off my foot and, with white-hot dignity, walked over to his own table, without looking back.

"He's furious," Esme said. "He has a violent temper. My mother had a propensity to spoil him. My father was the only one who didn't spoil him."

I kept looking over at Charles, who had sat down and started to drink his tea, using both hands on the cup. I hoped he'd turn around, but he didn't.

Esme stood up. `Il faut que je parte aussi," she said, with a sigh. "Do you know French?"

I got up from my own chair, with mixed feelings of regret and confusion. Esme and I shook hands; her hand, as I'd suspected, was a nervous hand, damp at the palm. I told her, in English, how very much I'd enjoyed her company.

She nodded. "I thought you might," she said. "I'm quite communicative for my age." She gave her hair another experimental touch. "I'm dreadfully sorry about my hair," she said. "I've probably been hideous to look at."

"Not at all! As a matter of fact, I think a lot of the wave is coming back already."

She quickly touched her hair again. "Do you think you'll be coming here again in the immediate future?" she asked. "We come here every Saturday, after choir practice."

I answered that I'd like nothing better but that, unfortunately, I was pretty sure I wouldn't be able to make it again.

"In other words, you can't discuss troop movements," said Esme. She made no move to leave the vicinity of the table. In fact, she crossed one foot over the other and, looking down, aligned the toes of her shoes. It was a pretty little execution, for she was wearing white socks and her ankles and feet were lovely. She looked up at me abruptly. "Would you like me to write to you?" she asked, with a certain amount of color in her face. "I write extremely articulate letters for a person my--"

"I'd love it." I took out pencil and paper and wrote down my name, rank, serial number, and A.P.O. number.

"I shall write to you first," she said, accepting it, "so that you don't feel compromised in any way." She put the address into a pocket of her dress. "Goodbye," she said, and walked back to her table.

I ordered another pot of tea and sat watching the two of them till they, and the harassed Miss Megley, got up to leave. Charles led the way out, limping tragically, like a man with one leg several, inches shorter than the other. He didn't look over at me. Miss Megley went next, then Esme, who waved to me. I waved back, half getting up from my chair. It was a strangely emotional moment for me.

Less than a minute later, Esme came back into the tearoom, dragging Charles behind her by the sleeve of his reefer. "Charles would like to kiss you goodbye," she said.

I immediately put down my cup, and said that was very nice, but was she sure?

"Yes," she said, a trifle grimly. She let go Charles' sleeve and gave him a rather vigorous push in my direction. He came forward, his face livid, and gave me a loud, wet smacker just below the right ear. Following this ordeal, he started to make a beeline for the door and a less sentimental way of life, but 1 caught the half belt at the back of his reefer, held on to it, and asked him, "What did one wall say to the other wall?"

His face lit up. "Meet you at the corner!" he shrieked, and raced out of the room, possibly in hysterics.

Esme was standing with crossed ankles again. "You're quite sure you won't forget to write that story for me?" she asked. "It doesn't have to be exclusively for me. It can--"

I said there was absolutely no chance that I'd forget. I told her that I'd never written a story for anybody, but that it seemed like exactly the right time to get down to it.

She nodded. "Make it extremely squalid and moving," she suggested. "Are you at all acquainted with squalor?"

I said not exactly but that I was getting better acquainted with it, in one form or another, all the time, and that I'd do my best to come up to her specifications. We shook hands.

"Isn't it a pity that we didn't meet under less extenuating circumstances?"

I said it was, I said it certainly was.

"Goodbye," Esme said. "I hope you return from the war with all your faculties intact."

I thanked her, and said a few other words, and then watched her leave the tearoom. She left it slowly, reflectively, testing the ends of her hair for dryness.

This is the squalid, or moving, part of the story, and the scene changes. The people change, too. I'm still around, but from here on in, for reasons I'm not at liberty to disclose, I've disguised myself so cunningly that even the cleverest reader will fail to recognize me.

It was about ten-thirty at night in Gaufurt, Bavaria, several weeks after V-E Day. Staff Sergeant X was in his room on the second floor of the civilian home in which he and nine other American soldiers had been quartered, even before the armistice. He was seated on a folding wooden chair at a small, messy-looking writing table, with a paperback overseas novel open before him, which he was having great trouble reading. The trouble lay with him, not the novel. Although the men who lived on the first floor usually had first grab at the books sent each month by Special Services, X usually seemed to be left with the book he might have selected himself. But he was a young man who had not come through the war with all his faculties intact, and for more than an hour he had been triple-reading paragraphs, and now he was doing it to the sentences. He suddenly closed the book, without marking his place. With his hand, he shielded his eyes for a moment against the harsh, watty glare from the naked bulb over the table.

He took a cigarette from a pack on the table and lit it with fingers that bumped gently and incessantly against one another. He sat back a trifle in his chair and smoked without any sense of taste. He had been chain-smoking for weeks. His gums bled at the slightest pressure of the tip of his tongue, and he seldom stopped experimenting; it was a little game he played, sometimes by the hour. He sat for a moment smoking and experimenting. Then, abruptly, familiarly, and, as usual, with no warning, he thought he felt his mind dislodge itself and teeter, like insecure luggage on an overhead rack. He quickly did what he had been doing for weeks to set things right: he pressed his hands hard against his temples. He held on tight for a moment. His hair needed cutting, and it was dirty. He had washed it three or four times during his two weeks' stay at the hospital in Frankfort on the Main, but it had got dirty again on the long, dusty jeep ride back to Gaufurt. Corporal Z, who had called for him at the hospital, still drove a jeep combat-style, with the windshield down on the hood, armistice or no armistice. There were thousands of new troops in Germany. By driving with his windshield down, combat-style, Corporal Z hoped to show that he was not one of them, that not by a long shot was he some new son of a bitch in the E.T.O.

When he let go of his head, X began to stare at the surface of the writing table, which was a catchall for at least two dozen unopened letters and at least five or six unopened packages, all addressed to him. He reached behind the debris and picked out a book that stood against the wall. It was a book by Goebbels, entitled "Die Zeit Ohne Beispiel." It belonged to the thirty-eight-year-old, unmarried daughter of the family that, up to a few weeks earlier, had been living in the house. She had been a low official in the Nazi Party, but high enough, by Army Regulations standards, to fall into an automatic-arrest category. X himself had arrested her. Now, for the third time since he had returned from the hospital that day, he opened the woman's book and read the brief inscription on the flyleaf. Written in ink, in German, in a small, hopelessly sincere handwriting, were the words "Dear God, life is hell." Nothing led up to or away from it. Alone on the page, and in the sickly stillness of the room, the words appeared to have the stature of an uncontestable, even classic indictment. X stared at the page for several minutes, trying, against heavy odds, not to be taken in. Then, with far more zeal than he had done anything in weeks, he picked up a pencil stub and wrote down under the inscription, in English, "Fathers and teachers, I ponder `What is hell?' I maintain that it is the suffering of being unable to love." He started to write Dostoevski's name under the inscription, but saw--with fright that ran through his whole body--that what he had written was almost entirely illegible. He shut the book.

