Quando voltamos a pensar nos padrões e regras objetivos de comportamento segundo os quais agimos na vida cotidiana, sem pensar muito e sem julgar muito no sentido de Kant, isto é, quando de fato subordinamos os casos particulares às regras gerais sem jamais questioná-las, surge a questão de saber se não há realmente nada a que se agarrar quando somos solicitados a decidir que isto é certo e isto é errado, assim como decidimos que isto é belo e isto é feio. E a resposta a essa questão é sim e não. Sim - se com isso queremos dizer padrões geralmente aceitos como existentes em toda comunidade com respeito a maneiras e convenções, isto é, com respeito aos mores da moralidade. As questões de certo e errado não são decididas como as maneiras à mesa, como se não estivesse em jogo senão uma conduta aceitável. Mas há realmente algo a que o senso comum, quando se eleva ao nível de julgar, pode se agarrar e na verdade se agarra, e esse elemento é o exemplo. Kant disse: "Os exemplos são o andador do julgamento" (Crítica da Razão Pura, B174), e ele também chamou o "pensamento representativo" presente no julgamento em que os elementos particulares não podem ser subsumidos a algo geral pelo nome de "pensamento exemplar". Não podemos nos agarrar a nada geral, mas a algum elemento particular que se tornou um exemplo. De certo modo, esse exemplo lembra o edifício esquemático que trago no espírito para reconhecer como edifícios todas as estruturas que abrigam algo ou alguém. Mas o exemplo em contraposição ao esquema, deve nos dar uma diferença de qualidade. Deixem-me ilustrar essa diferença com um exemplo exterior à esfera moral. Perguntamos: O que é uma mesa? Em resposta a essa questão, invocamos a forma ou o esquema (kantiano) de uma mesa presente em nossa imaginação, com relação à qual toda mesa deve se conformar para ser uma mesa. Vamos chamar isso de a mesa esquemática (que, aliás, é mais ou menos a mesma coisa que a mesa "ideal", a ideia de mesa em Platão). Ou podemos reunir todos os tipos de mesa, despojá-los de suas qualidades secundárias, como cor, número de pernas, material etc., até chegarmos às qualidades mínimas comuns a todas. Vamos chamar esse objeto de a mesa abstrata. Ou podemos finalmente escolher entre as melhores dentre todas as mesas que conhecemos ou podemos imaginar, e dizer: este é um exemplo de como as mesas deveriam ser construídas e como deveria ser o seu aspecto. Vamos chamar isso de mesa exemplar. O que fizemos foi escolher, eximere, um caso particular que então se torna válido para outros casos particulares. A maioria das virtudes e vícios políticos são pensados em termos de indivíduos exemplares: Aquiles para coragem, Sólon para perspicácia (sabedoria) etc. Ou tome-se o exemplo do cesarismo ou bonapartismo: tomamos Napoleão ou César como um exemplo, isto é, como uma pessoa particular que exibe qualidades que são válidas para outros casos. Sem dúvida, aqueles que não sabem quem foram César ou Napoleão não podem compreender do que estamos falando se mencionamos o cesarismo ou o bonapartismo. Por isso a validade do conceito é restrita, mas dentro de suas restrições, ele é ainda assim válido.
Os exemplos, que são realmente o "andador" (go-cart) de todas as atividades de julgamento, constituem também, e de maneira especial, os sinais de orientação de todo pensamento moral. A amplitude com que a antiga afirmação, outrora muito paradoxal - é melhor sofrer o mal do que fazer o mal -, tem conquistado a concordância dos homens civilizados deve-se primariamente ao fato de que Sócrates deu um exemplo, e, assim, tornou-se exemplo para um certo modo de conduta e um certo modo de decidir entre o certo e o errado. Esta posição é recapitulada por Nietzsche - o último filósofo, somos tentados a pensar, que levou a sério as questões morais e que, portanto, analisou e pensou até o limite todas as posições morais anteriores. Ele disse o seguinte: "É uma desnaturação da moralidade separar o ato do agente, dirigir o ódio ou o desprezo contra o 'pecado' [o ato em vez do agente], acreditar que uma ação poderia ser boa ou má em si mesma. [... Em toda ação] tudo depende de quem a pratica, o mesmo 'crime' pode ser, num caso, o privilégio mais elevado e, noutro caso, o estigma [do mal]. Na verdade, é o apego a si daquele que julga que interpreta uma ação, ou melhor, o seu autor, com respeito à [...] semelhança ou 'não-afinidade' entre o agente e o juiz" (Vontade de poder, nº 292). Julgamos e distinguimos o certo do errado por termos presentes em nosso espírito algum incidente e alguma pessoa, ausentes no tempo ou no espaço, os quais se tornaram exemplos. Há muitos desses exemplos. Podem estar no passado remoto ou entre os vivos. Não precisam ser realidade histórica; como Jefferson certa vez observou: "O assassinato fictício de Duncan por Macbeth" provoca em nós "um horror tão grande da vilania quanto o assassinato real de Henrique IV", e um "senso vivo e duradouro de dever filial é incutido com mais eficácia num filho ou numa filha pela leitura de Rei Lear do que por todos os volumes áridos de ética e divindade que já foram escritos". (Isso é o que diz todo professor de ética e o que nenhum outro professor jamais deveria dizer).
Bem , obviamente não tenho nem o tempo nem provavelmente a capacidade de analisar todos os detalhes, isto é, de responder, mesmo da forma mais breve, a todas as perguntas que eu própria fiz durante essas quatro palestras. Só posso esperar que ao menos alguma indicação de como podemos pensar e nos mover nesses assuntos difíceis e urgentes tenha se tornado aparente. Como conclusão, permitam-me apenas mais dois comentários. De nossa discussão de hoje sobre Kant, espero que tenha se tornado mais claro porque propus, por meio de Cícero e Meister Eckhart, a questão de determinar com quem desejamos estar juntos. Tentei mostrar que as nossas decisões sobre o certo e o errado vão depender de nossa escolha da companhia, daqueles com quem desejamos passar a nossa vida. Uma vez mais, essa companhia é escolhida ao pensarmos em exemplos, em exemplos de pessoas mortas ou vivas, reais ou fictícias, e em exemplos de incidentes passados ou presentes. No caso improvável de que alguém venha nos dizer que preferiria o Barba Azul por companhia, tomando-o assim como seu exemplo, a única coisa que poderíamos fazer é nos assegurarmos de que ele jamais chegasse perto de nós. Mas receio que seja muito maior a probabilidade de que alguém venha nos dizer que não se importa com a questão e que qualquer companhia lhe será satisfatória. Em termos morais e até políticos, essa indiferença, embora bastante comum, é o maior perigo. Em conexão com isso, sendo apenas um pouco menos perigoso, está outro fenômeno moderno muito comum, a tendência difundida da recusa a julgar. A partir da recusa ou da incapacidade de estabelecer uma relação com os outros pelo julgamento surgem os skandala reais, os obstáculos reais que os poderes humanos não podem remover porque não foram causados por motivos humanos ou humanamente compreensíveis. Nisso reside o horror e, ao mesmo tempo, a banalidade do mal.
1965-6
Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral* - Responsabilidade e Julgamento
* Curso ministrado por Hannah Arendt na New School for Social Research em 1965. No ano seguinte, Arendt ministrou um curso semelhante na Universidade de Chicago, intitulado "Questões morais básicas"



No comments:
Post a Comment