Monday, June 27, 2011
Segredo de Paulo Renato atinge o PSDB
Por ter criado durante sua gestão um sistema de avaliação (brigando com muita gente), implementado num nova forma de financiamento da educação e desenvolvido parâmetros curriculares avançados, Paulo Renato Souza já mereceria ficar na história da educação brasileira. Mas há um fato menos conhecido na biografia dele - e, certamente, sua medida de maior impacto, que, aliás, ajudou a fazer a fama do PT, no geral, e de Lula, no particular. Daí uma mágoa de Paulo Renato com o PSDB.
Foi ele que universalizou a bolsa-escola, criada em Brasília por Cristovam Buarque e, ao mesmo tempo, embora sem tanta ênfase educativa, por José Roberto Teixeira. No final da sua gestão como ministro da Educação (1995-2002), eram milhões de famílias beneficiadas. Lula veio, então, ampliou o projeto e mudou o nome para Bolsa Família.
Ele me contou que era uma de suas frustrações. Tentou convencer a equipe de comunicação de Fernando Henrique Cardoso (que tinha dado o sinal verde) a fazer uma campanha publicitária sobre a bolsa-escola para ter uma marca de governo, mas foi boicotado.
Como era período de eleição, acharam que tinha jogada aí, afinal Paulo Renato era pré-candidato para a sucessão de FHC.
Na visão do ex-ministro, o PSDB perdeu então a chance de fixar uma marca social de sua gestão, facilitando o projeto de Lula. Até hoje os tucanos tentam recuperar o prejuízo de não terem uma marca social.
Gilberto Dimenstein, 53 anos, é membro do Conselho Editorial da Folha e criador da ONG Cidade Escola Aprendiz. Coordena o site de jornalismo comunitário da Folha. Escreve para a Folha.com às segundas-feiras.
Copiado de um site que eu não lembro qual é...
Nas suas Cartas de um Subdesenvolvido, Henfil contou a experiência de viver nos EUA e tentar, sem sucesso, emplacar como quadrinhista no mercado americano. Ele percebeu de cara que criar humor numa democracia era bem diferente do que numa ditadura como a do Brasil do AI-5. Citando:
“O americano não consegue ver onde está a força de uma charge que tem a palavra liberdade no meio, e só. E no Brasil, só da gente colocar esta palavra numa charge ou música, já deu o recado! Estamos desenvolvendo uma linguagem cifrada, língua do pê, que só nós entendemos e só nós percebemos a gravidade e qualidade. Se a gente escrever a palavra “liberdade” num papel branco, sem mais nada escrito, já está ameaçando. Já fez um enorme esforço criativo! Pois aqui tem que escrever o resto do livro”.
(Carta a Tárik de Souza, 7 de janeiro de 1974)
Sunday, June 26, 2011
Saturday, June 25, 2011
5.
[...]
Hoje a cidade acordou toda em contramão
Homens com raiva, buzinas, sirenes, estardalhaço
De volta à casa, na rua, recolhi um cão
Que, de hora em hora, me arranca um pedaço
[...]
Hoje o inimigo veio; veio me espreitar
Armou tocaia lá na curva do rio
Trouxe um porrete, um porrete a mode me quebrar
Mas eu não quebro, não, porque sou macio, viu?
Chico Buarque - Querido Diário
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3.