He quickly picked up something else from the table, a letter from his older brother in Albany. It had been on his table even before he had checked into the hospital. He opened the envelope, loosely resolved to read the letter straight through, but read only the top half of the first page. He stopped after the words "Now that the g.d. war is over and you probably have a lot of time over there, how about sending the kids a couple of bayonets or swastikas . . ." After he'd torn it up, he looked down at the pieces as they lay in the wastebasket. He saw that he had overlooked an enclosed snapshot. He could make out somebody's feet standing on a lawn somewhere.

He put his arms on the table and rested his head on them. He ached from head to foot, all zones of pain seemingly interdependent. He was rather like a Christmas tree whose lights, wired in series, must all go out if even one bulb is defective.

The door banged open, without having been rapped on. X raised his head, turned it, and saw Corporal Z standing in the door. Corporal Z had been X's jeep partner and constant companion from D Day straight through five campaigns of the war. He lived on the first floor and he usually came up to see X when he had a few rumors or gripes to unload. He was a huge, photogenic young man of twenty-four. During the war, a national magazine had photographed him in Hurtgen Forest; he had posed, more than just obligingly, with a Thanksgiving turkey in each hand. "Ya writin' letters?" he asked X. "It's spooky in here, for Chrissake." He preferred always to enter a room that had the overhead light on.

X turned around in his chair and asked him to come in, and to be careful not to step on the dog.

"The what?"

"Alvin. He's right under your feet, Clay. How 'bout turning on the goddam light?"

Clay found the overhead-light switch, flicked it on, then stepped across the puny, servant's-size room and sat down on the edge of the bed, facing his host. His brick-red hair, just combed, was dripping with the amount of water he required for satisfactory grooming. A comb with a fountain-pen clip protruded, familiarly, from the right-hand pocket of his olive-drab shirt. Over the left-hand pocket he was wearing the Combat Infantrymen's Badge (which, technically, he wasn't authorized to wear), the European Theatre ribbon, with five bronze battle stars in it (instead of a lone silver one, which was the equivalent of five bronze ones), and the pre-Pearl Harbor service ribbon. He sighed heavily and said, "Christ almighty." It meant nothing; it was Army. He took a pack of cigarettes from his shirt pocket, tapped one out, then put away the pack and rebuttoned the pocket flap. Smoking, he looked vacuously around the room. His look finally settled on the radio. "Hey," he said. "They got this terrific show comin' on the radio in a coupla minutes. Bob Hope, and everybody."

X, opening a fresh pack of cigarettes, said he had just turned the radio off.

Undarkened, Clay watched X trying to get a cigarette lit. "Jesus," he said, with spectator's enthusiasm, "you oughta see your goddam hands. Boy, have you got the shakes. Ya know that?"

X got his cigarette lit, nodded, and said Clay had a real eye for detail.

"No kidding, hey. I goddam near fainted when I saw you at the hospital. You looked like a goddam corpse. How much weight ya lose? How many pounds? Ya know?"

"I don't know. How was your mail when I was gone? You heard from Loretta?"

Loretta was Clay's girl. They intended to get married at their earliest convenience. She wrote to him fairly regularly, from a paradise of triple exclamation points and inaccurate observations. All through the war, Clay had read all Loretta's letters aloud to X, however intimate they were--in fact, the more intimate, the better. It was his custom, after each reading, to ask X to plot out or pad out the letter of reply, or to insert a few impressive words in French or German.

"Yeah, I had a letter from her yesterday. Down in my room. Show it to ya later," Clay said, listlessly. He sat up straight on the edge of the bed, held his breath, and issued a long, resonant belch. Looking just semi-pleased with the achievement, he relaxed again. "Her goddam brother's gettin' outa the Navy on account of his hip," he said. "He's got this hip, the bastard." He sat up again and tried for another belch, but with below-par results. A jot of alertness came into his face. "Hey. Before I forget. We gotta get up at five tomorrow and drive to Hamburg or someplace. Pick up Eisenhower jackets for the whole detachment."

X, regarding him hostilely, stated that he didn't want an Eisenhower jacket.

Clay looked surprised, almost a trifle hurt. "Oh, they're good! They look good. How come?"

"No reason. Why do we have to get up at five? The war's over, for God's sake."

"I don't know--we gotta get back before lunch. They got some new forms in we gotta fill out before lunch.... I asked Bulling how come we couldn't fill 'em out tonight--he's got the goddam forms right on his desk. He don't want to open the envelopes yet, the son of a bitch."

The two sat quiet for a moment, hating Bulling. Clay suddenly looked at X with new-higher-interest than before. "Hey," he said. "Did you know the goddam side of your face is jumping all over the place?"

X said he knew all about it, and covered his tic with his hand.

Clay stared at him for a moment, then said, rather vividly, as if he were the bearer of exceptionally good news, "I wrote Loretta you had a nervous breakdown."

"Oh?"

"Yeah. She's interested as hell in all that stuff. She's majoring in psychology." Clay stretched himself out on the bed, shoes included. "You know what she said? She says nobody gets a nervous breakdown just from the war and all. She says you probably were unstable like, your whole goddam life."

X bridged his hands over his eyes--the light over the bed seemed to be blinding him--and said that Loretta's insight into things was always a joy.

Clay glanced over at him. "Listen, ya bastard," he said. "She knows a goddam sight more psychology than you do."

"Do you think you can bring yourself to take your stinking feet off my bed?" X asked.

Clay left his feet where they were for a few don't-tell-me-where-to-put-my-feet seconds, then swung them around to the floor and sat up. "I'm goin' downstairs anyway. They got the radio on in Walker's room." He didn't get up from the bed, though. "Hey. I was just tellin' that new son of a bitch, Bernstein, downstairs. Remember that time I and you drove into Valognes, and we got shelled for about two goddam hours, and that goddam cat I shot that jumped up on the hood of the jeep when we were layin' in that hole? Remember?"

"Yes--don't start that business with that cat again, Clay, God damn it. I don't want to hear about it."

"No, all I mean is I wrote Loretta about it. She and the whole psychology class discussed it. In class and all. The goddam professor and everybody."

"That's fine. I don't want to hear about it, Clay."

