Música para ouvir, música para pensar
Carolina Ruas
Foto: Sergio Huoliver |
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Que o fim do ano em Vitória é sempre marcado pelos mais interessantes eventos, isso todo mundo já sabe. O que ninguém esperava, porém, é que este ano aconteceriam três imperdíveis ao mesmo tempo. Além do tradicional Vitória Cine Vídeo, na mesma semana acontecem, tudo na Ufes, o Fórum de Mídia Livre e, em paralelo, o indispensável Festival Música Livre & Seminário
A Morte do Pop-Star, que, entre esta quinta-feira (3) e domingo (5), traz a discussão das novas formas de difusão no campo musical, o papel do artista, a Internet e os direitos autorais. Na esteira dos debates também chega uma série de atrações musicais que une o tradicional ao mais moderno do mundo da música. E quem faz a ponte entre esses dois universos é, senhoras e senhores, Jards Macalé, um cânone da subversão como cantor, compositor, ator, poeta, arranjador, entre outros títulos, da cultura brasileira.
Nem moderno nem tradicional são as palavras adequadas quando se trata deste carioca que fez e desfez no mundo da música desde a década de 60. Jards Macalé se apresenta em Vitória na noite desta quinta-feira, primeiro dia do festival, ao lado do Sol na Garganta do Futuro. “Eu gosto muito de Vitória. Fui preso aí e a prisão me trouxe muitos prazeres”, ele diz ao telefone, sentado confortavelmente em seu apartamento no Jardim Botânico, Rio de Janeiro.
O tom desafetado vem muito naturalmente, uma deixa para Macalé começar a contar uma de suas histórias em que, depois de um show que debochava da Declaração Universal dos Direitos Humanos, encarou a ditadura das gravadoras. “Foi em 1974 que fizemos esse show que denunciava todo esse negócio de direitos autorais, que todo mundo assinava os contratos sem nem saber das coisas. Fiquei nove anos preso. Quem foi me soltar foi o Médici!”, conta às gargalhadas.
Subversivo e debochado, Macalé arrumou todas as confusões possíveis com as gravadoras e com a censura na década de 70. Junto a outros artistas famosos, como Tom Jobim e Chico Buarque, acabou articulando uma sociedade musical brasileira para pensar e questionar a política das gravadoras, dos contratos e de direitos autorais que em nada defendiam os direitos do artista sobre sua obra. “Por isso fiquei muitos anos sem gravar nada, não fui nada obediente, briguei muito com a gravadora e não quiseram gravar mais comigo. Sabotagem mesmo.”, afirma.
Apesar de ter ficado um tempo parado, esse embate foi uma importante semente para a discussão contemporânea do papel do artista e do livre compartilhamento de música via Internet, principal enfoque do festival e do seminário. Por isso, não só artistas de peso como Macalé, mas os demais que se apresentam em Vitória estão de alguma forma envolvidos no debate. “A idéia é pegar pesado mesmo! Pegar a galera do Mídia Livre, do MPB, quem tinha condições e vontade de vir a Vitória”, conta Fabrício Noronha, um dos organizadores do evento. Em tempo: o MPB a que Fabrício se refere não é Música Popular Brasileira, e sim o Música Para Baixar, movimento que vem articulando músicos de todo o Brasil, anônimos ou consagrados, para debater a necessidade de se criar uma nova racionalidade para o negócio da música. Isso, claro, passa por uma profunda reorganização do padrão estabelecido pelo mercado fonográfico tradicional.
Fabrício, também vocalista da banda Sol na Garganta do Futuro, conta que, sem grandes recursos, o festival foi construído todo em cima dos ideais dos grupos acerca da distribuição de música pela Internet. “A gente foi acionando as pessoas, tudo construído por Internet com gente que já está envolvida e outros que têm bagagem, mas não estão envolvidos diretamente. E a gente, então, aproveitou para trazer para o movimento”, explica ele.