[...] Pensar e lembrar, dissemos, é o modo humano de deitar raízes, de cada um tomar seu lugar no mundo a que todos chegamos como estranhos. O que em geral chamamos de uma pessoa ou uma personalidade, distinta de um mero ser humano ou de um ninguém, nasce realmente desse processo que deita raízes. Nesse sentido, afirmei que é quase uma redundância falar de uma personalidade moral; sem dúvida, uma pessoa ainda pode ser de boa ou má índole, as suas inclinações podem ser generosas ou mesquinhas, ela pode ser agressiva ou dócil, franca ou dissimulada; pode ser dada a todos os tipos de vícios, assim como pode nascer inteligente ou estúpida, bela ou feia, amável ou um tanto rude. Tudo isso tem pouco a ver com as questões que nos preocupam nesse momento. Caso se trate de um ser pensante, arraigado em seus pensamentos e lembranças e, assim, conhecedor de que tem de viver consigo mesmo, haverá limites para o que se pode permitir fazer, e esses limites não lhe serão impostos de fora, mas auto-estabelecidos. Esses limites podem mudar de maneira considerável e desconfortavelmente de pessoa para pessoa, de país para país, de século para século: mas o mal ilimitado e extremo só é possível quando essas raízes cultivadas a partir do eu, que automaticamente limitam as possibilidades, estão inteiramente ausentes. Elas estão ausentes quando os homens apenas deslizam sobre a superfície dos acontecimentos, quando se deixam levar adiante sem jamais penetrarem em qualquer profundidade de que possam ser capazes. Certamente, essa profundidade também muda de pessoa para pessoa, de século para século, tanto na sua qualidade específica quanto nas suas dimensões. Sócrates acreditava que ensinando as pessoas como pensar, como falar consigo mesmas, uma ação distinta da arte oratória de como persuadir e da ambição do sábio de ensinar o que pensar e como aprender, ele melhoraria seus concidadãos; mas se aceitamos esse pressuposto e perguntamos a Sócrates quais seriam as sanções para aquele famoso crime oculto dos olhos dos deuses e dos homens, a sua resposta só poderia ter sido: a perda dessa capacidade, a perda de estar só, e, como tentei ilustrar, com ela a perda da criatividade - em outras palavras, a perda do eu que constitui a pessoa.
[...] Pensar e lembrar, dissemos, é o modo humano de deitar raízes, de cada um tomar seu lugar no mundo a que todos chegamos como estranhos. O que em geral chamamos de uma pessoa ou uma personalidade, distinta de um mero ser humano ou de um ninguém, nasce realmente desse processo que deita raízes. Nesse sentido, afirmei que é quase uma redundância falar de uma personalidade moral; sem dúvida, uma pessoa ainda pode ser de boa ou má índole, as suas inclinações podem ser generosas ou mesquinhas, ela pode ser agressiva ou dócil, franca ou dissimulada; pode ser dada a todos os tipos de vícios, assim como pode nascer inteligente ou estúpida, bela ou feia, amável ou um tanto rude. Tudo isso tem pouco a ver com as questões que nos preocupam nesse momento. Caso se trate de um ser pensante, arraigado em seus pensamentos e lembranças e, assim, conhecedor de que tem de viver consigo mesmo, haverá limites para o que se pode permitir fazer, e esses limites não lhe serão impostos de fora, mas auto-estabelecidos. Esses limites podem mudar de maneira considerável e desconfortavelmente de pessoa para pessoa, de país para país, de século para século: mas o mal ilimitado e extremo só é possível quando essas raízes cultivadas a partir do eu, que automaticamente limitam as possibilidades, estão inteiramente ausentes. Elas estão ausentes quando os homens apenas deslizam sobre a superfície dos acontecimentos, quando se deixam levar adiante sem jamais penetrarem em qualquer profundidade de que possam ser capazes. Certamente, essa profundidade também muda de pessoa para pessoa, de século para século, tanto na sua qualidade específica quanto nas suas dimensões. Sócrates acreditava que ensinando as pessoas como pensar, como falar consigo mesmas, uma ação distinta da arte oratória de como persuadir e da ambição do sábio de ensinar o que pensar e como aprender, ele melhoraria seus concidadãos; mas se aceitamos esse pressuposto e perguntamos a Sócrates quais seriam as sanções para aquele famoso crime oculto dos olhos dos deuses e dos homens, a sua resposta só poderia ter sido: a perda dessa capacidade, a perda de estar só, e, como tentei ilustrar, com ela a perda da criatividade - em outras palavras, a perda do eu que constitui a pessoa.
Hanna Arendt - Algumas questões de filosofia moral III - Responsabilidade e Julgamento
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2.