"No, you know the reason I took a pot shot at it, Loretta says? She says I was temporarily insane. No kidding. From the shelling and all."

X threaded his fingers, once, through his dirty hair, then shielded his eyes against the light again. "You weren't insane. You were simply doing your duty. You killed that pussycat in as manly a way as anybody could've under the circumstances."

Clay looked at him suspiciously. "What the hell are you talkin' about?"

"That cat was a spy. You had to take a pot shot at it. It was a very clever German midget dressed up in a cheap fur coat. So there was absolutely nothing brutal, or cruel, or dirty, or even--"

"God damn it!" Clay said, his lips thinned. "Can't you ever be sincere?"

X suddenly felt sick, and he swung around in his chair and grabbed the wastebasket--just in time. When he had straightened up and turned toward his guest again, he found him standing, embarrassed, halfway between the bed and the door. X started to apologize, but changed his mind and reached for his cigarettes.

"C'mon down and listen to Hope on the radio, hey," Clay said, keeping his distance but trying to be friendly over it. "It'll do ya good. I mean it."

"You go ahead, Clay. . . . I'll look at my stamp collection."

"Yeah? You got a stamp collection? I didn't know you--"

"I'm only kidding."

Clay took a couple of slow steps toward the door. "I may drive over to Ehstadt later," he said. "They got a dance. It'll probably last till around two. Wanna go?"

"No, thanks. . . . I may practice a few steps in the room."

"O.K. G'night! Take it easy, now, for Chrissake." The door slammed shut, then instantly opened again. "Hey. O.K. if I leave a letter to Loretta under your door? I got some German stuff in it. Willya fix it up for me?"

"Yes. Leave me alone now, God damn it."

"Sure," said Clay. "You know what my mother wrote me? She wrote me she's glad you and I were together and all the whole war. In the same jeep and all. She says my letters are a helluva lot more intelligent since we been goin' around together."

X looked up and over at him, and said, with great effort, "Thanks. Tell her thanks for me."

"I will. G'night!" The door slammed shut, this time for good.

X sat looking at the door for a long while, then turned his chair around toward the writing table and picked up his portable typewriter from the floor. He made space for it on the messy table surface, pushing aside the collapsed pile of unopened letters and packages. He thought if he wrote a letter to an old friend of his in New York there might be some quick, however slight, therapy in it for him. But he couldn't insert his notepaper into the roller properly, his fingers were shaking so violently now. He put his hands down at his sides for a minute, then tried again, but finally crumpled the notepaper in his hand.

He was aware that he ought to get the wastebasket out of the room, but instead of doing anything about it, he put his arms on the typewriter and rested his head again, closing his eyes.

A few throbbing minutes later, when he opened his eyes, he found himself squinting at a small, unopened package wrapped in green paper. It had probably slipped off the pile when he had made space for the typewriter. He saw that it had been readdressed several times. He could make out, on just one side of the package, at least three of his old A.P.O. numbers.

He opened the package without any interest, without even looking at the return address. He opened it by burning the string with a lighted match. He was more interested in watching a string burn all the way down than in opening the package, but he opened it, finally.

Inside the box, a note, written in ink, lay on top of a small object wrapped in tissue paper. He picked out the note and read it.

17, ----ROAD,

-----DEVON

JUNE 7, 1944

DEAR SERGEANT X,

I hope you will forgive me for having taken 38 days to begin our correspondence but, I have been extremely busy as my aunt has undergone streptococcus of the throat and nearly perished and I have been justifiably saddled with one responsibility after another. However I have thought of you frequently and of the extremely pleasant afternoon we spent in each other's company on April 30, 1944 between 3:45 and 4:15 P.M. in case it slipped your mind.

We are all tremendously excited and overawed about D Day and only hope that it will bring about the swift termination of the war and a method of existence that is ridiculous to say the least. Charles and I are both quite concerned about you; we hope you were not among those who made the first initial assault upon the Cotentin Peninsula. Were you? Please reply as speedily as possible. My warmest regards to your wife.

Sincerely yours,

ESMA

P.S. I am taking the liberty of enclosing my wristwatch which you may keep in your possession for the duration of the conflict. I did not observe whether you were wearing one during our brief association, but this one is extremely water-proof and shockproof as well as having many other virtues among which one can tell at what velocity one is walking if one wishes. I am quite certain that you will use it to greater advantage in these difficult days than I ever can and that you will accept it as a lucky talisman.

Charles, whom I am teaching to read and write and whom I am finding an extremely intelligent novice, wishes to add a few words. Please write as soon as you have the time and inclination.

HELLO HELLO HELLO HELLO HELLO HELLO HELLO HELLO HELLO HELLO LOVE AND KISSES CHALES

It was a long time before X could set the note aside, let alone lift Esme's father's wristwatch out of the box. When he did finally lift it out, he saw that its crystal had been broken in transit. He wondered if the watch was otherwise undamaged, but he hadn't the courage to wind it and find out. He just sat with it in his hand for another long period. Then, suddenly, almost ecstatically, he felt sleepy.

You take a really sleepy man, Esme, and he always stands a chance of again becoming a man with all his fac-with all his f-a-c-u-1-t-i-e-s intact.

Sunday, October 11, 2009

+mais!

1. Melancolia Corporativa


Revisão do documento que dita o diagnóstico e o tratamento da depressão acirra conflito entre psiquiatras e psicólogos

Jim R.Bounds /Associated Press

RAFAEL GARCIA / DA REPORTAGEM LOCAL

Não é de hoje que as ciências da mente são uma área turbulenta: psiquiatras, psicólogos, psicanalistas e suas subdivisões sempre se digladiaram no campo teórico e clínico. Houve ciclos de calmaria em algumas décadas, mas o debate sobre o entendimento de uma condição tão antiga quanto a humanidade - a depressão - parece estar levando essas classes de profissionais a um novo pico de agressividade agora.

Dentro de dois anos, o comitê redator da chamada "bíblia" da psiquiatria, o DSM (Manual de Diagnósticos e Estatísticas), deve completar a quinta edição da obra. Pressões para que a depressão receba um tratamento diferente no texto partem de todo canto. O DSM, produzido pela Associação Americana de Psiquiatria, é a baliza de referência dos planos de saúde privados em vários outros países para decidir o que pagar ao paciente deprimido: drogas ou psicoterapia. Psicólogos clínicos, sobretudo, têm feito um ataque sistemático ao uso de antidepressivos no tratamento a essa condição, e sua posição está agora resumida em livros de dois pesquisadores britânicos.

