Sunday, May 08, 2011

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-55/memorias-vertiginosas/rakudianai

Meus pais estavam lá. Eu estava vivo e inteiro, e era somente isso que importava. No caminho para casa, pedi que meu pai parasse o carro quando vi, do outro lado da rua, um pipoqueiro. Foi um impulso. Fiz questão de comprar eu mesmo a pipoca; meu pai me aguardou ao volante. Atravessei a rua e demorei-me um pouco na frente do pipoqueiro antes de pedir um saquinho. Ele tinha poucos dentes, o carrinho era seu único bem. Não tenho pressa, espero pela pipoca quentinha.

Um longo tempo. A panela no fogo, o estouro gradual, o crescendo sinfônico das pipocas. O trajeto da panela ao vasilhame de vidro, do vasilhame ao saquinho. O sal branco que caía e escorria invisível entre as pipocas, de cima para baixo, tropeçando nas suas reentrâncias tortuosas, até depositar-se em silêncio no fundo do saquinho.

A vida fazia sentido nas coisas simples: separar a pipoca boa do grão encruado, sentir o sabor de cada pipoca, uma a uma, sentir o sal e o milho, amassar o saquinho vazio, cruzar a rua e voltar sem pressa para o carro. Eu morava naquela pipoca, e me encontrava além da revolução, dos sacrifícios, da nobreza de ideais, da democracia e da liberdade.

Mesmo levando em conta o tempo da pipoca, não demorei mais do que uns vinte minutos para chegar em casa. Algo havia de errado, no relógio ou na geografia. Minha casa não poderia ser tão perto assim dos centros de tortura.

Fiquei tonto, o mundo rodou por um instante, quase uma labirintite. Porque se você chega em casa em vinte minutos, os torturadores podem levar você de volta nos mesmos míseros vinte minutos. As prisões deveriam ser em locais longínquos, num canto perdido na Sibéria, e não ali, no meio da cidade. Na geografia brasileira a tortura morava ao lado, era uma vizinha atenta.

Persio Arida, logo após ser libertado dos porões da Oban e do Dops

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