Por fim, permitam-me lembrar-lhes um dos fenômenos mais assustadores em nossas experiências morais mais recentes. Suponho que todos os senhores já ouviram falar ao menos daqueles assassinos do Terceiro Reich que não só levavam uma impecável vida familiar, como gostavam de passar o seu tempo de lazer lendo Hölderlin e escutando Bach, provando (como se houvesse falta de provas a esse respeito) que os intelectuais podem ser tão facilmente induzidos ao crime quanto qualquer outra pessoa. Mas a sensibilidade e um gosto pelas assim chamadas coisas elevadas da vida não são capacidades do espírito? Sem dúvida, mas a capacidade de apreciação não tem nada a ver com o pensamento, que, devemos lembrar, é uma atividade, e não o desfrute passivo de algo. Na medida em que o pensamento é uma atividade, ele pode ser traduzido em produtos, em coisas como poemas, música ou pinturas. Todas as coisas desse tipo são realmente coisas do pensamento, assim como a mobília e os objetos de nosso uso diário são corretamente chamados objetos de uso: uns são inspirados pelo pensamento e os outros são inspirados pelo uso, por alguma necessidade e carência humana. O ponto importante sobre esses assassinos altamente cultos é que nem um único deles compôs um poema digno de ser lembrado, uma música digna de ser escutada, ou pintou um quadro que alguém gostaria de dependurar nas suas paredes. Sem dúvida, é necessário mais do que o pleno exercício da capacidade de pensar (thoughtfulness) para compor um bom poema, uma música ou pintar um quadro - é necessário um talento especial. Mas nenhum talento suportará a perda de integridade que experimentamos quando perdemos essa capacidade muito comum de pensar e lembrar.
Por fim, permitam-me lembrar-lhes um dos fenômenos mais assustadores em nossas experiências morais mais recentes. Suponho que todos os senhores já ouviram falar ao menos daqueles assassinos do Terceiro Reich que não só levavam uma impecável vida familiar, como gostavam de passar o seu tempo de lazer lendo Hölderlin e escutando Bach, provando (como se houvesse falta de provas a esse respeito) que os intelectuais podem ser tão facilmente induzidos ao crime quanto qualquer outra pessoa. Mas a sensibilidade e um gosto pelas assim chamadas coisas elevadas da vida não são capacidades do espírito? Sem dúvida, mas a capacidade de apreciação não tem nada a ver com o pensamento, que, devemos lembrar, é uma atividade, e não o desfrute passivo de algo. Na medida em que o pensamento é uma atividade, ele pode ser traduzido em produtos, em coisas como poemas, música ou pinturas. Todas as coisas desse tipo são realmente coisas do pensamento, assim como a mobília e os objetos de nosso uso diário são corretamente chamados objetos de uso: uns são inspirados pelo pensamento e os outros são inspirados pelo uso, por alguma necessidade e carência humana. O ponto importante sobre esses assassinos altamente cultos é que nem um único deles compôs um poema digno de ser lembrado, uma música digna de ser escutada, ou pintou um quadro que alguém gostaria de dependurar nas suas paredes. Sem dúvida, é necessário mais do que o pleno exercício da capacidade de pensar (thoughtfulness) para compor um bom poema, uma música ou pintar um quadro - é necessário um talento especial. Mas nenhum talento suportará a perda de integridade que experimentamos quando perdemos essa capacidade muito comum de pensar e lembrar.
Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral II - Responsabilidade e Julgamento
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1.
A primeira coisa que nos chama a atenção nos diálogos socráticos de Platão é que são todos aporéticos. A argumentação ou não leva a lugar nenhum ou anda em círculos.
A primeira coisa que nos chama a atenção nos diálogos socráticos de Platão é que são todos aporéticos. A argumentação ou não leva a lugar nenhum ou anda em círculos.
[...] Nenhum dos logoi, os argumentos, jamais fica parado; movem-se ao redor porque Sócrates, ao fazer perguntas para as quais ele não sabe as respostas, coloca-os em movimento. E quando as afirmações perfazem o círculo completo é em geral Sócrates que, com prazer, propõe começar tudo de novo [...]
