Monday, August 29, 2011

I - Prática

VINICIUS TORRES FREIRE

Um programa de oposição radical

Economistas um dia associados ao governo tucano e a FHC têm um programa contra "tudo isso que está aí", como dizia o PT nos tempos fernandinos. 

É um programa de oposição ao desenvolvimentismo acidental dos petistas. À herança econômica do estatismo militar (1964-85). À ideia de implantar um Estado de bem-estar social no Brasil, "à moda europeia"; à Carta de 1988. 

Linhas de força desse "programa" foram apresentadas em seminário do Instituto FHC, na semana passada. Os expositores eram André Lara Rezende, Edmar Bacha, Gustavo Franco, Pedro Malan e Pérsio Arida. O seminário era um debate intelectual, não reunião partidária, claro. Mas o que se pregava por lá?

Primeiro, redução de gasto público e impostos de modo a permitir o aumento da poupança, do poder de decisão privado sobre poupança e investimento e, de quebra, a queda dos juros. 

Não se trata só da ladainha sobre gasto excessivo e inflação. Não se trata de coisa pequena, mas: 

1) da limitação legal da despesa pública (ideia de Malan); 

2) de equilíbrio orçamentário que dê conta não só do deficit anual (2,2% do PIB) mas ainda da monstruosa rolagem da dívida que deveria ser amortizada anualmente (17% do PIB. Ideia de Franco); 

3) de reforma fiscal-constitucional que reconhecesse a ilusão de que poderemos ter um "welfare state" europeu (Malan eFranco). 

Segundo, propôs-se privatização, claro. Mas não só de empresas restantes ou da infraestrutura de serviços públicos. De um modo metafórico, mas não muito, propôs-se a "privatização" das reservas internacionais (ativos e moedas conversíveis comprados pelo BC, grosso modo dólares). 

Isto é, sugeriu-se a liberdade geral de manter moeda no exterior (o que, hoje, pouparia o governo/BC de gastar na compra de dólares a fim de conter a valorização do real). 

Em suma, pede-se a abertura da fronteira final das finanças (ideias de Franco e Arida), o que redundaria num mercado de câmbio mais equilibrado, além de reduzir ineficiências e incertezas que prejudicam investimentos do e no Brasil etc. 

Propôs-se privatizar os recursos ou a gestão dos fundos de poupança obrigatória, como FGTS e FAT (Arida e Franco). Ou dar cabo do crédito dirigido por leis ou pelo governo (o dinheiro da poupança para habitação; o crédito rural). 

Em 2010, o FGTS bancou investimentos de R$ 45 bilhões (63% em habitação, 24% em infraestrutura, 10% em saneamento). Dos R$ 41 bilhões do FAT, 50% foram para seguro-desemprego, 21,5% para o abono salarial e 11,5% para o BNDES. 

Franco e Arida dizem que tais fundos expropriam o trabalhador (não rendem de fato quase nada) e beneficiam empresários com empréstimos baratinhos ("fisiologia industrial", no dizer de Franco). Além do mais, distorcem o mercado de crédito e impedem a queda dos juros. Sob gestão livre e privada, renderiam mais para os trabalhadores; a alocação de capital seria mais eficiente no país. 

É um programa radical. É ignorado pela oposição, se é que os tacanhos tucanos do PSDB de hoje ainda merecem tal nome. 

Politicamente, o "programa" não tem corpo nem alma. Mas é um bom debate num país em que o mercado é atravancado e o Estado está fora do lugar.

II - Teoria

JOAQUIM TOLEDO JR.

De volta para o futuro

Marx consegue dar conta do século 21?

Em comentário publicado em 8 de agosto de 1853, o correspondente internacional do New York Tribune Karl Marx (1818-83) concluía que o desdobramento necessário do colonialismo britânico no subcontinente indiano seria o cumprimento de duas missões: "uma destrutiva, a outra regenerativa - aniquilar a velha sociedade asiática e estabelecer os fundamentos materiais da sociedade ocidental na Ásia". 

À luz das sensibilidades contemporâneas, a afirmação surpreende pela aparente defesa do sistema colonial do século 19 - fundado em relações comerciais impostas pelo poder de intimidação da esquadra inglesa, como o próprio Marx apontou em seus artigos sobre os britânicos na China. 

Surpreende também a aparente confiança nos benefícios da presença britânica na Índia: a imposição de unidade política ao subcontinente ("a primeira condição para sua regeneração"), sua inserção no circuito comercial europeu (que o salvaria de sua "posição isolada, o motivo maior de sua estagnação"), a construção de ferrovias, linhas telegráficas e sistemas de irrigação, o estabelecimento de indústrias. 

Marx saudava, ainda que sem ilusões, a incubação de um processo de modernização que, embora fosse do interesse dos colonizadores, não deixaria de beneficiar os colonizados. 

Apesar de essa regeneração ainda não estar visível em meio às ruínas da sociedade indiana tradicional, para Marx, no entanto, ela "já havia começado". Um aparente escorregão daquele que é, muito provavelmente, o maior crítico da modernidade capitalista: confiar em benefícios colaterais de uma relação desigual de exploração e apostar na força progressista da "modernização capitalista". 

FILHO REBELDE

Essa ambiguidade é prova de que a obra de Marx é manifestação do que se convencionou chamar de "dialética da modernidade", da qual o próprio pensador e a tradição que fundou oferecem a teoria mais completa e a crítica mais incisiva. 

Filho rebelde do liberalismo e do iluminismo europeus, o marxismo tem oferecido nos últimos 160 anos o instrumental teórico mais sofisticado para a compreensão da natureza contraditória da sociedade moderna. 

Como lembra o sociólogo sueco Göran Therborn [From Marxism to Post-Marxism?, Verso Books, 208 págs., R$ 37], o marxismo sempre afirmou os traços progressistas do capitalismo, da industrialização e da urbanização, enquanto denunciava a "exploração, a alienação, a ubiquidade da forma mercadoria, a instrumentalização das relações sociais, a falsa ideologia e o imperialismo" inerentes ao processo de modernização. 

