E ao descer os degraus a impressão que desfez a sua perturbada autocomunhão foi a duma máscara sem alegria refletindo o cair da tarde gravado lá na soleira do colégio. E, então, a sombra da vida do colégio passou gravemente por sobre a sua consciência. O que o esperava era uma vida grave, ordenada e sem paixão, uma vida sem cuidados materiais. Perguntou a si mesmo como iria passar a sua primeira noite de noviciado e com que pasmo iria acordar na manhã seguinte, em pleno dormitório. O incômodo odor dos compridos corredores de Clongowes veio-lhe outra vez; e ouviu o discreto murmúrio das chamas dos bicos de gás. Imediatamente, de todas as partes do seu ser um desassossego começou a se irradiar. Um aceleramento febril do seu pulso seguiu-se a isso; e um tumulto de vozes sem sentido dirigia confusamente, para aqui e para acolá, seu raciocínio. Seus pulmões dilatavam-se e sufocavam como se estivessem inalando um ar viciado insuportável; e sentiu de novo o cheiro quente e viciado que pairava nos banheiros, em Clongowes, por cima da água parada, cor de turfa.
Um instinto qualquer, que essas recordações acordaram, e mais forte do que a educação ou a piedade, acelerava-se dentro dele ante a aproximação a esta vida, um instinto agudo e hostil, que o armava contra a aceitação. O frio e a ordem dessa vida repeliam-no. Viu-se, levantando-se na friagem da manhã e descendo em fila com os demais para a missa bem cedo, tentando, em vão, lutar, ajudado por suas orações, com o seu estômago que, enjoado e fraco, o fazia desfalecer. Viu-se sentado durante o jantar, com a comunidade dum colégio. Que faria, então, dessa sua timidez, de tão profundas raízes, que sempre o impedia de comer ou beber sob tetos de estranhos? Que seria feito do orgulho do seu espírito que sempre o fizera considerar-se um ser à parte em todas as ordens?
O Reverendo Stephen Dedalus, S. J.
O seu nome, nessa nova vida, pulou em caracteres diante dos seus olhos; e a isso se seguiu uma sensação mental de uma cara indefinida ou, melhor, duma cor de cara. A cor esmaeceu, ficando, porém, logo forte como a mudança para a vermelhidão dum pálido tijolo avermelhado. Seria essa a vermelhidão crua, quase apoplética, que tantas vezes vira, nas manhãs hibernais, sobre as papadas escanhoadas dos padres? Uma cara sem olhos, azedamente contraída e devota, fechada com manchas róseas de raiva sufocada. Pois não era isso um espectro mental da face dum desses jesuítas que certos meninos apelidavam Queixo de Lanterna e a um outro Campbell, o Velhaco?
Ia nesse instante passando diante da casa dos jesuítas na Gardimer Street e vagamente se interrogou qual janela viria a ser a sua, caso ingressasse para a ordem. E, então, se admirou da confusão do seu espanto, da distância de sua própria alma daquilo que até então imaginara o seu santuário, da frágil prisão que durante tantos anos de ordem e de obediência o contivera, quando um ato definitivo e irrevogável ameaçava pôr fim, para sempre, no tempo e na eternidade, à sua liberdade. A voz do diretor, concitando-o com os altivos conclames da igreja e com o mistério e a força do sacerdócio, repetia-se preguiçosamente na sua memória. A sua alma estivera lá mas não ouvira e não concordara, e sabia, agora, que a exortação que tinha escutado já tinha caído ociosamente em formal e mera conversa. Ele jamais haveria de balouçar o turíbulo diante do tabernáculo, como padre. O seu destino era ser arredio às ordens sociais ou religiosas. A sabedoria do apelo do padre não o tocara assim tão de pronto. Ele estava era destinado a aprender a sua própria sabedoria separado dos outros, ou a aprender a sabedoria dos outros vagando, ele, por entre as armadilhas do mundo.
As armadilhas do mundo eram os seus caminhos de pecado. Cairia. Ainda não tinha caído, mas haveria de cair silenciosamente, em dado instante. Não cair era dificílimo; e sentia o lapso silencioso da sua alma, tal como estaria dentro dum dado instante a vir, caindo, caindo, mas ainda não caída, ainda sem cair, mas prestes a cair.
Atravessou a ponte sobre a torrente do Tolka e volveu os olhos, friamente, por uns instantes, para o nicho azul desbotado da Santa Virgem, que estava, à maneira dum pássaro, empoleirado sobre uma viga no meio dum acampamento de míseras cabanas. Depois, virando-se para a esquerda, seguiu a ladeira que conduzia à sua casa. O cheiro azedo de couves em salmoura vinha até ele, dos jardins das cozinhas da margem em subida, sobre o rio. Sorriu ao pensar que era a desordem, o relaxamento e a confusão da casa paterna e a estagnação da vida vegetal que estavam para ganhar o dia na sua alma. Então uma curta risada saiu dos seus lábios ao pensar naquele solitário jardineiro, nas hortas detrás de sua casa e que haviam apelidado o Homem do Chapéu. Uma segunda risada, nascida da primeira depois duma pausa, saiu-lhe involuntariamente ao pensar em como o Homem do Chapéu trabalhava, considerando à sua volta os quatro pontos do céu e em seguida resignadamente enterrando a enxada na terra.
Escancarou a porta sem tramela, do alpendre, e cruzou a soleira desconjuntada da cozinha. O grupo dos seus irmãos e irmãs estava sentado em volta da mesa. O chá estava praticamente no fim, e apenas a última água a ferver posta sobre ele restava ainda ao fundo do pequeno bule e dos potes de geleia que faziam as vezes de xícaras. Restos de pão açucarado, em crostas e pedaços, escurecidos pelo chá em folha que caíra sobre eles, jaziam espalhados sobre a mesa. Pingos de chá, aqui e acolá, sobre a tábua da mesa, e uma faca, com cabo quebrado de marfim, esquecida dentro dum moedor estragado.
O triste reflexo, cinza e azul, do dia morrendo, entrava pela janela e pela porta aberta, alisando aos poucos súbito instinto de remorso no coração de Stephen. Tudo quanto a eles fora negado fora dado, sem razão, a ele, que era o mais velho; mas o lânguido clarão da tarde não mostrava em seus rostos traço algum de rancor. Sentou-se junto deles à mesa e perguntou onde estavam o pai e a mãe.
James Joyce - Retrato do artista quando jovem. Tradução de José Geraldo Vieira



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