[...] Entretanto, Sócrates, de quem comumente se diz que teria acreditado na possibilidade de ensinar a virtude, parece ter sustentado de fato que falar e pensar sobre a piedade, a justiça, a coragem e tudo o mais, poderia tornar os homens mais piedosos, mais justos, mais corajosos, mesmo que não lhes fossem dadas definições ou "valores" para orientar a sua conduta posterior. Aquilo em que Sócrates realmente acreditava a respeito dessas questões pode ser mais bem ilustrado pelas comparações que aplicava a si mesmo. Ele se chamava de moscardo e parteira, e, segundo Platão, foi chamado por outra pessoa de "arraia-elétrica", um peixe que paralisa e entorpece pelo contato, uma semelhança cuja propriedade ele reconheceu sob condição de que fosse compreendido que "a arraia-elétrica só paralisa os outros por estar ela própria paralisada. Não é que, sabendo eu próprio as respostas, deixe perplexas as outras pessoas. A verdade é, antes, que também as infecto com a perplexidade que eu próprio sinto". O que, sem dúvida, resume com muita clareza a única maneira em que o pensamento pode ser ensinado - exceto que Sócrates, como ele disse repetidas vezes, não ensinava nada pela simples razão de que nada tinha para ensinar; ele era "estéril" como as parteiras na Grécia, que já tinham passado da idade de dar à luz.
[...] Sócrates (comparado a) um moscardo [...] sabe como provocar os cidadãos que, sem ele, "continuarão a dormir calmamente pelo resto da vida", a menos que apareça outra pessoa para voltar a despertá-los. E a que ele os provoca? A pensar, a examinar as questões, uma atividade sem a qual a vida, segundo ele, não só não valia muito a pena como não era plenamente viva.
[..] Parece que ele, ao contrário dos filósofos profissionais, sentia-se impelido a verificar se os seus semelhantes partilhavam as suas perplexidades - e esse impulso é totalmente diferente da inclinação a encontrar soluções para enigmas para então demonstrá-las aos outros.
Hannah Arendt - Pensamento e considerações morais - Responsabilidade e Julgamento
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Friday, June 24, 2011
Os decassílabos de Chico Buarque
Hoje topei com alguns conhecidos meus
Me dão bom-dia, cheios de carinho
Dizem pra eu ter muita luz, ficar com Deus
Eles têm pena de eu viver sozinho
Hoje a cidade acordou em contramão
Homens com raiva, sirenes, estardalhaço
De volta à casa recolhi um cão
Que, de hora em hora, me arranca um pedaço
Hoje pensei em ter religião
De alguma ovelha fazer sacrifício
Por uma estátua ter adoração
Amar uma mulher sem orifício
Hoje, afinal, conheci o amor
E era o amor uma obscura trama
Não bato nela nem com uma flor
Mas se ela chora, desejo me inflama
Hoje o inimigo veio me espreitar
Armou tocaia na curva do rio
Trouxe um porrete a mode me quebrar
Mas eu não quebro porque sou macio
Wednesday, June 15, 2011
Tutty Vasques
Ajude Marina a sair do PV!
Depois que a demissão do Palocci pegou no tranco, a notícia enguiçada do momento passou a ser a saída de Marina Silva do PV. Especulado há meses, o bota-fora da ex-musa do partido ainda não tem data para acontecer, se é que vai acontecer. Dependesse só da vontade dela, a decisão seria tomada após consulta aos “núcleos vivos da sociedade”, através de plebiscito. A ex-ministra, como se sabe, se amarra num referendo!
Plínio de Arruda Sampaio, o bom velhinho que disputou com ela a presidência da República, foi o primeiro pegar no pé de Marina por causa dessa mania de querer repassar responsabilidades quando solicitada a declarar posições pessoais. Foi assim nos debates sobre a legalização da maconha e do aborto, lembra?
Ninguém sabe até hoje se Marina é contra ou a favor, muito pelo contrário, mas desta vez, convenhamos, qual é a dúvida? Não importa se a festa de despedida for no Pacaembu, como quer Fábio Feldmann, ou no Engenhão, como é desejo de Alfredo Sirkis, a saída de Marina Silva do PV vai ser boa pra todo mundo, até para quem não vai junto com ela. Quanto antes, portanto, melhor. Se o Gabeira e o Gil ajudarem a empurrar, a notícia anda. Vamos lá, rapazes, força!