Placebo turbinado

Irving Kirsch, da Universidade de Hull, acaba de lançar The Emperor's New Drugs (As Drogas Novas do Imperador), relato no qual descreve como descobriu aquilo que chama de "mito dos antidepressivos". Declarando-se ex-apóstolo desses medicamentos psiquiátricos, Kirsch conta como foi o processo de pesquisa para a produção de uma análise que desmontou a estatística dos testes clínicos que validaram os remédios da mesma classe do popular Prozac.

A polêmica toda começou em 1998, quando o psicólogo publicou o primeiro resultado de seu trabalho, mostrando que a eficácia dessas drogas - os chamados inibidores de recaptação de serotonina - era toda ou quase toda atribuível ao infame efeito placebo.

Esse é o termo que clínicos usam para definir quando um paciente melhora não porque o remédio foi eficaz, mas porque a crença na cura produziu alguma transformação mental e orgânica que a realizou. Testes clínicos em geral têm um controle para não se deixarem enganar pelo efeito placebo, mas Kirsch mostrou que a adoção de placebos 100% inertes, sem efeito colateral nenhum, sabotou a lógica das pesquisas.

Os pacientes voluntários conseguiam descobrir se estavam tomando drogas ou pílulas de farinha, e os resultados dos testes acabavam distorcidos. "Em vez de comparar placebos normais com drogas, estávamos comparando placebos 'turbinados' com placebos normais", escreve o psicólogo.

Nenhum médico questiona hoje a existência do efeito placebo, mas psiquiatras e a indústria farmacêutica negam que este seja o caso dos antidepressivos. Os primeiros ataques de Kirsch a esses medicamentos precipitaram uma enxurrada de artigos em revistas de psiquiatria, com médicos questionando as "metanálises", o método que o pesquisador usou para tirar suas conclusões. A técnica consiste em fazer ajustes estatísticos para poder juntar os resultados de vários testes clínicos diferentes em um único estudo.

A passagem de dez anos, porém, mostrou que o método é seguro, diz Kirsch. "Metanálises são apresentadas regularmente hoje nas principais revistas médicas do mundo", diz, lembrando que a interpretação estatística dos placebos não era o único problema dos testes.

"Segredinho sujo"

Kirsch provocou um verdadeiro rebuliço na comunidade científica quando descobriu que os resultados de muitos testes do Prozac e de drogas similares não haviam sido divulgados ao público. Esses ensaios clínicos - o "segredinho sujo" dos laboratórios farmacêuticos, segundo o psicólogo - eram aqueles em que as drogas não haviam mostrado eficácia.

O trabalho de Kirsch serviu para suscitar um grande debate sobre o sistema de publicação de pesquisas médicas, mas não convenceu a todos que os antidepressivos sejam meros placebos. Muitos psiquiatras consideram o estudo de Kirsch um ataque corporativo dos psicólogos, que devolvem a acusação.

Em janeiro deste ano, o British Journal of Psychiatry publicou um editorial afirmando que uma possível falha dos testes clínicos se deveria ao fato de que os antidepressivos estavam sendo prescritos para muitos pacientes que não estavam realmente deprimidos. A fronteira que separa a depressão clínica de uma tristeza normal, porém tem mesmo de ser arbitrária, e já tem havido algum debate sobre como delimitá-la.

"A diferença entre dar a uma pessoa que não está deprimida um antidepressivo ou placebo não pode mesmo ser grande", diz o psiquiatra (e psicanalista) Marco Antônio Alves Brasil, da UFRJ, integrante do conselho consultivo da Associação Brasileira de Psiquiatria. "Para os quadros de depressão leve, ainda não existe uma comprovação de que os antidepressivos sejam superiores à psicoterapia."

O debate sobre como diferenciar a depressão "patológica" de uma reação normal de tristeza, diz Alves Brasil, pode levar a uma revisão desse ponto no DSM e na ICD (Classificação Internacional de Doenças), produzida pela Organização Mundial da Saúde. A ICD, a referência usada por médicos dos sistemas de saúde pública brasileiros, também deve ser reeditada em 2011.

Para alguns psiquiatras, é preciso limitar a depressão patológica apenas aos casos em que a melancolia é anormal. "Se você está profundamente triste e não há uma razão para isso, você está doente", diz Alves Brasil. Muitos psicólogos, porém, questionam a existência da depressão orgânica e, junto com ela todas as estatísticas de prevalência.


2. Tristeza Evolutiva

Dupla defende que depressão é traço positivo moldado pela evolução

Aristóteles notou que grandes pensadores costumam ter índole depressiva

DA REPORTAGEM LOCAL

Nos levantamentos epidemiológicos sob critérios da Associação Psiquiátrica Americana, tipicamente cerca de 17% das pessoas acabam sendo diagnosticadas com depressão em algum momento de suas vidas. O número é razoavelmente constante na maior parte dos EUA e onde quer que o método seja reproduzido. Para muitos cientistas, isso revela uma entre duas coisas: ou uma epidemia de tristeza, ou uma falha no sistema diagnóstico.

Em um artigo na última edição da revista Psychological Review, da Associação Psicológica Americana, uma dupla de cientistas elenca uma série de evidências em favor da segunda hipótese. J. Anderson Thomson e Paul Andrews, da Virginia Commonwealth University, adotam a perspectiva da psicologia evolutiva para investigar o que Darwin e a teoria da evolução teriam a dizer sobre episódios de depressão.

"Acreditávamos que dificilmente um traço tão prevalente na população poderia ser considerado doença", disse Andrews à Folha. Apresentando um arsenal de referências a estudos de genética, neurociência e farmacologia (e literatura das psicologias cognitiva, comportamental e clínica), a dupla chega a uma conclusão: "a depressão é uma adaptação que evoluiu para analisar problemas complexos".

Andrews explica que a literatura científica dá apoio à ideia de que a depressão induz pessoas a pensarem de maneira analítica e "ruminativa", o que as ajuda a solucionar problemas complexos. O benefício do sofrimento melancólico seria o aumento da capacidade de lidar com a desgraça que o causou. "Dilemas sociais são particularmente fortes em sua capacidade de induzir depressão."

Não é uma ideia propriamente nova, reconhece Andrews, lembrando ela remonta à Grécia Antiga. "Aristóteles notou que grandes pensadores com frequência tinham uma personalidade de tendência depressiva", afirma. O psicólogo diz esperar que seu extraordinário corpo de evidência "biológica", porém, comova os psiquiatras mais do que os textos da Antiguidade Clássica.

Contra o diagnóstico

Outro livro lançado neste mês que ataca o modo como psiquiatras têm lidado com a depressão é Doctoring the Mind (Medicando a Mente), de Richard Bentall, psicólogo clínico da Universidade de Bangor (Reino Unido).