Jards Macalé é um desses que, com imensa bagagem nos enfrentamentos com as gravadoras, está chegando para o movimento na Internet agora, mas com a certeza de que é fruto da luta iniciada há mais de 30 anos. “Sempre teve briga, porque os interesses não são comuns. E está mais forte porque a gente plantou isso lá atrás”, garante ele.
Em tempos em que um artista só precisa de uma plataforma na Internet para divulgar seu trabalho, Macalé duvida da sobrevivência do modelo tradicional das gravadoras. Para ele a Internet é uma grande ferramenta de comunicação que deve mesmo ser explorada, principalmente para difundir música. “A Internet transformou tudo. E tem que mudar essa relação! Praticamente acabou o mercado de disco e eles (as gravadoras) precisam se adaptar ao mercado, mudar o comportamento. E com a Internet como eles vão amarrar isso tudo?”, questiona.
Quem o escuta falando assim entende por que Macalé se tornou ícone para a sua geração e para as gerações posteriores que encontraram nos downloads não-oficiais a irreverência e a genialidade musical do artista. Se isso o incomoda enquanto artista? “Muito pelo contrário: acho bom que me escutem mesmo. Eu vivo de shows ao vivo. Não espero direitos autorais e acho isso uma vergonha. Hoje só tenho uma obra minha mesmo, os outros estão tudo nas mãos das gravadoras”, conta.
O grande encontro
De geração em geração, Macalé foi deixando sua marca por onde passou. Suas músicas que ganharam fama nas vozes de Gal Costa, Maria Bethânia e Nara Leão e outros consagrados, também estão presentes nas vozes de gente como O Rappa e Adriana Calcanhotto. Para Fabrício, vocalista do Sol na Garganta do Futuro (foto ao lado), a música de Jards Macalé é uma referência muito forte para o grupo. “A gente já vem tocando as músicas dele há um tempo; o Sol tem oito anos e o Macalé ‘surge’ como efervescência da cultura brasileira nas pesquisas do grupo”, explica.
Na quinta-feira, a banda que provoca uma orgia entre poesia, música, cinema e performance em cima do palco se encontra musicalmente pela primeira vez com Macalé. Fabrício comenta que existem muitas coisas que o grupo identifica na música de Macalé. “A gente está conectado por várias coisas; a atmosfera que ele cria, a poesia como aliada; a própria construção das músicas se assemelha muito com o que a gente faz”.
Quanto ao show, Fabrício diz que ainda está para ser decidido o “desenho”, que será traçado quando os músicos se encontrarem para ensaiar, pensar repertório, et cetera. Para Macalé, alguns dias antes do show o repertório ainda é “um mistério que ninguém desvenda!”, é o que diz entre mais gargalhadas.
Nesses momentos, não surpreende que um artista de espírito tão desprendido quanto o dele tenha sido reconhecido justamente pela improvisação e pela capacidade de transformar cada apresentação sua em exemplar único. “Fico pensando que cada um faz a diferença como pode. Não sei fazer exatamente igual. Não sou quieto, quando criança minha mãe mandava e mesmo assim eu não ficava”, lembra ele.
De fato, a cada acorde, a cada apresentação, Macalé refaz toda a música, não importa se dele ou não. E o próprio admite que não consegue. “Já me disseram que o meu violão é surrealista! Tem sempre algum detalhe, na interpretação, no violão... mas acho mais que meu violão é cubista!”.
Surrealista ou cubista, não importa, Macalé continua sendo um provocador do mundo da música que, se não hesita em subverter a arte, também não hesita em ter momentos de “vazio” criativo e admite que agora está “num momento de seca”. Depois de fazer muitos shows pelo mundo afora, Macalé diz que quer fazer coisas novas, mas que não sai correndo para fazer as coisas acontecerem. “Ainda não sei o que fazer. Mas como sempre me diz uma amiga ‘Quando te dá aquele vazio, não se preocupe: viva o vazio’”, diz.