Wednesday, June 08, 2011
Tuesday, June 07, 2011
Sunday, June 05, 2011
Reflexos de uma vocação libertária
Lançado em 1963, Sobre a Revolução, de Hannah Arendt, que ganha nova edição no País, permanece atual ao tratar da busca da felicidade pública por meio do fim da opressão - algo verificado, por exemplo, na primavera árabe de 2011
Celso Lafer - O Estado de S.Paulo
O que é uma Revolução? O que distingue um revolucionário de um revoltado - que é um insatisfeito - e de um rebelde - que se levanta contra a autoridade? Por que um golpe de Estado, que provoca uma mudança de governo e uma ruptura da ordem jurídica, não é a expressão de uma Revolução? O que separa um reformista de um revolucionário? Por que uma mudança radical como a representada pela Revolução Industrial, que transformou a economia, ou a Revolução Feminina, que alterou os costumes da sociedade, não tem a aura da Revolução Francesa ou da Revolução Russa que foram precedidas pela violência de um movimento revolucionário?
Estas perguntas permanecem na agenda da discussão pública. Delas trata, esclarecendo, Hannah Arendt em Sobre a Revolução. Daí uma razão do interesse do seu livro que, em nova e cuidadosa tradução para o português de Denise Bottmann, acaba de ser publicado pela Companhia das Letras.
A primeira edição do livro, publicada pela Viking Press de Nova York, é de 1963; a segunda, revista pela autora, é de 1965. A edição de 2006, inserida nos clássicos da Penguin, contém uma importante apresentação de Jonathan Schell que integra, igualmente, esta edição da Companhia das Letras. Schell destaca a atualidade do livro sublinhando a pertinência da reflexão arendtiana para a análise da onda das revoluções democráticas posteriores à redação do livro - da Revolução dos Cravos, de Portugal, às do Leste Europeu, nos processos que levaram à derrocada da União Soviética. A elas pode-se acrescentar as da primavera árabe de 2011. Por isso, Sobre a Revolução tem uma das características de um livro "clássico" - e como tal foi qualificado pela Penguin. Com efeito, continua propiciando caminhos para o entendimento do mundo atual, não obstante ter sido concebido e redigido no distinto contexto histórico da década de 1960, caracterizado pelo confronto entre os EUA - herdeiros do legado da Revolução Americana - e a URSS - herdeira, na época, do legado da Revolução Russa.
Hannah Arendt abre o seu livro explicando que a guerra tem em comum com a revolução a presença da violência e, portanto, o problema da sua justificativa. Esta, no caso de uma Revolução, diz respeito à possibilidade de um novo início, fruto de uma aspiração trazida pelo potencial da convergência entre libertação e liberdade. Revolução não se confunde, portanto, como ela diz, com rebelião e revolta que não apontam para a instauração de uma nova liberdade. Tampouco se identifica com o golpe de Estado, que não carrega o pathos da novidade, tem a sua origem no palácio e não na praça, que é o espaço político do exercício da liberdade motivador da Revolução. A Revolução não se assemelha ao reformismo nem às mudanças substantivas mas aluvionais como as trazidas pela Revolução Industrial ou pela Revolução Feminina, pois tem como nota distintiva não apenas a mudança mas o movimento da tempestade revolucionária, de que falava Robespierre.
A Revolução vem à tona por meio da violência. Esta não a explica, assim como a mudança que não dá conta do seu significado. O fenômeno da Revolução, aponta Hannah Arendt, tem como característica "quando a mudança ocorre no sentido de criar um novo início; quando a violência é empregada para constituir uma forma de governo totalmente diferente e para gerar a formação de um novo corpo político", e "quando a libertação da opressão visa pelo menos à constituição da liberdade".