O britânico, que diz não ser "contra drogas" por princípio, reconstrói uma história da psiquiatria apontando como a teoria vigente sobre depressão e seus protocolos de tratamento farmacológico foram moldados mais pelos fracassos do que pelos sucessos dessa disciplina.

Questionado sobre se os psicólogos não deveriam construir seu próprio manual de diagnósticos como reação, Bentall dá de ombros. "Não precisamos de coisas como o DSM", diz. "Minha abordagem é pôr o foco em cada sintoma das pessoas, em vez de tentar dar um diagnóstico que abarque todos eles."

Convencer os planos de saúde privados disso, porém, é um problema, admite o psicólogo. E a pressão da indústria farmacêutica sempre vai existir.

Para ele, o grande desafio agora é transformar o debate corporativo em um científico. Segundo ele, há algum motivo para otimismo, já que o panorama acadêmico de "batalha" entre psiquiatras e psicólogos já não é tão real. "Conheço alguns psiquiatras que concordam com minhas ideias, e conheço alguns psicólogos que não."

LIVRO - Doctoring the Mind Richard Bentall; New York University Press; 384 págs. US$ 30

LIVRO - The Emperor's New Drugs Irving Kirsch; Bodley Head; 230 págs. US$ 19



3. Os Novos Dependentes

Confusão entre os conceitos de depressão e melancolia pode tornar o indivíduo "escravo" do mercado farmacêutico

JOEL BIRMAN - ESPECIAL PARA A FOLHA

O questionamento da formulação da psiquiatria biológica, no que se refere à depressão, começa a se realizar no campo das neurociências. Eu diria que esse questionamento chegou tarde, pois aquela se difundiu no espaço social como uma evidência insofismável, fazendo crer à população que a condição depressiva seria não apenas uma anomalia como também uma patologia psíquica, decorrente da desregulação dos neuro-hormônios no sistema nervoso central.

Assim, a depressão seria o signo infalível de uma enfermidade nervosa, a ser devidamente submetida à intervenção psicofarmacológica. Em decorrência disso, a prescrição de antidepressivos se realizou em escala global, como uma nova panaceia para possibilitar a felicidade ampla, geral e irrestrita de todos os desesperados do planeta.

Quanto ao Brasil, o discurso psiquiátrico retomou midiaticamente o enunciado pertinente de Caetano Veloso - de que de perto ninguém é normal - para propor a otimização de antidepressivos para todos, pois a tristeza poderia se camuflar de maneira incipiente nas pequenas dobras do espírito e ser, assim, preventivamente debelada em estado nascente.

Foi nesse mesmo comprimento de onda discursiva que a Organização Mundial de Saúde (OMS) diagnosticou o aumento da incidência da depressão no mundo inteiro e fez ainda o prognóstico preocupante de que essa será uma das enfermidades mais frequentes no futuro próximo.

Sociedade performática

Fala-se menos, nessas afirmações peremptórias e supostamente científicas, sobre os interesses da indústria farmacêutica que estão aqui envolvidos, à medida que foi na conjunção íntima com essa indústria que o discurso psiquiátrico passou a propor uma leitura neurocientífica da depressão e de outros males do espírito.

O que se pretende com isso é transformar esses males em doenças nervosas, enfim, de forma que a singularidade do desejo e da dor humanos seja reduzida à condição biológica do sujeito neuronal.

Ao lado disso, é preciso evocar ainda que a disseminação na prescrição de antidepressivos e de outros psicofármacos se inscreve num projeto sociopolítico mais amplo, em que o incremento da performance das individualidades é a única coisa que interessa aos imperativos da sociedade moderna avançada (Guy Debord*).

Nessa perspectiva, as oscilações do humor, a angústia e as demais formas de sofrimento psíquico das individualidades perturbariam os imperativos performáticos dos agentes sociais, devendo assim ser regulados prontamente pela alquimia psicofarmacológica. O que o sujeito possa estar balbuciando com tais dores psíquicas não há nenhum interesse em saber e nenhum espaço dialógico é aberto pela psiquiatria para que aquele possa se anunciar. A demanda de subjetivação foi, assim, abolida da prática psiquiátrica, em conjugação com a suspensão do discurso do paciente.

Como já dizia Platão nos tempos clássicos da pólis grega, tal modelo de prática médica, sem linguagem, seria voltado para os escravos, e não para os cidadãos livres.

Portanto o que é mais inquietante nesse projeto psiquiátrico é a proposição axial de que todos os cidadãos do mundo pós-moderno seriam reduzidos à condição de escravidão, pois não poderiam mais ter acesso ao discurso e à subjetivação, nesse processo de medicalização ilimitado da dor humana.

Desde Luto e Melancolia (1917), Freud enunciou uma leitura rigorosa da melancolia, articulando esta com a experiência da perda, na medida em que a perda se transforma para o sujeito num estado de luto patológico. Assim, se perder alguém ou algo deixa a todos tristes, isso não quer dizer que qualquer depressão se transforme necessariamente numa melancolia.

Pelo contrário, a tristeza incita o sujeito a um trabalho de elaboração psíquica sobre aquilo que foi perdido, conduzindo-o, pela fragilização em que foi lançado, à diminuição de sua impotência e consequentemente a seu enriquecimento simbólico. Vale dizer, não poderia existir nem subjetivação nem simbolização sem as perdas e as depressões correlatas.

Essa leitura de Freud se baseou num ensaio prévio de seu discípulo Abraham, que em 1912 iniciou a investigação sistemática da psicose maníaco-depressiva, numa perspectiva psicanalítica. Posteriormente, o mesmo Abraham deu outros passos decisivos na elucidação dessa perturbação psíquica, estabelecendo em 1924 a relação existente entre essa experiência mental e a história libidinal do sujeito.

Diferenciação

Foi pela sua inscrição nessa tradição teórico-clínica que Melanie Klein (1882-1960) estabeleceu a importância crucial no psiquismo do que denominou "posição depressiva", em oposição à posição esquizoparanoide, para sustentar como a posição depressiva seria fundamental para a produção simbólica e para o engendramento dos processos de subjetivação no psiquismo.

Nessa perspectiva, é preciso diferenciar devida e rigorosamente as depressões - que a existência produz necessariamente em todos nós - da melancolia, na medida em que essa evidencia impasses importantes na elaboração da experiência da perda. Algo da ordem do narcisismo estaria aqui em pauta.

Misturar essas diferentes cartas do jogo psíquico, com o nome de depressão, é nos destinar a todos à condição de escravidão no mercado da medicalização contemporânea. O que implica, é claro, possibilitar ao sujeito a invenção de novas ferramentas simbólicas, para que possa forjar outras modalidades de subjetivação.