Repensar o marxismo hoje pressupõe atualizar essa interpretação crítica da sociedade capitalista contemporânea em dois registros, antagônicos mas complementares: reconhecer e ampliar os avanços tecnológicos, culturais, políticos e sociais que acompanham o desenvolvimento econômico capitalista - ou sobrevivem a ele - e seus efeitos destrutivos. 

ESPAÇO GLOBAL

Para Therborn, o marxismo precisa dar conta de uma dimensão tradicionalmente marginal no próprio Marx e no marxismo em geral: o espaço do processo (desigual) de acumulação capitalista. Não é de hoje que esse é um espaço global, como já notaram Marx e Engels (1820-95) em seu Manifesto Comunista (1848); mas a conectividade global contemporânea é de uma densidade sem precedentes. 

O espaço socioeconômico, cultural e geopolítico do século 21 é "radicalmente diferente daquele do século 20", que foi, acima de tudo, o último século eurocêntrico. O cenário geopolítico do século 21, por sua vez, é mais aberto e descentralizado, e o poder militar norte-americano, hegemônico desde o desfecho da Segunda Guerra Mundial (1939-45), está hoje em descompasso com a emergência de potências econômicas, na Ásia mas também na América Latina, e com o surgimento de uma "nova rede de Estados nacionais" e a intensificação das relações sul-sul.

CAPITALISMO LIBERAL

Essa reconfiguração, sinal da diminuição das disparidades de influência política e força econômica entre regiões e nações, convive, no entanto, com o aumento global da desigualdade de renda e com a desarticulação da classe trabalhadora, na qual não só a teoria como a prática política marxista haviam depositado suas esperanças. Nesse sentido, o que parece que vivemos nesse começo do século 21 é um retorno ao capitalismo liberal do século 19. 

Para Fredric Jameson, a crise atual pede uma releitura de O Capital (1867), a grande obra teórica de Marx. Em seu trabalho mais recente, Representing 'Capital' - A Reading of Volume One [Verso Books, 176 págs., R$ 55,70], o teórico norte-americano remexe as cinzas desse que é sem dúvida um dos maiores feitos intelectuais de seu século e investiga duas de suas dimensões fundamentais. Uma é formal -entender como Marx consegue oferecer uma representação (teórica, mas que lança mão de recursos literários de figuração, a que Jameson chama "protonarrativos") da "totalidade do sistema capitalista". 

O Capital resultaria de um "tour de force" de composição não muito diferente daquele que animou o projeto da Comédia Humana de Honoré de Balzac (1799-1850): representar, com os meios limitados da exposição teórica na forma de um quase "tratado" (e de sua prima-irmã, a narrativa realista), um sistema em que cada uma das partes remete a todas as outras, e na qual qualquer ponto pode ser tomado como início ou como fim. Da mesma forma, o escritor francês procurou retratar, com seu conjunto de romances, a totalidade da complexa sociedade francesa da Restauração. 

Segundo a leitura provocativa de Jameson, O Capital, como forma, precisa enfrentar o desafio de oferecer uma visão total de processos que aparecem, na experiência social, fragmentados. O argumento progride segundo a resolução parcial de dilemas ou contradições específicas, de forma potencialmente mais clara, o que por sua vez resulta na expansão do próprio objeto - o capital. 

DESEMPREGO

A segunda dimensão fundamental de O Capital é socioeconômica: para Jameson - e a afirmação, ainda que questionável, não podia ser mais atual - O Capital é um livro sobre o desemprego e, mais especificamente, sobre como o desemprego é "estruturalmente inseparável da dinâmica de acumulação e expansão que constitui a própria natureza do capitalismo". 

A constatação joga a categoria de exploração econômica no centro do palco - em prejuízo, no entanto, da categoria política de dominação: a classe trabalhadora global contemporânea, que em sua precariedade e vulnerabilidade lembra justamente a miséria dos trabalhadores da aurora da revolução industrial, são os "portadores de um novo tipo de miséria histórica e global" que comprovam o caráter estrutural do desemprego e do emprego precário no capitalismo. 

Haveria uma possibilidade promissora de mudança teórica que acompanha a reinterpretação dessas "populações perdidas" em termos não de dominação política, mas de exploração econômica. Uma releitura de O Capital nesses termos nos força a renovar o compromisso com a "invenção de um novo tipo de política transformadora em escala global", para além das tentativas, de mitigação dos efeitos perversos do capitalismo. 

ESPAÇO CONSTRUÍDO

Para David Harvey, no entanto, em The Enigma of Capital [Oxford University Press, 304 págs., R$ 37,90], a crise atual do capitalismo tem raízes mais particulares e concretas, e está associada a um curto-circuito no ciclo de investimento no "espaço construído" iniciado no pós-Guerra. A urbanização, processo que acompanha desde sempre o desenvolvimento capitalista, como atestam o surgimento das cidades industriais inglesas e a reestruturação de Paris pelo barão Haussmann, se tornou, explica Harvey, "um dos grandes negócios sob o capitalismo". 

As conexões entre urbanização, acumulação de capital e formação de crises merecem, segundo o geógrafo britânico, uma análise cuidadosa. Os ganhos (e perdas) que advêm da criação de novos espaços e de novas relações espaciais seriam recorrentemente ignorados como "um dos aspectos fundamentais da reprodução do capitalismo". Para quem conhece cidades como Pequim ou São Paulo, isso não é novidade. 

No centro da crise atual, por diferentes motivos EUA e Espanha viram-se reféns de modelos em muitos aspectos parecidos, centrados na expansão do mercado imobiliário, acompanhada de uma transformação das estruturas administrativas e financeiras que viabilizou um mercado fundado principalmente no endividamento da classe trabalhadora. A aposta, no entanto, na "valorização infinita" dos bens imobiliários e na capacidade de repagamento das dívidas pelas famílias (junto com os malabarismos financeiros possibilitados pela desregulamentação do mercado de crédito) levaram ao efeito dominó que derrubou Bolsas e mercados planeta afora. 

O boom imobiliário e a explosão da bolha revelam a tendência real, para Harvey, do capitalismo global desde pelo menos meados da década de 1970: queda de produtividade (e da lucratividade dos investimentos produtivos), acompanhada de um excesso ("surplus") de capital que precisou ser reinvestido na construção de novos espaços. O esvaziamento das cidades americanas e a taxa de desocupação de imóveis novos na Espanha são o resultado dessa movimentação do capital que, como não raramente acontece, deixa em seu rastro espaços inutilizados ou devastados. 