Foi a aura da Revolução Francesa que incendiou o mundo, aponta Hannah Arendt ao propor a "ideia a realizar" da coincidência entre liberdade e um novo início. Não teve precedentes históricos, pois não foi entendida e historicamente recepcionada como uma indiferenciada expressão da mudança política mas sim como algo radicalmente novo: a fundação do novus ordo saeclorum, instaurador da legitimidade do poder. O impacto da Revolução Francesa, no campo das ideias, trouxe um novo conceito de História na filosofia de Hegel. Este conceito, por sua vez, exerceu uma influência direta sobre os revolucionários dos séculos 19 e 20, que absorveram o conceito nas lições de Marx e que passaram a enxergar a Revolução com base nas categorias hegelianas, como um libertário desenlace histórico da convergência entre necessidade e violência.
O tema recorrente do livro é uma grande reflexão sobre, de um lado, a validade das aspirações de liberdade que motivaram, no mundo moderno, o fenômeno revolucionário e, de outro, as razões dos descaminhos das Revoluções. Estes descaminhos integram o tema arendtiano da ruptura - vale dizer o das descontinuidades entre o passado e o futuro, assinaladores dos desdobramentos da modernidade - pois não trouxeram a constituição da liberdade. Explicam, ao mesmo tempo, a relevância do que Hannah Arendt considera o tesouro perdido da tradição revolucionária - a da autogestão dos townhalls, dos conselhos, dos Räte, dos sovietes - pela qual, com sua vocação libertária e empenho na construção de uma comunidade política criativa e criadora, tinha apreço e afinidade
Hannah Arendt traz à colação, neste livro, a importância da Revolução Americana. Destaca que o espírito da Revolução Americana não teve o mesmo impacto no imaginário político que caracterizou a Revolução Francesa, mas realça tanto o significado desta experiência na criação de uma nova ordem quanto à densidade das teorias políticas dos seus pais fundadores, que estão na origem da República norte-americana. Esta não nasceu de uma necessidade histórica nem de um desenvolvimento orgânico, mas "de um ato deliberado empenhado na fundação da liberdade". Por isso as reflexões e as ações de John Adams, Jefferson, Hamilton, Madison ecoam nas páginas deste livro assim como as de Robespierre, Saint-Just, Condorcet, Marx e Lenin. A comparação e o contraste entre as Revoluções Americana e a Francesa tem como horizonte a preocupação arendtiana de examinar as condições da possibilidade de um mundo comum, livre da opressão e ensejador da liberdade política de participação no governo e nos assuntos públicos.
O pensamento de Hannah Arendt é denso e abrangente. Daí os riscos da simplificação da sua análise. Ciente destes riscos diria que o fulcro de Sobre a Revolução é a tese de que a busca da felicidade pública (à que não têm acesso os Homens em Tempos Sombrios para os quais o espaço público desapareceu ou encolheu) através da liberação da opressão - econômica, social, política, colonial - não leva, necessária ou automaticamente, à liberdade. Esta requer instituições políticas apropriadas, a constitutio libertatis. Sem estas instituições não se efetiva a motivação revolucionária de uma nova ordem que assegure a permanência do espaço público para o exercício da liberdade. Daí a especificidade e a autonomia da política, que não se reduz à questão social e que Hannah Arendt ilumina no seu livro através da dicotomia liberação da opressão/construção da liberdade.
Na discussão da criação de instituições políticas, Hannah Arendt elaborou, com muito engenho, o significado fundacional do poder constituinte originário e explora o papel da Constituição como a convenção que enseja a gramática da ação e a sintaxe do poder. Na análise da experiência da Revolução Americana e dos desdobramentos no tempo de sua construção institucional chama atenção para o vínculo virtuoso entre República e Federação e mostra o significado da Suprema Corte e do Senado como instâncias de autoridade distintas do exercício da ação conjunta do poder.
Tanto no mando quanto no desmando, na política sempre ocorre o enlace, entre as forças impessoais e históricas e o bom e o mau das paixões e dos sentimentos humanos. Numa Revolução, que é uma situação-limite, este enlace adquire uma intensidade própria, à qual Hannah Arendt dedica páginas de grande acuidade.
No trato das motivações que levam aos movimentos revolucionários, destaca os efeitos da hipocrisia dos governantes de regimes corruptos e prepotentes que instiga a violência dos governados. Na análise do que leva aos descaminhos revolucionários, realça a obsessão jacobina com a pureza da virtude que induz o terror revolucionário e destaca os riscos do voluntarismo na política que não leva em conta a pluralidade e a diversidade da condição humana.