O que não é possível é nos fazer crer que não exista experiência psíquica sem perdas e delinear assim a existência humana como estando sempre marcada pelo crivo do sujeito, como se este pudesse sempre ser performaticamente vencedor. Enfim, o que a psicanálise pode nos oferecer, no que tange a isso, é a possibilidade de transformar as perdas dos indivíduos em produção simbólica e novas formas de subjetivação.

Joel Birman é psicanalista e professor da UFRJ e da UERJ.


* A Sociedade do Espetáculo
Guy Debord

Prólogo para a terceira edição francesa

A Sociedade do Espetáculo foi publicado pela primeira vez em novembro de 1967, em Paris, por Buhet-Chastel. Os tumultos de 1968 o tornaram conhecido. O livro, no qual jamais mudei uma só palavra, foi reeditado seguidamente a partir de 1971 pelas Éditions Champ Libre que tomaram o nome de Gérard Lebovici em 1984, após o assassinato do editor. A série de reimpressões sucederam-se aí regularmente até 1991. A presente edição, ela também, permaneceu rigorosamente idêntica à de 1967. A mesma regra norteará aliás, muito naturalmente, a reedição de todos os meus livros na Gallimard. Não sou destes que se corrigem.

Uma teoria crítica como esta não tem que ser mudada; não enquanto não tiverem sido destruídas as condições gerais do longo período da história de que esta teoria terá sido a primeira a definir com exatidão. A continuação do desenvolvimento do período não fez senão confirmar e ilustrar a teoria do espectáculo cuja exposição, aqui reiterada, pode também ser considerada como histórica em uma acepção menos elevada: testemunha o que foi a posição mais extremada por ocasião das disputas de 1968 e, portanto do que já era possível saber em 1968. Os mais equivocados desta época puderam aprender a partir de então, pelas desilusões de toda sua existência, o que significavam a «negação da vida que se tornou visível», «a perda da qualidade» ligada à forma-mercadoria e à «proletarização do mundo».

De resto, acrescentei a seu tempo outras observações a respeito das mais notáveis novidades que o curso ulterior do mesmo processo fizeram aparecer. Em 1979, por ocasião de um prefácio destinado a uma nova tradução italiana, tratei das transformações efetivas na natureza mesma da produção industrial, como nas técnicas de governo, que começava a autorizar o uso da força espectacular. Em 1988, os Comentários sobre a sociedade do espectáculo estabeleceram claramente que a precedente «divisão mundial das tarefas espectaculares» entre os reinos rivais do «espectacular concentrado» e do «espectacular difuso» havia de agora em diante acabado em benefício de sua fusão na forma comum do «espectacular integrado».

Esta fusão pode ser sumariamente resumida corrigindo-se a tese 105 que, referindo-se ao que se passara antes de 1967, distinguia ainda as duas formas anteriores segundo certas práticas opostas. O Grande Cisma do poder de classe tendo terminado em reconciliação, é preciso dizer que a prática unificada do espectacular integrado, hoje, «transformou economicamente o mundo», ao mesmo tempo que «transformou policialmente a percepção» (A polícia no caso é mesmo novidade completa).

É unicamente porque esta fusão já se tinha produzido na realidade econômico-política do mundo inteiro, que o mundo podia enfim proclamar-se oficialmente unificado. É também porque a situação a que chegara universalmente o poder separado é tão grave que esse mundo tinha necessidade de ser unificado o mais cedo possível; de participar como um único bloco na mesma organização consensual do mercado mundial, falsificado e garantido espetacularmente. E ele não se unificará, finalmente.

A burocracia totalitária, «classe dominante de substituição para a economia mercantil», nunca acreditou o suficiente em seu destino. Sabia ser «forma subdesenvolvida de classe dominante», e queria ser mais. A tese 58 tinha há tempos estabelecido o seguinte axioma: «A raiz do espetáculo está no terreno da economia tornada abundante, e é de lá que vêm os frutos que tendem finalmente a dominar o mercado espetacular».

É esta vontade de modernização e unificação do espetáculo, ligada a todos os outros aspectos da simplificação da sociedade, que conduziu a burocracia russa a se converter repentinamente, como um só homem, à presente ideologia da democracia: isto é, é liberdade ditatorial do Mercado, temperada pelo reconhecimento dos Direitos do homem espectador. Ninguém no Ocidente fez o menor comentário sobre o significado e as consequências de tão extraordinário acontecimento mediático. O progresso da técnica espetacular fica provado. Só se teve que registrar à semelhança de uma espécie de abalo geológico. Data-se o fenômeno, e imagina-se tê-lo compreendido bem, contentando-se na repetição de um sinal muito simples — a queda-do-muro-de-Berlim —, tão indiscutível quanto os outros sinais democráticos.

Em 1991, os primeiros efeitos da modernização apareceram com a dissolução completa da Rússia. Aí se expressa, mais abertamente ainda que no Ocidente, o resultado desastroso da evolução geral da economia. A desordem é apenas sua consequência. Por toda parte se colocará a mesma pergunta aterradora, que ronda o mundo há dois séculos: como fazer trabalhar os pobres, ali onde a ilusão se dissipou e toda força foi abatida?

A tese 111, reconhecendo os primeiros sintomas de um declínio russo do qual acabamos de ver a explosão final, e antevisando o desaparecimento próximo de uma sociedade mundial que, como se pode dizer agora, apagar-se-á da memória do computador, enunciava este julgamento cuja justeza será fácil perceber: «a decomposição mundial da aliança da mistificação burocrática é, em última análise, o fator mais desfavorável para o desenvolvimento atual da sociedade capitalista».

É preciso ler este livro considerando que ele foi deliberadamente escrito na intenção de se opor à sociedade espetacular. Nunca é demais dizê-lo.

30 de junho de 1992

GUY DEBORD

Saturday, October 10, 2009

Logo que voltaram para Cabul, Laila se afligia por não saber onde os talibãs haviam enterrado Mariam. Gostaria de poder visitar sua sepultura, sentar ali ao lado, deixar uma ou duas flores sobre a lápide. Agora, porém, sabe que isso não tem a menor importância. Mariam está sempre por perto. Está bem aqui, nessas paredes que eles próprios pintaram, nas árvores que plantaram, nos cobertores que mantêm as crianças aquecidas, nos travesseiros, nos livros, nos lápis. Está no riso daquelas crianças. Nos versículos que Aziza recita e nas orações que murmura voltada para o oeste. Mas é principalmente no coração de Laila que Mariam está presente; é ali que ela brilha com toda a intensidade de mil sóis.