PÚBLICO E PRIVADO

A perspectiva de Therborn também conduz a uma conclusão um pouco menos abstrata e mais realista do que a de Jameson, se não exatamente otimista. A pergunta relevante, nesse caso, nos joga em um campo crucial para as análises marxistas: o jogo entre o poder público e os atores privados, entre Estados e mercado, e diz respeito à capacidade do Estado de desenhar e implementar políticas públicas, sejam elas de coordenação (políticas de desenvolvimento econômico, por exemplo), sejam políticas sociais (como programas de transferência de renda). 

As décadas recentes "testemunharam sucessos surpreendentes de políticas estatais", como o controle da inflação e a criação de organizações interestatais regionais -apesar da persistência do desemprego mesmo em regiões desenvolvidas como a União Europeia, onde as políticas de bem-estar têm sido capazes, pelo menos até esse momento, de proteger os desempregados da pobreza "ao estilo norte-americano". 
Estados nacionais, regiões e cidades diferem, naturalmente, em sua capacidade de implementar políticas públicas, mas, para Therborn, o padrão não aponta para uma diminuição geral dessa capacidade.

"Certamente", conclui, "as políticas de esquerda têm tido mais dificuldade para serem implementadas, mas isso deriva não tanto de falhas dos Estados quanto da paralisia da coordenação política resultante de governos de direita" ("conservadores acreditam que o governo é ineficiente", diz um ditado corrente, "e se elegem apenas para provar que estão certos"). 

POLÍTICA

A leitura de Jameson, totalizante e antipolítica como o marxismo filosófico corre o risco de ser, também perde de vista a multiplicidade de caminhos políticos tomados desde o pós-Guerra. O Estado de bem-estar social europeu e o Estado desenvolvimentista asiático, passando pelos "novos" movimentos sociais (as lutas por direitos civis, o feminismo, o ambientalismo etc.) aos governos latino-americanos de esquerda, indicam que, como afirma o crítico inglês Terry Eagleton, Marx "estava certo" [Why Marx Was Right, Yale University Press, 272 págs., R$ 55,80]. A denúncia e o combate à exploração, à desigualdade e à dominação são centrais hoje como eram no século 19. 

Ninguém ficaria mais contente com o "fim" do marxismo do que os próprios marxistas, diz Eagleton. Isso seria sinal de que a tarefa histórica a que se propuseram - a superação da exploração e da desigualdade, ou do capitalismo - estaria cumprida. Ironicamente, no entanto, o marxismo é declarado morto, ou fora de moda, justamente pelos defensores contemporâneos de um capitalismo que rapidamente "reverte a níveis vitorianos de desigualdade." 

A suposta crise do marxismo, no entanto, é antes reflexo das transformações sociais, econômicas e políticas das últimas três ou quatro décadas. Desde o início dos anos 1970, o por assim dizer "centro" do sistema capitalista - Europa e EUA - assistiu à transição de suas economias baseadas em manufatura para uma cultura "pós-industrial" da sociedade do consumo, das novas tecnologias de comunicação e da economia de serviços. As causas e consequências dessa mudança podem ser atribuídas ao refluxo dos anos de crescimento econômico explosivo do pós-guerra, mas também à escalada do conservadorismo político. 

De Margaret Thatcher, no Reino Unido, a Ronald Reagan, nos EUA (e, para pegar um exemplo regional em versão mais explicitamente truculenta, Augusto Pinochet, no Chile), os novos conservadores tocaram o processo de desregulamentação dos mercados, submeteram os movimentos de trabalhadores a ofensivas legais e políticas e criaram um suposto consenso contra políticas sociais estatais (que, no caso dos EUA de Reagan, não deixou de ter contornos raciais e somou-se à reação conservadora contra o movimento dos direitos civis dos anos 1960). O resultado é um ambiente político que, com a destruição das lealdades de classe e o estímulo à fragmentação da sociedade civil, é cada vez mais cínico, administrado e manipulado. 
O quadro atual, para Eagleton, faz ainda mais urgente a crítica marxista: em escala global, "o capital é mais concentrado e predatório do que jamais foi" e a classe trabalhadora, longe de ter desaparecido, aumentou em tamanho. Prova disso é o rápido processo de urbanização e industrialização em curso no sul global. 

URGÊNCIA

Para Eagleton a crítica marxista, no entanto, não pode resultar nessa forma bem-intencionada de resignação que é o pensamento utópico. O marxismo é atual não apenas como referencial teórico para as ciências humanas ou como crítica filosófica da modernidade - ele sempre carregou consigo as exigências políticas (e morais) mais urgentes para a sociedade contemporânea. 

No último século e meio, foi capaz de aglutinar os mais diversos movimentos anticapitalistas, sejam os "tradicionais" movimentos trabalhistas, sejam os novos movimentos sociais. Se as reflexões de Eagleton têm algo de pastoral, ou de evangelho de um crente já cansado demais para abandonar suas certezas, elas reafirmam um conjunto de princípios - racionalidade, autonomia, igualdade - herdados, sem dúvida, da tradição iluminista burguesa, mas radicalizados pela crítica marxista e encampados nas diversas lutas anticapitalistas dos séculos 19 e 20 - e deste século 21. 

Se as desigualdades de poder e riqueza, se as guerras imperiais, a intensificação da exploração e a atuação cada vez mais repressiva dos Estados caracterizam o mundo contemporâneo, a crítica marxista - cujos temas fundamentais são exatamente esses - é tanto mais pertinente e urgente. 

"O capitalismo", diz Eagleton, "e não o marxismo, deveria estar fora de moda." É tempo de abandonarmos o mito de que a "riqueza fabulosa" - material ou imaterial - que o capitalismo é capaz de gerar estará, no final, à disposição de todos. 

Sunday, August 28, 2011

No amplo corredor coberto, o kuthambalam de colunas adjacentes ao coração do templo onde morava o Deus Azul com sua flauta, os tocadores de tambor tocavam e os dançarinos dançavam, suas cores girando lentamente na noite. Rahel sentou-se de pernas cruzadas, encostada no redondo de um pilar branco. Uma lata alta de óleo de coco brilhava na luz bruxuleante do lampião de latão. O óleo alimentava a luz. A luz iluminava a lata.