Em Sobre a Revolução Hannah Arendt discute os equívocos da piedade e da compaixão promovidos pela contemplação da miséria dos deserdados. A compaixão e a piedade são incapazes de argumentação. Por isso, não dizem respeito à política e a sua intrusão neste âmbito acaba levando à destrutividade da violência. A compaixão e a piedade são sentimentos. Não são um princípio da ação como a solidariedade, que pode orientar o juízo político.
O bom e o mau que caracteriza os seres humanos - da generosidade ao ressentimento - estão presentes na vida política. Na análise desta dimensão da política, Hannah Arendt com frequência valeu-se, na sua obra, da literatura que nos dá acesso, como ela dizia citando Shakespeare, "às trevas do coração humano". Do mal absoluto na política ela tratou em Origens do Totalitarismo e em Eichmann em Jerusalém. Em Sobre a Revolução, avaliou as consequências da bondade absoluta. Instigada pela leitura de O Grande Inquisidor de Dostoievski e do Billy Budd de Melville, discute os riscos para a política da bondade absoluta - a bondade além da virtude e o mal além do vício - capaz de buscar impor, pelo terror, a virtude revolucionária. Mostra, assim, como é fundamental, na discussão do fenômeno e da motivação revolucionária, a percepção da atuação concreta dos atores políticos que os ideólogos, com as suas paixões e sentimentos e as ideologias, nas suas abstrações, não alcançam.
CELSO LAFER É PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E DA ABL. PRESIDENTE DA FAPESP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE
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Saturday, June 04, 2011
Quanto aos homens da revolução ( * ), havia apenas duas lendas de fundação que lhes eram familiares: a história bíblica do êxodo das tribos de Israel saindo do Egito e a história ( * ) de Virgílio sobre as andanças de Eneias depois de fugir de Troia em chamas. Ambas são lendas de libertação, a primeira sobre a libertação da escravidão e a segunda sobre a fuga à destruição, e ambas têm como centro uma promessa futura de liberdade, a conquista de uma terra prometida ou a fundação de uma nova cidade. Quanto à revolução, essas histórias parecem encerrar uma lição importante; numa estranha coincidência, as duas insistem num hiato entre o fim da velha ordem e o início da nova, de forma que não importa muito, neste contexto, se o hiato é preenchido pelas erranças desoladas das tribos de Israel no deserto ou pelas aventuras e perigos que Eneias enfrenta antes de chegar à costa italiana. Se essas lendas ensinam alguma coisa, é que a liberdade não é o resultado automático da libertação, da mesma forma que o novo início não é a consequência automática do fim.
[...] Faz parte da própria natureza de um início que ele traga em si uma dose de completa arbitrariedade. Não só o início não está ligado a uma sólida cadeia de causas e efeitos, uma cadeia em que cada efeito se torna a causa de futuros desenvolvimentos, como ainda não há nada, por assim dizer, a que ele possa se segurar; é como se saísse do nada no tempo e no espaço. Por um momento, o momento do início, é como se o iniciador tivesse abolido a própria sequencia da temporalidade, ou como se os atores fossem lançados fora da ordem temporal e de sua continuidade. O problema do início, claro, aparece primeiramente na reflexão e especulação sobre a origem do universo, e conhecemos a solução hebraica para tais perplexidades - o postulado de um Deus Criador que está fora de sua criação, da mesma forma como o artesão está fora do objeto que fez. Em outras palavras, o problema do início é resolvido com a introdução de um iniciador cujo próprio início não está mais sujeito a indagações pois vai "da eternidade à eternidade".
[...] Por mais que as reações mentais involuntárias dos homens das revoluções ainda pudessem estar dominadas pela tradição hebraico-cristã, não resta dúvida de que o esforço consciente deles em lidar com as perplexidades do início, tais como aparecem no próprio ato de fundação, recorreu não ao "No início Deus criou o céu e a terra", mas sim à "antiga prudência", à sabedoria política da Antiguidade, em especial à Antiguidade romana. [...] A história romana tinha como centro a ideia de fundação, e é impossível entender qualquer dos grandes conceitos políticos romanos, como autoridade, tradição, religião, lei etc., sem considerar o grande feito que está no início da história e da cronologia de Roma, o fato da urbis condita, a fundação da cidade eterna.