Percebe, então, que alguém está chamando o seu nome. Vira-se e, instintivamente, inclina um pouco a cabeça, erguendo um tantinho o ouvido bom. É Aziza.

— Está tudo bem, mammy?

A sala está em silêncio. As crianças têm os olhos pregados nela.

Laila ia responder, mas, de repente, se assusta. Baixa as mãos, levando-as ao ponto onde, segundos antes, sentiu como se uma onda a percorresse. Fica esperando. Mas não percebe movimento algum.

Mammy?

— Está, sim, querida — diz Laila, sorrindo. — Estou bem. Estou, sim. Muito bem.

Dirigindo-se a sua mesa, defronte dos alunos, lembra da brincadeira que voltaram a fazer na véspera, enquanto jantavam. Aquilo estava se tornando um verdadeiro ritual, desde que Laila tinha lhes dado a notícia. Passavam horas assim, cada um defendendo a própria escolha. Para Tariq, devia ser Mohammad. Zalmai, que acabou de ver o vídeo do Super-Homem, não se conforma quando lhe dizem que um menino afegão não pode se chamar Clark. Já Aziza vem lutando pela vitória de Aman. E Laila prefere Omar.

Mas a brincadeira só envolve nomes masculinos, porque, se for menina, Laila já escolheu o nome que vai lhe dar.


The title of the book refers to a phrase from the poem Kabul, by the 17th-century Persian poet Saib-e-Tabrizi. The poem is translated into English by Josphine Davis. The English translation is not a literal translation of the original.

Kabul

Ah! How beautiful is Kabul encircled by her arid mountains
And Rose, of the trails of thorns she envies
Her gusts of powdered soil, slightly sting my eyes
But I love her, for knowing and loving are born of this same dust

My song exhalts her dazzling tulips
And at the beauty of her trees, I blush
How sparkling the water flows from Pul-I Bastaan!
May Allah protect such beauty from the evil eye of man!

Khizr chose the path to Kabul in order to reach Paradise
For her mountains brought him close to the delights of heaven
From the fort with sprawling walls, A Dragon of protection
Each stone is there more precious than the treasure of Shayagan

Every street of Kabul is enthralling to the eye
Through the bazaars, caravans of Egypt pass
One could not count the moons that shimmer on her roofs
And the thousand splendid suns that hide behind her walls

Her laughter of mornings has the gaiety of flowers
Her nights of darkness, the reflections of lustrous hair
Her melodious nightingales, with passion sing their songs
Ardent tunes, as leaves enflamed, cascading from their throats

And I, I sing in the gardens of Jahanara, of Sharbara
And even the trumpets of heaven envy their green pastures

http://en.wikipedia.org/wiki/A_Thousand_Splendid_Suns

... o que se precisa dizer?


— Todos em Cabul estão fazendo isso.

Laila retrucou que não tinha nada a ver com o que os outros faziam.

— Vou ficar de olho nela — prosseguiu Rashid, já mais impaciente.

— É um lugar seguro. Tem uma mesquita bem defronte.

— Não vou deixar você transformar minha filha numa mendiga! — esbravejou Laila.

O tapa estalou bem alto, pois aquela mão de dedos grossos acertou em cheio o rosto da moça.

Com o impacto, sua cabeça virou para o lado. Na cozinha, os ruídos cessaram. Por um momento, o silêncio na casa foi total. Depois, ouviram-se passos apressados pelo corredor e Mariam e as crianças apareceram na sala. Seus olhos iam de Laila para Rashid, e vice-versa.

Então, ela o acertou com um soco.

Foi a primeira vez que bateu em alguém na vida, sem contar, é claro, com os socos de brincadeira que Tariq e ela davam um no outro. Mas esses eram mais uns tabefes, dados com a mão aberta e sem qualquer intenção de machucar; eram antes a expressão de ansiedades a um só tempo surpreendentes e excitantes. E visavam sempre o músculo que Tariq, em tom professoral, chamava de deltóide.

Laila viu o próprio punho fechado cortando o ar, sentiu as pontinhas da barba por fazer, o contato da pele áspera com os nós dos dedos.

Pelo barulho, parecia que um saco de arroz tinha caído no chão. Ela o atingiu em cheio, e com tanta força que Rashid chegou a recuar uns dois passos.

No outro lado da sala, alguém perdeu o fôlego, alguém soltou uma exclamação de espanto, alguém gritou. Mas Laila não conseguiu distinguir quem fez o quê. Naquela hora, estava atônita demais para perceber o que quer que fosse, ou até para se preocupar; esperava apenas que a sua mente registrasse o que a sua mão tinha feito. Quando isto aconteceu, deve ter sorrido, ao menos era a impressão que tinha. Deve ter rido de orelha a orelha, pois, para sua surpresa, Rashid se virou, com toda calma, e saiu da sala.

De repente, lhe pareceu que todos os sofrimentos da vida daquelas três criaturas, ela mesma, Aziza e Mariam, tinham simplesmente se evaporado, sumido como as marcas das mãos de Zalmai na tela da TV. Por mais absurdo que fosse, tinha a sensação de que valera a pena aguentar tudo o que tinham aguentado, só para viver aquele momento, aquele ato de desafio que poria fim a todos aqueles ultrajes.

Laila não notou que Rashid estava de volta até sentir a mão dele em sua garganta, até ser erguida do chão e imprensada de encontro à parede.

Assim, tão de perto, o rosto debochado daquele homem parecia incrivelmente grande. Laila percebeu como ele estava ficando mais rechonchudo com a idade, como os vasinhos em seu nariz tinham se multiplicado. Rashid não disse absolutamente nada. Aliás, o que se pode dizer, o que se precisa dizer quando se tem o cano do revólver enfiado na boca da própria mulher?

A Cidade do Sol (A Thousand Splendid Suns) - Khaled Hosseini

Mais títulos

RUY CASTRO

Na coluna de quarta última, ao falar da incurável mania dos jornalistas de usar títulos de filmes para intitular matérias, temo ter sido meio rigoroso. Na verdade, não importava que o título saísse de um filme. Só tinha de ser bom. E alguns eram magníficos.

Na Manchete dos anos 80, Celso Arnaldo Araújo fez uma reportagem sobre uma novidade, o videocassete, que ameaçava prender as pessoas em casa e afastá-las dos cinemas. Ao terminar o texto, inverteu o título de um filme nacional e sapecou: "Videocassete - Matou o cinema e foi à família". Outro muito bom, tirado do filme "Pequeno Grande Homem" e atribuído a Raul Giudicelli, tratava de um paranormal gaúcho, por acaso anão: "Pequeno grande médium".