Não importava que a história já tivesse começado, porque o kathakali descobriu há muito que o segredo das Grandes Histórias é que elas não têm segredos. As Grandes Histórias são aquelas que você ouviu e quer ouvir de novo. Aquelas em que você pode entrar por qualquer parte e habitar confortavelmente. Elas não enganam você com truques e finais emocionantes. Elas não surpreendem você com o imprevisível. Elas são tão familiares como a casa em que se vive. Ou como o cheiro da pele do amante. Você sabe como elas terminam, mas, mesmo assim, você escuta como se não soubesse. Da mesma forma que apesar de saber que um dia vai morrer, você vive como se não fosse. Nas Grandes Histórias você sabe quem vive, quem morre, quem encontra o amor, quem não encontra. E, mesmo assim, você quer ouvir de novo.

Arundhati Roy - O deus das pequenas coisas

Saturday, August 27, 2011

"Me prometam que vocês vão sempre amar um ao outro", ela tinha dito, puxando os filhos para si.

"Prometo", Estha e Rahel disseram. Sem encontrar palavras para dizer que para eles não  existia nem Um, nem Outro.

Pedras de moinho gêmeas e sua mãe. Pedras de moinho entorpecidas. O que eles fizeram iria voltar para esvaziá-los. Mas isso seria Depois.

De Pois. Um som grave de sino dentro de um poço cheio de musgo. Trêmulo e veludoso como pés de mariposa.

Na época, houve só incoerência. Como se todo sentido tivesse deslizado para fora das coisas, deixando-as fragmentadas. Desconexas. O brilho na agulha de Ammu. A cor da fita. A trama da colcha de ponto de cruz. A porta se quebrando devagar. Coisas isoladas que não significavam nada. Como se a inteligência que decodifica os padrões ocultos da vida, que liga reflexos a imagens, lampejos a luz, tramas a tecidos, agulhas a linhas, paredes a quartos, amor a medo, a raiva, a remorso, tivesse repentinamente se perdido.

Arundhati Roy - O deus das pequenas coisas

Wednesday, August 24, 2011

A última alça de luz escorregou do ombro do querubim. A penumbra engoliu o jardim. Inteiro. Como uma píton. Luzes se acenderam na casa.

Rahel podia ver Estha em seu quarto, sentado em sua cama arrumada. Estava olhando para o escuro fora da janela gradeada. Ele não podia vê-la, sentada ali fora, no escuro, olhando a noite.

Dois atores aprisionados numa peça recôndita, sem nenhum indício de trama ou narrativa. Tropeçando em seus papéis, cuidando da tristeza de outro. Sofrendo o sofrimento de outro.

De alguma forma incapazes de mudar seus papéis. Ou comprar, por algum preço, alguma forma barata de exorcismo, de algum conselheiro diplomado que sentaria os dois e diria, em uma de muitas formas: "Vocês não são os Pecadores. Vocês são as Vítimas do Pecado. Eram apenas crianças. Não tinham controle da situação. São as vítimas, não os perpetradores".

Teria ajudado muito se eles tivessem conseguido fazer essa passagem. Se pudessem ter usado, mesmo que temporariamente, o trágico capuz de vítimas. Então eles teriam sido capazes de dar uma cara a tudo aquilo, e conjurar fúria pelo que aconteceu. Ou procurar compensação. E até, talvez, acabar exorcizando as lembranças que os assolavam.

Mas não havia raiva disponível para eles e não havia nenhum rosto para colocar nessa Outra Coisa que eles seguravam com Outras Mãos pegajosas, como uma laranja imaginária. Não havia onde pousá-la. Não era deles para que pudessem dar. Ia ter de ser carregada. Com cuidado e para sempre.

Arundhati Roy - O deus das pequenas coisas

Tuesday, August 23, 2011

O verde do dia tinha escorrido das árvores. Escuras folhas de palmeira se abriam contra o céu de monção como pentes pendurados. O sol cor de laranja deslizou por seus dentes tortos, ásperos.

Um esquadrão de morcegos frugívoros voou na penumbra. No jardim ornamental abandonado, Rahel, observada por anões desequilibrados e um querubim esquecido, acocorou-se junto ao tanque estagnado e ficou olhando os sapos saltando de pedra em pedra. Lindos Sapos Feios.

Viscosos. Empelotados. Coaxantes.

Príncipes ansiosos, não beijados, presos dentro deles. Comida para as cobras que se escondiam na grama alta de junho. Deslizar. Dar o bote. Fim do príncipe por beijar.

Era a primeira noite que não chovia desde que chegara.

Se estivesse em Washington, Rahel pensou, por agora eu estaria indo para o trabalho. O ônibus. As luzes da rua. A fumaça dos escapamentos. A forma da respiração das pessoas no vidro à prova de bala da minha cabina. O tilintar das moedas empurradas para mim na bandeja de metal. O cheiro de dinheiro nos meus dedos. O bêbado pontual que chega exatamente às dez da noite: "Ê, você aí! Puta preta! Chupa o meu pau!".

Tinha setecentos dólares. E uma pulseira com cabeças de cobra. Mas Baby Kochamma já havia perguntado quanto tempo mais pretendia ficar. E o que planejava fazer com Estha.

Arundhati Roy - O deus das pequenas coisas

Sunday, August 21, 2011

Tinha braços curtos e grossos, dedos como minissalsichas e um nariz largo e carnoso com narinas abertas. Fundas dobras de pele ligavam seu nariz aos dois lados do queixo e separavam essa parte do rosto do resto, como um focinho. A cabeça era grande demais para o corpo. Ela parecia um feto preservado que tinha escapado de seu frasco de formol de um laboratório de Biologia e se desenrugado e engrossado com a idade.