[...] Em nosso contexto, porém, é mais importante observar que (para os próprios romanos) nem mesmo a fundação era entendida como um início absolutamente novo. Roma - ela era o ressurgimento de Troia e o restabelecimento de alguma cidade-estado que existira antes e cujo fio de continuidade e tradição nunca se rompera. [...] O que importa [...] não é tanto a noção profundamente romana de que todas as fundações são restabelecimentos e reconstruções, e sim a ideia em certa medida relacionada, mas distinta, de que os homens estão capacitados para a tarefa, que é um paradoxo em termos lógicos, de criar um novo início porque eles mesmos são novos inícios e, portanto, iniciadores, que a própria capacidade de iniciar se radica na natalidade, no fato de que os seres humanos aparecem no mundo em virtude do nascimento.
Seja como for, ou como tenha sido, quando os americanos decidiram criar uma variante do magnus ordo saeclorum virgiliano, alterando-o para novus ordo saeclorum, admitiam que não se tratava mais de fundar "Roma de novo", e sim de fundar uma "nova Roma", que a linha de continuidade que unia a política ocidental à fundação da cidade eterna e ligava esta fundação, por sua vez, às memórias pré-históricas da Grécia e de Troia tinha se rompido e não poderia ser restaurada. E era inevitável admiti-lo.
[...] Assim, pelo visto, os homens da Revolução Americana, que tinham uma percepção quase obsessiva quanto à absoluta novidade daquele empreendimento, viram-se inevitavelmente apanhados em algo para o qual a verdade histórica e a verdade lendária de suas tradições não podiam oferecer nenhum auxílio ou precedente. E, no entanto, [...] podem ter percebido vagamente que existe uma solução para as perplexidades do início, a qual não requer nenhum absoluto para romper o círculo vicioso em que parecem presas todas as primeiras coisas. O que salva o ato de iniciar de sua própria arbitrariedade é que ele traz dentro de si seu próprio princípio, ou, em termos mais precisos, que o início e o princípio, principium e princípio, não só estão relacionados entre si, mas são simultâneos. O absoluto do qual o início há de derivar sua validade e que, por assim dizer, deve salvá-lo de sua arbitrariedade intrínseca é o princípio que faz seu aparecimento no mundo junto com ele. A maneira como o iniciador começa o que pretende fazer estabelece a lei da ação para os que se uniram a ele a fim de participar e realizar o empreendimento. Como tal, o princípio inspira os atos que se seguirão e continua a aparecer enquanto dura a ação. E não é apenas nossa língua que ainda deriva o "princípio" do latim principium, sugerindo assim tal solução para o problema que, de outra maneira, seria insolúvel, a saber, o problema de um absoluto na esfera dos assuntos humanos, que é relativa por definição.
[...] Por grandiosas e significativas que sejam tais percepções, elas só passam a se aplicar à esfera política depois de se reconhecer que estão em flagrante oposição com as velhas noções, mas ainda correntes, sobre o papel dominante da violência, necessária para todas as fundações e, portanto, supostamente inevitável em todas as revoluções. Sob este aspecto, o curso da Revolução Americana conta uma história inesquecível e pode ensinar uma lição sem igual; pois essa revolução não eclodiu, mas foi feita por homens deliberando em conjunto com a força dos compromissos mútuos. O princípio que veio à luz naqueles anos cruciais quando foram lançadas as fundações - não pela força de um arquiteto, mas pelo poder somado de muitos - era o princípio da promessa mútua e da deliberação comum; e de fato foi o próprio acontecimento que decidiu, como havia insistido Hamilton, que os homens "são realmente capazes de estabelecer um bom governo a partir da reflexão e da escolha", que não estão "destinados para sempre a depender do acaso e da força para suas constituições políticas".
Hannah Arendt - Sobre a Revolução - capítulo 5. Fundação II: Novus ordo saeclorum
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