[...] A palavra é "filisteísmo". Sua origem, um pouco mais antiga que seu emprego específico, não possui grande importância; ela foi utilizada a princípio, no jargão universitário alemão, para distinguir burgueses de togados; a associação bíblica já indicava, porém, um inimigo numericamente superior e em cujas mãos se pode cair. Quando foi usado pela primeira vez como termo [...] designava uma mentalidade que julgava todas as coisas em termos de utilidade imediata e de "valores" materiais, e que, por conseguinte, não tinha consideração alguma por objetos e ocupações inúteis tais como os implícitos na cultura e na arte.
[...] o status objetivo do mundo cultural, na medida em que contém coisas tangíveis - livros e pinturas, estátuas, edifícios e música - compreende e testemunha todo o passado registrado de países, nações e, por fim, da humanidade. Como tais, o único critério não-social e autêntico para o julgamento desses objetos especificamente culturais é sua permanência relativa e mesmo sua eventual imortalidade. Somente o que durará através dos séculos pode se pretender em última instância um objeto cultural. O ponto crucial da questão é que tão logo as obras imortais do passado se tornam objeto de refinamento social e individual e do status correspondente, perdem sua qualidade mais importante e elementar, qual seja, a de apoderar-se do leitor ou espectador, comovendo-o durante os séculos.
[..] O que irritava no filisteu educado não era que lesse os clássicos, mas que ele o fizesse movido pelo desejo dissimulado de auto-aprimoramento, continuando completamente alheio ao fato de que Shakespeare ou Platão pudessem ter a dizer-lhes coisas mais importantes do que a maneira de se educar; o lamentável era que ele escapasse para uma região de "pura poesia" para manter a realidade fora de sua vida - coisas "prosaicas" como uma crise das batatas, por exemplo - ou para contemplá-la através de um véu de "doçura e luz".
Hannah Arendt - A Crise na Cultura: Sua Importância Social e Política - Entre o Passado e o Futuro



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