Guardava dinheiro úmido no sutiã que apertava com força no peito para achatar aqueles seios nada cristãos. Seus brincos kunukku eram grossos, de ouro. Os lóbulos tinham se distendido com o peso e iam até seu pescoço, os brincos pousando em seus ombros como crianças alegres num carrossel. O lóbulo direito havia se rompido uma vez, e sido costurado de novo pelo dr. Verghese Verghese. Kochu Maria não podia deixar de usar seus kunukkus porque, senão, como as pessoas iam saber que, apesar de seu emprego inferior de cozinheira (setenta e cinco rúpias por mês), ela era uma Cristã Síria, Mar Thomite? Não uma pelaya, nem uma pulaya, nem uma paravan. Mas uma tocável, uma cristã de casta superior (em quem a cristandade se instalara como chá de um saquinho). Lóbulos rompidos e costurados eram, de longe, a melhor opção.

Arundhati Roy - O deus das pequenas coisas

Saturday, August 20, 2011

Rahel lembrou-se de incidente que fizera Lenin entrar em foco como uma Pessoa Real para ela e Estha, deixando de parecer mais uma prega do sári da mãe. Ela e Estha tinham cinco anos, Lenin talvez três ou quatro. Encontraram-se na clínica do dr. Verghese Verghese (o melhor Pediatra e Apalpador de Mães de Kottayam). Rahel estava com Ammu e Estha (que insistira em ir junto). Lenin estava com a mãe dele, Kalyani. Rahel e Lenin tinham o mesmo problema: Objetos Estranhos Alojados no Nariz. Agora, parecia uma coincidência excepcional, mas na época não pareceu. Era curioso como a política estava até naquilo que as crianças enfiavam no nariz. Ela, a neta do Entomologista Imperial, ele, o filho de um trabalhador do povo filiado ao Partido Marxista. Portanto, o dela era uma conta de vidro e o dele um grão-de-bico verde.

A sala de espera estava cheia.

Arundhati Roy - O deus das pequenas coisas

Baby Kochamma, encarregada da educação dos dois, tinha lido para eles a versão de A Tempestade, resumida por Charles e Mary Lamb.

"Suga a abelha e sugo eu", Estha e Rahel ficavam dizendo, "Durmo em uma flor de mel".

Por isso, quando a missionária australiana miss Mitten, amiga de Baby Kochamma, que veio visitar Ayemenem, deu para Estha e Rahel um livro de crianças, As Aventuras de Susie Esquilo, eles ficaram profundamente ofendidos. Primeiro, eles leram de começo a fim. Miss Mitten, que pertencia a uma seita de renascimento cristão, disse que ficou um Pouco Decepcionada quando os dois leram o livro em voz alta para ela, de trás para a frente.

"sA sarutneva ed eisuS oliuqsE. arE amu aleb ãhnam ed arevamirp odnauq eisuS oliuqsE uodroca".

Eles mostraram a miss Mitten que dava para ler malayalam e Madam I'm Adam tanto de frente para trás como de trás para a frente. Ela não achou nada engraçado e acabou revelando que nem sabia o que era malayalam. Eles contaram que era a língua que todo mundo falava em Kerala. Ela disse que tinha a impressão de que se chamava keralês. Estha, que tinha antipatizado intensamente com miss Mitten, disse que achava aquilo uma Impressão Altamente Burra.

Miss Mitten reclamou com Baby Kochamma da grosseria de Estha e de sua leitura invertida. Disse a Baby Kochamma que tinha visto Satã nos olhos dele. ãtaS son sohlo eled.

Eles tiveram que escrever Não vamos mais ler de trás para a frenteNão vamos mais ler de trás para a frente. Cem vezes. De frente para trás.

Uns meses depois, miss Mitten foi morta por um furgão de entrega de leite em Hobart, em frente a uma quadra de críquete. Para os gêmeos havia uma certa justiça no fato de o furgão de entrega de leite estar dando marcha a ré.

Arundhati Roy - O deus das pequenas coisas

Monday, August 15, 2011


Ataques de 11 de Setembro nos EUA desencadearam a década da desordem

David Miliband - Prospect

Eu estava em Newcastle no norte da Inglaterra em 11 de setembro, dando uma palestra sobre o futuro da indústria na região. Estava entusiasmado por dar minha primeira entrevista no estúdio regional da BBC. Então ouvi sobre o ataque à primeira torre do World Trade Center enquanto estava num táxi a caminho de South Shields, nas proximidades.

A década desde então foi a mais traumática para o Ocidente desde a de 1930. Agora, à medida que o 10º aniversário do 11 de setembro se aproxima, precisamos nos perguntar como colocar um limite nisso, e recuperar uma posição de estabilidade e confiança. Isso demandará uma mudança radical na forma como pensamos.

Durante os últimos séculos, existiram três sistemas de ordem internacional: dominação econômica e militar; um equilíbrio de poderes; e a soberania compartilhada. Eles podem coexistir, como aconteceu mais ou menos nos anos após 1945 em diferentes partes do mundo. Mas hoje os EUA estão em desvantagem, econômica e militarmente. Novas potências como a China e a Índia estão ascendendo, e a Europa, onde a soberania compartilhada foi abraçada, está lutando para se manter dentro de suas próprias fronteiras, menos do que como um competidor global. As nações e as pessoas do mundo estão mais interligadas do que nunca, à medida que a informação, as finanças, os imigrantes e os problemas fluem cada vez mais facilmente pelo globo.

A última década foi de desordem. O 11 de setembro foi o gatilho, mas o Iraque, a crise financeira, os desequilíbrios econômicos globais e a “Primavera Árabe” também desempenharam sua parte. A fraqueza do sistema internacional – no comércio, mudança climática, Israel/Palestina – acrescentaram à sensação crescente de que não há ninguém encarregado dos problemas.

Os primeiros motivos dessa desordem estão nas surpreendentes assimetrias dos últimos dez anos, quando as medidas confiáveis de poder-influência parecem ter sido invertidas. Uma força não-estatal, a Al Qaeda, fez com que o Estado mais poderoso do mundo entrasse em convulsões. O espaço não governado em lugares como o Afeganistão, Iêmen e Somália logo se transformou em uma ameaça para as sociedades governadas. O poder passou dos estados fortes para cidadãos conectados usando telefones celulares para expor a violência do Estado na Síria e organizar milhões de manifestantes na Praça Tahrir.