Nos que independiam do cinema, Manchete era também quase imbatível. Um clássico foi o de Carlos Heitor Cony para uma matéria sobre um falsário preso em São Paulo. Como o homem se negasse a recebê-lo, Cony inventou a entrevista e intitulou-a: "Entrevista de mentira com um falsário de verdade".

Fatos & Fotos, irmã caçula da Manchete, também admitia brilharecos. Em 1967, o ditador chinês Mao Tsé-tung andou sumido e suspeitou-se de que estivesse morto. Até que reapareceu e, para mostrar que vendia saúde, mergulhou no rio Yang-tsé. Título maravilhosamente dúbio: "Nada bem o velho Mao".

Mas, para mim, os dois melhores daquele tempo saíram em O Globo. Em 1982, dom Ivo Lorscheiter estava num avião e, temendo por sua fé, recusou-se a ir à janela ver uma estranha luz que os passageiros juravam ser um disco voador. O saudoso Chico Nelson decretou: "Ivo não viu o Ovni". E o outro, de Guilherme Cunha, em 1976, quando o mesmo Mao, enfim morto, foi sucedido pelo nº 2 na hierarquia, Lin Piao: "China vai de Mao a Piao".

Títulos
RUY CASTRO

Na bolsa de títulos mais repetitivos da imprensa brasileira, "Um olhar sobre..." começa enfim a ser aposentado. E já não era sem tempo. Adotado por nós com grande atraso, sua matriz francesa, "Un regard sur...", está fora de moda em Paris desde 1970. Mas, até outro dia, era uma doença por aqui: nove em dez artigos nos cadernos culturais eram intitulados "Um olhar sobre...". Aí seguia-se aquilo sobre o que alguém estava lançando "um olhar": o rock grunge, a Revolução de 1932, os filmes do Mazzaropi.

Nós, da imprensa, somos assim. Quando adotamos uma fórmula, entregamo-nos a ela com fervor. Por exemplo, desde que passamos a usar títulos de filmes para criar títulos de matérias, nunca mais paramos. O auge desse macete foi na revista Manchete, nos anos 60 e 70, porque seu diretor, o querido Justino Martins, o achava divertido.

Daí que, de repente, tudo se tornou "A hora e a vez de..." ou "Quem tem medo de...?", tirados de "A Hora e a Vez de Augusto Matraga", conto de Guimarães Rosa, e de "Quem Tem Medo de Virginia Woolf?", peça de Edward Albee, ambos filmados com enorme sucesso. Precisávamos ficar atentos para que cada título, ou suas variações, só saísse uma vez por edição.

Eu próprio, redator da Manchete em 1972, cometi um, e infame. Era o apogeu dos faroestes italianos, com títulos tipo "Django não perdoa. Mata!". Caiu-me à mesa uma matéria sobre o duelo mundial de xadrez entre o americano Bobby Fischer e o russo Boris Spassky, disputado em Reykjavík, na Islândia.

Fischer estava ganhando todas e, na hora de titular, nem titubeei: "Fischer não perdoa. Mate!". Justino adorou. Nem ele nem eu sabíamos que, no xadrez de alto nível (no de baixo nível também), o mate não chega a acontecer. O perdedor tomba o rei muito antes.


Wednesday, October 07, 2009

Duzentos mil deixam campo rumo à cidade a cada dia no mundo

É um desastre com números apocalípticos.Todo dia 200 mil pessoas deixam o campo e vão para as cidades. É como se um município do tamanho de São Carlos (SP) fosse criado diariamente no mundo. No fim do mês, o resultado desse movimento cria uma cidade do porte do Rio de Janeiro ou de Santiago, com 6 milhões de habitantes. Os dados são do relatório das Nações Unidas-Habitat, divulgado ontem, com o tema "Planejando Cidades Sustentáveis".

A urbanização acelerada do século 21 gera desigualdade de renda, discriminação, poluição e desastres que pouco têm de naturais, segundo a seção da ONU voltada para a questão da moradia. "A urbanização modifica o ambiente e gera novas ameaças, como o desmatamento e instabilidade nas encostas, que resultam em deslizamentos e enchentes", diz o texto. Desde 1975, o número de desastres naturais cresceu quatro vezes, segundo a ONU.

África e Ásia são as regiões mais afetadas pela urbanização acelerada, de acordo com o relatório, provocando um aumento da população favelada no mundo. Na África subsaariana, 62,2% dos moradores vivem em favelas. Em Serra Leoa, os que vivem em moradas informais compõem 97% da população do país. Na Ásia, os números são mais contrastados. No Camboja, por exemplo, os favelados correspondem a mais de três quartos da população (78,9%). Já na Tailândia, eles somam cerca de um quarto da população (26%).

A América Latina segue em parte a variação asiática. Enquanto o Chile tem só 9% de população em habitações informais, na Jamaica os favelados são mais de 60%. O Brasil fica no meio do caminho: tem 29% da população vivendo em favelas, segundo os dados da ONU.

Para Alberto Paranhos, oficial principal do escritório regional da ONU para a América Latina e o Caribe, o relatório oferece aos administradores públicos um recado: "Ele diz: "Na hora de planejarem uma cidade, tratem de ver especificamente habitação, transporte e emprego, pois essas são as coisas que vão definir quem fica onde". Uma pessoa se muda de cidade geralmente por conta de trabalho e se instala na cidade em função da oferta de habitação e de transporte", afirma.

Para Raquel Rolnik, professora da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da USP e relatora da ONU para a questão do direito à moradia adequada, o problema principal é a relação entre pobreza e a gestão do território. "O planejamento urbano não leva em conta a população mais pobre. Todas as áreas planejadas são voltadas para o mercado imobiliário e para a classe média", afirma.

O Brasil vive uma situação melhor do que a África e a Ásia, segundo ela, porque reconhece o direito à infraestrutura urbana daqueles que ocupam irregularmente um terreno. "O Brasil é vanguarda nessa área", diz. O maior desafio brasileiro, segundo ela, é "como parar a máquina de ocupação territorial irregular, já que urbanização de favela fica ruim".

O governo brasileiro criou o programa Minha Casa, Minha Vida, cuja meta é construir 1 milhão de casas com investimento de R$ 34 bilhões. "Esse programa tem o grande risco de criar guetos nas áreas mais pobres das cidades. Vão criar casas de pobres na "não cidade", onde não há infraestrutura. Existem ferramentas para evitar isso, mas o governo resiste a usá-las", diz Rolnik. A secretária nacional de habitação do Ministério das Cidades, Inês Magalhães, diz que o risco não existe porque o programa só irá financiar imóveis em área com infraestrutura.