E para Macalé, fazer algo novo não significa muita coisa. “O novo é muito relativo. Me sinto novo”, conta. E a improvisação e o “surrealismo/cubismo” da sua arte, também vêm acompanhados de uma inconstância na criação. “Sou muito indisciplinado. E criação é uma espécie de febre. Posso passar vários dias fazendo uma coisa e vários tempos sem fazer nada. Criar é uma coisa que vem. Uma palavra pode detonar um poema”, reflete.
Em tempos em que ser artista, ou melhor, dar visibilidade a sua obra, é algo muito mais acessível graças à presença das novas tecnologias, Macalé vê grandes possibilidades para o mundo da arte. “O mundo está em aberto, hoje em dia temos um país de artistas, o que é saudável. Ao mesmo tempo, isso não aparece na televisão nem no rádio – não sei quantos interesses aparecem aí. Mas arte é o sintoma da criatividade. E estamos mudando a relação com essas coisas todas”, explica ele.
O Festival de Música Livre, além de promover o encontro entre a música e a poesia, a tradição e a modernidade, é na capacidade de entender o papel do artista na discussão desse novo ambiente da cultura musical que o debate se completa nas vozes de artistas dos mais variados estilos e idades. Fabrício do Sol na Garganta do Futuro completa: “é um olhar sobre a cultura em geral, que ultrapassa a música, estando presente em todas as artes, que estão se contaminando pelo novo modelo de negócio, pelas novas formas de difundir a cultura”.
FESTIVAL MÚSICA LIVRE & Seminário A MORTE DO POP-STAR
PROGRAMAÇÃO SEMINÁRIO
Sexta-feira (4)
15h às 18h | Mesa: A Invenção do Pop-Star | Auditório do Cemuni V (Ufes)
Mediador: Irajá Menezes (SP)
Convidados: Miguel Jost (PUC/RJ), Edson Natali (Itaú Cultural/SP), Mónica Vermes (Ufes/ES) e Pablo Capilé (Espaço Cubo/MT)
Sábado (5)
15h às 18h | Mesa: A Morte do Pop-Star | Auditório do Cemuni V, Ufes
Mediador: Irajá Menezes (SP)
Convidados: Ericson Pires (UERJ/RJ), Pedro Alexandre Sanches (CartaCapital/Rolling Stone/SP), Gustavo Anitelli (Teatro Mágico/MPB/SP) e Eduardo Ferreira (MPB/OsViralata/MT)
PROGRAMAÇÃO DE SHOWS
Quinta-feira (3) | 21h | Tenda de Circo, Estacionamento do Centro de Artes (Ufes)
Jards Macalé
Graveola e o Lixo Polifônico (MG)
Vitrola de 3 (ES)
Sol na Garganta do Futuro (ES)
Ricardo Palm (SP)
Anne Oz (ES)
K.O (ES)
Kung Fuko (ES)
Sexta-feira (4) | 22h | Tenda de Circo, Estacionamento do Centro de Artes (Ufes)
Macaco Bong (MT)
Richard Serraria (RS)
Os Viralata (MT)
Fê Paschoal (ES)
Ócio (ES)
F.U.E.L (ES)
SkolBitch (ES)
Tati Wuo (ES)
Rike Sick (ES)
Sábado (5) | 22h | Tenda de Circo, Estacionamento do Centro de Artes (Ufes)
Tono (RJ)
Os Outros (RJ)
Qinho (RJ)
SoultoGroove (ES)
Trepax (ES)
André Paste (ES)
Jean Mafra (SC)
Angela Jackson (ES)
Manniquin (ES)
Semáforo (ES)
Soft Mobile Porn (ES)
Serviço
O Festival Música Livre & Seminário A Morte do Pop-Star acontece desta quinta-feira (3) ao próximo domingo (5) na Ufes. Av. Fernando Ferrari, 514, campus de Goiabeiras, Vitória. Entrada franca.