O compromisso e a capacidade da Al Qaeda para fazer uma jihad mundial foi (e é) uma nova e séria ameaça. Um dos vários motivos pelos quais a noção de “guerra contra o terror” foi mal utilizada foi que ela permitiu que as pessoas pensassem que a Al Qaida era apenas mais um grupo terrorista como o Exército Republicano Irlandês (IRA). Ela não é. A Al Qaeda tem uma visão mundial, e não apenas local. Ela aspira não só à mudança, mas à revolução.

Infelizmente, essa nova ameaça de segurança deu forças para o empreendimento militar, quando a parte predominante da luta deveria ter sido política e diplomática. Eu não acho que havia outra alternativa para a determinação dos EUA, em 2001, de retirar o Taleban de Cabul. A tragédia é que, depois que isso foi feito, a paz foi perdida e não conquistada.

Os EUA dedicaram recursos notáveis para a luta contra a Al Qaeda. Mas a batalha se tornou um desvio forçado da tarefa diplomática essencial de construir novas regras e instituições para um mundo independente. E ao passo que a década começou com os EUA querendo uma folga da liderança global, ela termina num tom semelhante.

Mas enquanto os EUA têm buscado olhar para dentro, e a Europa de fato esteja fazendo isso, o resto do mundo está ocupado ganhando sua fortuna. Em 2000, a Índia e a China responderam por pouco mais de 4% do comércio mundial; hoje este número está perto dos 12%. Na última década, 63% do crescimento econômico mundial veio das economias emergentes. Para as nações BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), a Al Qaeda nunca foi a principal questão. Seu foco foi o crescimento econômico.

Isso deixa um motivo final para a desordem: uma divisão filosófica sobre como governar o mundo moderno. Marshall McLuhan cunhou a noção de “aldeia global” nos anos 60. Hoje seu princípio fundamental – de que somos interdependentes – é amplamente aceito. Mas há uma divisão quanto às regras da aldeia.

O tema central diz respeito a se a soberania nacional pode e deve ser qualificada. Isso se demonstra em todos os aspectos das relações internacionais. Todos os estados-membro da ONU assinaram a chamada “responsabilidade de proteger” em 2005, mas as sanções da ONU contra o regime assassino da Síria foram bloqueadas pela Rússia, China e Índia alegando que a segurança interna é uma questão nacional.

A noção de que a interdependência deveria exigir uma restrição da soberania nacional é, francamente, uma visão minoritária. A União Europeia não é atualmente uma boa propaganda de suas virtudes; os norte-americanos desconfiam, e os chineses e indianos são profundamente céticos em relação à ideia. Tendo emergido de lutas políticas e econômicas pela independência, a última coisa que eles admitirão é a interferência nos assuntos internos. Este é um dos principais motivos pelos quais, desde a mudança climática até os direitos humanos, o sistema internacional não é capaz de promover uma ação efetiva.

Estamos diante de algumas tarefas urgentes. A primeira é reassegurar o lugar da diplomacia na política internacional. Richard Holbrooke, ex-embaixador da ONU, disse para mim que desde o 11 de setembro os EUA sofreram uma “militarização da diplomacia”. Agora precisamos do oposto.

Em segundo lugar, precisamos reavaliar nossa noção de equilíbrio do poder: ela não deve concernir apenas Estados, mas Estados e povos. Como demonstrou a Primavera Árabe, a onipresença da informação significa que as coalizões do futuro precisam ser formadas pelo povo, e não somente pelas elites.

Em terceiro lugar, estamos caminhando para uma era de escassez de recursos. Fora a bomba atômica, este é o acontecimento econômico e de segurança mais perigoso dos últimos dois séculos. Se você acha que o jogo de culpa na Europa em relação à Grécia é ruim, espere os argumentos sobre quem está causando a seca e a inflação dos preços dos alimentos.

Por fim, o Ocidente terá que redescobrir os benefícios do multilateralismo e da soberania compartilhada. Isso é difícil quando, na Europa, ninguém quer pagar as contas da Grécia. Mas o multilateralismo é uma garantia política global contra a determinação de qualquer estado abusar do poder. O problema não é que a UE e outras instituições multilaterais são muito fortes; é que elas são muito fracas. As instituições regionais do mundo árabe, da África, da América Latina e do Leste da Ásia são um desenvolvimento óbvio e necessário.
Há um século, Norman Angell argumentou em A Grande Ilusão que a expansão militar não poderia trazer a segurança econômica; que aconteceria ao contrário. Na verdade, nenhuma das duas é atingível sem a política – e no ano da Primavera Árabe, esta é a lição mais importante de todas.

(David Miliband é membro do Parlamento para South Shields. Ele foi secretário de relações exteriores da Inglaterra de 2007 a 2010.) Tradução: Eloise De Vylder

Tuesday, August 09, 2011

VLADIMIR SAFATLE

Maria Antonieta

Em 2006, a cineasta Sofia Coppola lançou um filme sobre Maria Antonieta. Ao contar a história da rainha juvenil que vivia de festa em festa enquanto o mundo desabava em silêncio, Coppola acabou por falar de sua própria geração.

Esta mesma que cresceu nos anos 1990.

No filme, há uma cena premonitória sobre nosso destino. Após acompanharmos a jovem Maria por festas que duravam até a manhã com trilhas de Siouxsie and the Banshees, depois de vermos sua felicidade pela descoberta do "glamour" do consumo conspícuo, algo estranho ocorre.

Maria Antonieta está agora em um balcão diante de uma massa que nunca aparece, da qual apenas ouvimos os gritos confusos. Uma massa sem representação, mas que agora clama por sua cabeça.

Maria Antonieta está diante do que não deveria ter lugar no filme, ou seja, da Revolução Francesa. Essa massa sem rosto e lugar é normalmente quem faz a história. Ela não estava nas raves, não entrou em nenhuma concept store para procurar o tênis mais stylish.

Porém ela tem a força de, com seus gritos surdos, fazer todo esse mundo desabar.

Talvez valha a pena lembrar disso agora porque quem cresceu nos anos 1990 foi doutrinado para repetir compulsivamente que tal massa não existia mais, que seus gritos nunca seriam mais ouvidos, que estávamos seguros entre uma rave, uma escapada em uma concept store e um emprego de "criativo" na publicidade.

Para quem cresceu com tal ideia na cabeça, é difícil entender o que 400 mil pessoas fazem nas ruas de Santiago, o que 300 mil pessoas gritam atualmente em Tel Aviv.

