Quanto aos homens da revolução ( * ), havia apenas duas lendas de fundação que lhes eram familiares: a história bíblica do êxodo das tribos de Israel saindo do Egito e a história ( * ) de Virgílio sobre as andanças de Eneias depois de fugir de Troia em chamas. Ambas são lendas de libertação, a primeira sobre a libertação da escravidão e a segunda sobre a fuga à destruição, e ambas têm como centro uma promessa futura de liberdade, a conquista de uma terra prometida ou a fundação de uma nova cidade. Quanto à revolução, essas histórias parecem encerrar uma lição importante; numa estranha coincidência, as duas insistem num hiato entre o fim da velha ordem e o início da nova, de forma que não importa muito, neste contexto, se o hiato é preenchido pelas erranças desoladas das tribos de Israel no deserto ou pelas aventuras e perigos que Eneias enfrenta antes de chegar à costa italiana. Se essas lendas ensinam alguma coisa, é que a liberdade não é o resultado automático da libertação, da mesma forma que o novo início não é a consequência automática do fim.
[...] Faz parte da própria natureza de um início que ele traga em si uma dose de completa arbitrariedade. Não só o início não está ligado a uma sólida cadeia de causas e efeitos, uma cadeia em que cada efeito se torna a causa de futuros desenvolvimentos, como ainda não há nada, por assim dizer, a que ele possa se segurar; é como se saísse do nada no tempo e no espaço. Por um momento, o momento do início, é como se o iniciador tivesse abolido a própria sequencia da temporalidade, ou como se os atores fossem lançados fora da ordem temporal e de sua continuidade. O problema do início, claro, aparece primeiramente na reflexão e especulação sobre a origem do universo, e conhecemos a solução hebraica para tais perplexidades - o postulado de um Deus Criador que está fora de sua criação, da mesma forma como o artesão está fora do objeto que fez. Em outras palavras, o problema do início é resolvido com a introdução de um iniciador cujo próprio início não está mais sujeito a indagações pois vai "da eternidade à eternidade".
[...] Por mais que as reações mentais involuntárias dos homens das revoluções ainda pudessem estar dominadas pela tradição hebraico-cristã, não resta dúvida de que o esforço consciente deles em lidar com as perplexidades do início, tais como aparecem no próprio ato de fundação, recorreu não ao "No início Deus criou o céu e a terra", mas sim à "antiga prudência", à sabedoria política da Antiguidade, em especial à Antiguidade romana. [...] A história romana tinha como centro a ideia de fundação, e é impossível entender qualquer dos grandes conceitos políticos romanos, como autoridade, tradição, religião, lei etc., sem considerar o grande feito que está no início da história e da cronologia de Roma, o fato da urbis condita, a fundação da cidade eterna.
[...] Em nosso contexto, porém, é mais importante observar que (para os próprios romanos) nem mesmo a fundação era entendida como um início absolutamente novo. Roma - ela era o ressurgimento de Troia e o restabelecimento de alguma cidade-estado que existira antes e cujo fio de continuidade e tradição nunca se rompera. [...] O que importa [...] não é tanto a noção profundamente romana de que todas as fundações são restabelecimentos e reconstruções, e sim a ideia em certa medida relacionada, mas distinta, de que os homens estão capacitados para a tarefa, que é um paradoxo em termos lógicos, de criar um novo início porque eles mesmos são novos inícios e, portanto, iniciadores, que a própria capacidade de iniciar se radica na natalidade, no fato de que os seres humanos aparecem no mundo em virtude do nascimento.
Seja como for, ou como tenha sido, quando os americanos decidiram criar uma variante do magnus ordo saeclorum virgiliano, alterando-o para novus ordo saeclorum, admitiam que não se tratava mais de fundar "Roma de novo", e sim de fundar uma "nova Roma", que a linha de continuidade que unia a política ocidental à fundação da cidade eterna e ligava esta fundação, por sua vez, às memórias pré-históricas da Grécia e de Troia tinha se rompido e não poderia ser restaurada. E era inevitável admiti-lo.
[...] Assim, pelo visto, os homens da Revolução Americana, que tinham uma percepção quase obsessiva quanto à absoluta novidade daquele empreendimento, viram-se inevitavelmente apanhados em algo para o qual a verdade histórica e a verdade lendária de suas tradições não podiam oferecer nenhum auxílio ou precedente. E, no entanto, [...] podem ter percebido vagamente que existe uma solução para as perplexidades do início, a qual não requer nenhum absoluto para romper o círculo vicioso em que parecem presas todas as primeiras coisas. O que salva o ato de iniciar de sua própria arbitrariedade é que ele traz dentro de si seu próprio princípio, ou, em termos mais precisos, que o início e o princípio, principium e princípio, não só estão relacionados entre si, mas são simultâneos. O absoluto do qual o início há de derivar sua validade e que, por assim dizer, deve salvá-lo de sua arbitrariedade intrínseca é o princípio que faz seu aparecimento no mundo junto com ele. A maneira como o iniciador começa o que pretende fazer estabelece a lei da ação para os que se uniram a ele a fim de participar e realizar o empreendimento. Como tal, o princípio inspira os atos que se seguirão e continua a aparecer enquanto dura a ação. E não é apenas nossa língua que ainda deriva o "princípio" do latim principium, sugerindo assim tal solução para o problema que, de outra maneira, seria insolúvel, a saber, o problema de um absoluto na esfera dos assuntos humanos, que é relativa por definição.
[...] Por grandiosas e significativas que sejam tais percepções, elas só passam a se aplicar à esfera política depois de se reconhecer que estão em flagrante oposição com as velhas noções, mas ainda correntes, sobre o papel dominante da violência, necessária para todas as fundações e, portanto, supostamente inevitável em todas as revoluções. Sob este aspecto, o curso da Revolução Americana conta uma história inesquecível e pode ensinar uma lição sem igual; pois essa revolução não eclodiu, mas foi feita por homens deliberando em conjunto com a força dos compromissos mútuos. O princípio que veio à luz naqueles anos cruciais quando foram lançadas as fundações - não pela força de um arquiteto, mas pelo poder somado de muitos - era o princípio da promessa mútua e da deliberação comum; e de fato foi o próprio acontecimento que decidiu, como havia insistido Hamilton, que os homens "são realmente capazes de estabelecer um bom governo a partir da reflexão e da escolha", que não estão "destinados para sempre a depender do acaso e da força para suas constituições políticas".
Hannah Arendt - Sobre a Revolução - capítulo 5. Fundação II: Novus ordo saeclorum
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