Ok, vamos encarar a questão: Olavo de Carvalho. A figura é controvertidíssima! Lembra o Paulo Francis dos momentos mais confusos e, pior, não escreve bem. É grosseiro, neurastênico, exagerado e sem humor. A Marilena Chauí falou que ele era um "filósofo de internet". Ele rebateu e disse que, então, ela era... um peido!!! Os seguidores, talvez, dão mais medo. Que confraria esquisita! Mas, meu negócio é encarar a questão. Alguns dos textos mais interessantes que li recentemente me chegaram por meio dele ou de seus admiradores. A Teoria dos Quatro Discursos do Aristóteles, por exemplo, e agora esse artigo curto, de 1977, publicado no Folhetim sobre a Flauta Mágica filmada pelo Bergman. Porra, é bom pra caramba! A parte que ele fustiga a "intelectualidade" eu teria cortado, mas chega, apesar da vergonha não vou mais esconder que tenho andado em más companhias. Chega. Nunca mais vou falar que li o Olavo no computador do quarto da empregada. Também não vou levar em conta que o Caetano deu agora pra ler o Olavo, porque o Caetano lê (e ouve) qualquer tipo de porcaria. Assumi. Seja o que Deus quiser. Vai até o site do moço que desenterrou o artigo: http://dennymarquesani.sites.uol.com.br, destaque para o lobo em pele de cordeiro de língua de fora contra o céu azul que ilustra a home.
Segredos da Flauta Mágica
Olavo de Carvalho
Folhetim nº 006, 27 de fevereiro de 1977
Toda obra de arte é um tecido de símbolos: palavras, riscos no papel, harmonias e desarmonias sonoras. Para entender um símbolo, é preciso conhecer o código – convenção, tradição ou analogia – em que se baseia. Códigos são uma coisa que ninguém nasce sabendo. São um dado cultural, que temos de aprender. Alguns deles aprendemos na escola, outros não. É o caso dos códigos e convenções simbólicas em que se funda uma obra de arte. Estes, alguém mais experimentado, fora da escola, tem de nos ensinar. Isto é ou deveria ser precisamente o trabalho da crítica: fornecer o dado de que não dispomos, ensinar a regra para que possamos jogar o jogo. No caso d’
A Flauta Mágica, esse dado foi simplesmente omitido, e o público teve de jogar às escuras. A crítica preferiu tecer altas especulações estéticas sobre (isto foi título de um jornal carioca) “um Mozart bergmaniano e um Bergman mozartiano”, ao invés de explicar, simplesmente, de que se tratava. Assim, em resposta a uma crítica excessivamente especializada e gremial (cuja existência num país subdesenvolvido já é um fenômeno cultural que mereceria estudo), o público reagiu com uma espécie de pedantismo às avessas: o de gostar sem entender.
Não faltaram, inclusive, comentários de salão sobre o contraste entre a qualidade da música e a banalidade da história e do “filme enquanto filme” (nada se observando, porém, quanto ao filme enquanto lata de sardinhas ou manual de contabilidade). Na verdade, o dado omitido diz respeito precisamente à história.
A Flauta Mágica não é, em hipótese alguma, tal como a entendeu um grande número de espectadores, uma proeza musical realizada sobre um conto de fadas meio água-com-açúcar: é a tradução musical e dramática de uma história altamente complexa, entremeada de uma simbologia e de uma filosofia tão estranhas aos hábitos do meio intelectual brasileiro do momento, que julgo improvável que mesmo a parcela mais intelectualizada do público tenha chegado perto de uma compreensão adequada do filme e de suas implicações culturais e éticas – sobretudo sem a ajuda da crítica.
No ano anterior ao da composição da ópera (1791), Mozart passou por uma séria crise moral e severas moléstias físicas, e esteve perto de morrer. Mas quem morreu não foi ele; foi seu amigo Ignatz von Born. Born, importante dignitário maçônico vienense, escrevera um livro, Os mistérios egípcios, que Mozart leu por essa época e que veio como uma resposta aos seus dilemas anteriores. Nele expunha-se a concepção (que não era de Born, mas de toda a maçonaria, seita a que pertenciam o próprio Mozart, e o libretista da
Flauta, Emmanuel Schikaneder) a concepção da morte como símbolo de transformação, de passagem cruel mas necessária a um nível superior de espiritualidade. Impressionado pela morte de quem lhe ensinara a compreensão da morte, o mestre verteu em sua ópera toda a simbologia do livro de Born, construindo assim uma obra “hermética” no sentido literal (o de basear-se na doutrina de Hermes Trimegisto, fonte última do pensamento maçônico) e no sentido figurado – o de precisar de uma chave para abrir seus tesouros. Ao mesmo tempo, realizava um velho sonho: o de musicar uma história especificamente alemã que celebrasse a supremacia do amor e da sabedoria sobre os erras e as misérias humanas. Em sua devida perspectiva, no conto de fadas revela-se a exposição simbólica de uma doutrina integral e corrente sobre a natureza humana e suas relações com a divindade. Uma obra, portanto, que não se dirige tanto ao deleite estético dos nefelibatas de ontem e de hoje, quanto à educação e formação ética do ser humano. Num momento e num lugar onde o ser humano parece cada vez mais amesquinhado e desvalorizado, este seria o ponto que uma crítica responsável deveria ressaltar.