Por trás de palavras de ordem como "educação pública de qualidade e gratuita", "nós queremos justiça social e um Estado-providência", "democracia real" ou o impressionante "aqui é o Egito" ouvido (vejam só) em Israel, eles dizem simplesmente: o mundo que conhecemos acabou.

Enganam-se aqueles que veem em tais palavras apenas a nostalgia de um Estado de bem-estar social que morreu exatamente na passagem dos anos 1980 para 1990.

Essas milhares de pessoas dizem algo muito mais irrepresentável, a saber, todas as respostas são de novo possíveis, nada tem a garantia de que ficará de pé, estamos dispostos a experimentar algo que ainda não tem nome.

Nessas horas, vale a lição de Maria Antonieta: aqueles que não percebem o fim de um mundo são destruídos com ele. Há momentos na história em que tudo parece acontecer de maneira muito acelerada.

Já temos sinais demais de que nosso presente caminha nessa direção. Nada pior do que continuar a agir como se nada de decisivo e novo estivesse acontecendo.

VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras na Folha de São Paulo.

Monday, August 08, 2011

VLADIMIR SAFATLE

Melancholia

Poucos são os cineastas realmente necessários para nossa época. Lars Von Trier é certamente um deles. Talvez alguns de seus filmes estejam entre as melhores reflexões contemporâneas sobre moralidade e seus impasses.

Eles retratam uma época que descobriu que a insistência na certeza moral subjetiva é, muitas vezes, a maneira de não nos perguntarmos sobre como as nossas ações serão recebidas em contextos intersubjetivos.

Boa parte das heroínas de seus filmes são mulheres que parecem a encarnação contemporânea da bela alma, com seu coração puro e sua incapacidade de compreender porque tanta catástrofe decorre de suas ações. Elas, no fundo, não entendem por que nem sempre o melhor a fazer é confiar na clareza de nossa intencionalidade moral.

No entanto seu último filme tem algo que os outros não têm: uma mulher que não sabe o que deve fazer. Melancholia é a história de Justine, uma mulher que vai se casar, mas não consegue. O casamento está lá, o castelo, a limusine, a festa cara, as promessas de felicidade, a promoção no trabalho. Mas ela é incapaz de impedir que tudo apareça com o gosto insípido do que está radicalmente fora do lugar. Ao final, ela se encontrará em um estado próximo a catatonia.

Enquanto o casamento fracassa e a impotência toma conta, um planeta, chamado Melancholia, aproxima-se da Terra em rota de colisão.

A metáfora não poderia ser mais clara a respeito desta doença que assombra a época e retira nossas forças a ponto de dissolver o mundo de nossos interesses. Doença que perdeu seu nome de origem para ser, atualmente, chamada de "depressão".

Dificilmente encontraremos um filme que retrate de maneira tão forte e realista tal quadro clínico. Mas sua grandeza está em outro lugar.

Numa época como a nossa, raras são as obras que nos lembram como a confrontação com o que Spinoza chamava de "paixões tristes" é, muitas vezes, a única maneira de aprender a lidar com o caráter brutal e contingente do fim, da perda, do insensato.

Por ter passado pelo "caminho do desespero", Justine é a única que sabe como terminar, como se portar diante do fim do mundo.

Na verdade, sua depressão deixou um saldo: saber como lidar com a natureza trágica de certos acontecimentos. Ela se cura ao compreender isso.

Mudança importante já que nossa sociedade deve ser a única que perdeu essa capacidade de lidar com o caráter trágico da finitude, da contingência e da contradição.

Preferimos o riso compulsivo e defensivo e nos dopar a ter que nos confrontarmos com o que parece ter a força de abalar o mundo de nossas certezas imediatas. Como Trier nos lembra, há algo de equívoco moral nesta preferência.

VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras na Folha de São Paulo.

Sunday, August 07, 2011

Sobre Dashiell Hammett, Sam Spade e O Falcão Maltês

Em 1930, ao narrar a batalha pela posse de um tesouro medieval, Dashiell Hammett transformou as histórias policiais de uma vez por todas. Retirou dos salões e dos gabinetes a solução do mistério e jogou os personagens nas ruas de uma cidade turbulenta, onde os interesses do crime e da lei se confrontam e se confundem. Imprimiu à trama um ritmo acelerado, adotou a linguagem crua do dia-a-dia, compôs diálogos cortantes e descrições de um realismo que o gênero policial até então desconhecia.

[...] A meio caminho entre o criminoso e a polícia, o herói criado por Hammett ocupa uma posição ambígua. Sua moral oscila conforme as circunstâncias. A sagacidade de suas deduções, o poder de persuasão de seus argumentos e sua habilidade em manobrar os interesses que se entredevoram à sua volta derivam em boa parte da luta pela sobrevivência. É um homem que enfrenta dilemas reais e que não age em momento algum como herói acima de qualquer suspeita. Entre mulheres lânguidas e falsas, europeus esnobes e sequiosos de riqueza, policiais embrutecidos e tacanhos, Sam Spade deixa de ser apenas um sujeito comum.

O Falcão Maltês - orelha

Saturday, August 06, 2011

Eis o que aconteceu a ele. Quando foi almoçar, passou por um prédio de escritórios que estava em construção, só havia o esqueleto. Uma viga ou algo assim despencou de oito ou dez andares e veio se estatelar na calçada, bem ao lado de Flitcraft. Passou raspando por ele, mas não o tocou, embora uma lasca da calçada tenha se soltado e voado de encontro à sua bochecha. Só tirou um pedacinho de pele mas ele ainda trazia a cicatriz, quando o vi. Ele a esfregou com o dedo, digamos assim, carinhosamente, enquanto me contava a história. Ficou paralisado de medo, na hora, disse ele, mas na verdade ficou mais chocado do que propriamente assustado. Sentia-se como se alguém tivesse levantado a tampa da vida e tivesse deixado que ele visse o seu mecanismo interno.

Flitcraft fora um bom cidadão, um bom marido e um bom pai, não por pressão externa, mas simplesmente porque era um homem que se sentia plenamente à vontade quando estava em harmonia com seu ambiente. Tinha sido criado assim. As pessoas que ele conhecia eram assim, também. A vida que ele conhecia era uma coisa limpa, sadia, ordeira e responsável. De repente, uma viga que havia despencado lhe mostrou que a vida não era, no fundo, nenhuma dessas coisas. Ele, o bom cidadão, marido e pai, podia ser varrido do mundo, no caminho entre o escritório e o restaurante, por conta de um acidente com uma viga que cai. Compreendeu então que os homens morriam aleatoriamente, sem mais nem menos, e só se mantinham vivos enquanto o acaso cego os poupava.

Não foi, em princípio, a injustiça dessa situação que o perturbou: ele aceitou o fato após o primeiro choque. O que o perturbou foi a descoberta de que, ao organizar suas coisas de maneira sensata, perdera o compasso da vida, em vez de acertar o passo com ela. Flitcraft contou que, antes de se afastar vinte passos da viga tombada, já havia entendido que nunca mais teria paz, a menos que se adaptasse a essa nova maneira de ver a vida. Quando terminou de almoçar, já havia descoberto os meios para levar a efeito essa adaptação. A vida, para ele, podia chegar ao fim aleatoriamente, graças à queda de uma viga: já que era assim, mudaria de vida aleatoriamente, simplesmente indo embora dali. Flitcraft amava sua família, disse ele, tanto quanto julgava ser o normal, mas sabia que os estava deixando bem amparados e seu amor por eles não era do tipo que tornasse sua ausência algo doloroso.

- Ele partiu para Seattle, naquela tarde - disse Spade - e dali, de barco, foi para San Francisco. Durante alguns poucos anos, perambulou por vários lugares e acabou voltando para o noroeste, fixou residência em Spokane e se casou. Sua segunda esposa não se parecia com a primeira, mas tinham mais semelhanças do que diferenças. Você sabe, o tipo de mulher que joga golfe e bridge sem trapacear e que gosta de colecionar receitas de salada. Flitcraft não lamentava o que tinha feito. Parecia bastante razoável, para ele. Creio que nem sequer tinha ideia de que voltara naturalmente para a mesma rotina da qual havia escapulido, em Tacoma. Mas essa é a parte da história de que sempre gostei. Ele se adaptou a vigas que caem do nada, mas depois não caiu mais viga nenhuma, e ele se adaptou às circunstâncias de elas não caírem mais.

Dashiell Hammett - O Falcão Maltês

Thursday, August 04, 2011

Sabedoria do mundo do trabalho

Às vezes a gente pode pagar e não receber mas, você nunca recebe nada se não pagar.

Os ganhos se calculam pelo mínimo e as tarefas pelo máximo.

Wednesday, August 03, 2011


ELIO GASPARI 

Os EUA iam acabar em 1861 

Há mais de 200 anos, quem acaba são seus adversários, como a escravidão, o fascismo e o comunismo

Os Estados Unidos iam acabar. Não nesta semana, mas há exatos 150 anos, depois que as tropas do Sul venceram em Manassas a primeira grande batalha da Guerra Civil. Grandes políticos ingleses, bem como "The Economist" e "The Times" (pré-Murdoch), achavam que o presidente Lincoln forçara a mão com o Sul. Quatro anos e 620 mil mortos depois, a União foi preservada e acabou-se a escravidão.

Passou pouco mais de meio século e, de novo, os Estados Unidos iam acabar. A Depressão desempregou 25% de sua mão de obra e contraiu a produção do país em 47%. A crise transformou fascismo e nazismo em poderosas utopias reacionárias. De Henry Ford a Cole Porter, muita gente se encantou com o ditador italiano Benito Mussolini. Dezesseis anos depois, as tropas americanas entraram em Roma, Berlim e Tóquio.

Em 1961, quando os soviéticos mostraram Yuri Gagarin voando em órbita sobre a Terra, voltou-se a pensar que os Estados Unidos iam se acabar. Em 1989, acabou-se o comunismo.

A decadência americana foi decretada novamente em 1971, quando Richard Nixon desvalorizou o dólar, ou em 1975, quando suas tropas deixaram o Vietnã. O dólar continua sendo a moeda do mundo, inclusive para os vietnamitas.

A última agonia, provocada pela exigência constitucional da aprovação, pelo Congresso, do teto da dívida do país, foi uma crise séria, porém apenas uma crise parlamentar. Para o bem de todos e felicidade geral das nações, não só os Estados Unidos não se acabam, mas o que se acaba são os modelos que se opõem ao seu sistema de organização social e política.

No cenário de hoje, o ocaso americano coincidiria com a alvorada de progresso e eficácia da China. Lá, o teto da dívida jamais será um problema. Basta que o governo decida. Como lá quem decide é o governo, nos últimos cem anos o Império do Meio passou por dois períodos de fome que geraram episódios de antropofagia. Hoje a China não tem os problemas dos Estados Unidos, afinal, nem desastre de trem pode ser discutido pela população.

Guardadas as proporções, o sistema político brasileiro seria melhor que o americano, porque não haveria aqui a crise parlamentar provocada pelo teto da dívida. Se houvesse, o Brasil não teria quebrado nos anos 80 por ter tomado empréstimos dos banqueiros que ajudaram a criar a encrenca que hoje atormenta Washington.

Aquilo que parece uma crise da decadência é uma simples e saudável manifestação do regime democrático. Quando os negros americanos foram para as ruas, marchando em paz ou queimando quarteirões, também temeu-se pelo futuro do país. O que acabou foi a segregação racial.

Se hoje há uma crise nos Estados Unidos, ela não está nas bancadas republicanas ou mesmo na influência parlamentar do movimento Tea Party. Eles defendem o que julgam ser o melhor caminho para o país. A crise está em outro lugar, na negação, por um tipo de conservadorismo extremado, dos valores que fizeram da nação americana o que ela é. Quando o governo Bush sequestrou suspeitos pelo mundo afora, levando-os para centros de tortura, e viu-se obrigado a soltar alguns deles porque não eram o que se pensava, aí sim, os Estados Unidos estavam em perigo.

Tuesday, August 02, 2011

Children at a Puppet Show, the moment the dragon is slain. Guignol puppet show, Parc de Montsouris, Paris, by Alfred Eisenstaedt, 1963

© Alfred Eisenstaedt/Life. 1963