É evidentemente impossível resumir aqui a simbologia dessa obra gigantesca, só comparável, em alcance educativo como em complexidade simbólica, ao
Fausto – semelhança que o próprio Goethe não deixou de apontar. Além de remeter o leitor interessado aos livros que cito no fim desta nota, limito-me a dar alguns exemplos mais flagrantes:
(1) Muitos espectadores se espantaram de que o príncipe Tamino, inicialmente dedicado a encontrar sua Pamina e livrá-la das garras do “cruel” Sarastro, de repente e sem motivo plausível mudasse aparentemente de objetivo e começasse a lutar para ingressar numa Irmandade. Pois é, não foi corte nem erro. Esse é precisamente um dos símbolos da doutrina maçônica exposta por Born: a busca da verdade é inicialmente confundida, na mente do homem, com a busca e libertação de uma mulher amada. Depois de sua conversa com o Orador (o sombrio sábio que ele encontra no terceiro portal do Templo – outro símbolo maçônico), o príncipe não muda de objetivo, mas passa a uma compreensão superior do seu objetivo: já não se trata de provar-se homem mediante a conquista de uma mulher, mas mediante um desafio muito maior: o de vencer-se a si mesmo.
(2) Por que a mãe de Pamina, a quem Tamino serve no começo da história é a “Rainha da Noite”, e Sarastro, a quem ele passa a obedecer depois, o representante, como ele mesmo diz, “do poder da luz solar”? Porque na astrologia, arte a que os maçons tanto se afeiçoam, a Lua, senhora da noite, simboliza o mundo vago, obscuro e indefinido da natureza de onde o homem emerge, e o Sol simboliza o ideal de ordem, plenitude e racionalidade para onde o homem se dirige. Tamino, menino assustado que foge de um dragão imaginário, começa por obedecer a Lua (símbolo, em astrologia, da unidade indiferenciada mãe-filho) e evolui até obedecer, depois imitar, depois assumir o lugar do pai, o Sol. Em termos modernos, evolui do inconsciente para o consciente, segundo a fórmula freudiana: “Onde houver Id, haverá Ego.”
(3) Por que três fadas – moças – conduzem Tamino à Lua, e três “espíritos de luz” – meninos – até Sarastro, o Sol? Porque na doutrina hermética (de Hermes Trimegisto), “assim como é em cima é embaixo”, ou seja, os vários planos da realidade – no caso, o plano da natureza e o plano do espírito – têm um certo jogo de correspondências mútuas. Assim, aos três elementais (que é como os gregos chamavam as fadas e duendes que representam o impulso natural de bondade) correspondem, no plano do espírito, outros tantos personagens simétricos e opostos. Conduzindo Tamino de um mundo a outro, os três meninos representam a prudência e a inteligência, atributos do deus Mercúrio, e desempenham ainda a outra função mercuriana: a de deus psicopompo, quer dizer, em grego “condutor de almas”, aquele que estabelece a ponte entre dois mundos opostos, tendo como objetivo último a concórdia e a paz.
(4) Por que o filósofo que freia os ímpetos heróicos de Tamino é quem o leva depois ao Templo onde, findas as provações, ele receberá finalmente a revelação da verdade? Porque a passagem do estágio lunar ao estágio solar, da infância à maturidade, do estágio natural ao estágio racional, requer a interferência de um terceiro elemento: o deus Saturno, simbolizado tradicionalmente num velho sábio eremita, e que representa o tempo, as privações, a solidão, o esforço, o mundo da verdade nua e dura como a pedra do calabouço onde Tamino, paciente, aguarda a libertação. É desta verdade, que contradiz todas as ilusões infantis e ímpetos juvenis de Tamino, que o sábio do Templo se faz porta-voz, indicando os caminhos árduos que conduzem à liberdade.
E assim por diante, numa riqueza simbólica que abrange cada detalhe (a travessia do fogo e da água, o voto de silêncio, a luta contra as tentações da covardia e da dúvida, as fases da lua que “muda de cara”, o soldado Monostatos, força cega do deus Marte, a própria flauta, evidentemente, está tudo no livro de Born, na tradição maçônica e astrológica). A essa riqueza, Bergman não cometeu o supremo ridículo de acrescentar o que quer que fosse – daí a aparente pobreza do “filme enquanto filme”.
Pode
A Flauta Mágica ser compreendida de outro modo, eliminando-se o seu sentido ético e metafísico ou substituindo-o por algum encanto estético meramente auditivo e formal? Só por brincadeira, creio eu. Ou por uma ignorância que não se vexe de passar por cima da intenção expressa do compositor. Pois, como afirmou um dos mais categorizados intérpretes do pensamento do mestre de Salsburgo, “todos os mozartianos deveriam ser capazes desse movimento do espírito em direção a um plano superior (ascensus mentis). O amador que seja sensível aos outros prazeres que Mozart fornece, mas que não se abra a esta deleitação verdadeiramente mozartiana, não está sentindo o mais profundo mérito do maravilhoso iniciador”.
NOTA: Esta última frase é de A. Boschot, no livro
Mozart (Paris, Plon, 1935, pág. 195). As demais informações deste artigo estão em: Edward J. Dent,
Las operas de Mozart (trad. argentina, Buenos Aires, Huemil, 1965) e sobretudo no monumental
La pensée de Mozart (Paris, Le Seuil, 1958). Para detalhes da simbologia astrológica, André Barbault,
Del psicoanálisis a la astrologia (trad. argentina, Buenos Aires, Dédalo, 1975).