Por que o 11 de setembro não mudou o mundo
Philip Stephens
FINANCIAL TIMES
As forças geopolíticas que estão modelando o atual século têm pouca conexão com o 11 de setembro. O futuro estava sendo escrito em Pequim, em Nova Déli, no Rio de Janeiro e em outros lugares
Praticamente tudo mudou desde os ataques terroristas perpetrados em Nova York e em Washington, D.C. há dez anos. Os contornos do cenário geopolítico e econômico foram redesenhados. O curioso é como essas mudanças tiveram pouco a ver com o 11 de setembro.
Isso pode soar como algo contrário à intuição após o tumulto da última década. Os Estados Unidos fizeram guerras no Afeganistão e no Iraque. O islamismo violento transformou a visão de mundo dos Estados Unidos e a opinião do mundo em relação aos Estados Unidos. Tudo parou para a “guerra contra o terror” lançada por George W. Bush – ou pelo menos foi essa a impressão que se teve. Mas a Al Qaeda ainda existe; e Guantánamo também.
Durante uma visita a Washington na primavera de 2003, eu ouvi uma autoridade graduada do governo norte-americano explicar como a invasão do Iraque estabeleceria as novas regras do jogo internacional. Esqueçam todas as bobagens referentes ao multilateralismo, disse ele a uma plateia composta de europeus. Aquela foi a era da única superpotência do planeta. Com ou sem aliados, os Estados Unidos se vingariam da destruição das torres gêmeas. Na época eu escrevi que nós presenciamos a destruição da ordem multilateral.
Mas, apesar de toda aquela agitação, percebemos agora que as forças geopolíticas que estão modelando o atual século têm pouca conexão com o 11 de setembro. Osama Bin Laden foi responsável por uma década de manchetes na imprensa, mas o futuro estava sendo escrito em Pequim, em Nova Déli, no Rio de Janeiro e em outros lugares. Duas suposições estavam por trás das reações ao primeiro ataque sério ocorrido no território continental estadunidense desde que os britânicos saquearam a Casa Branca em 1814. A primeira foi que os Estados Unidos afirmariam a sua primazia global obtida com a vitória na Guerra Fria; a segunda foi que a segurança do Ocidente seria definida por uma guerra que duraria uma geração contra os jihadistas muçulmanos. E o governo Bush logo acrescentou uma terceira suposição: a de que o Oriente Médio seria reconstruído à imagem das democracias liberais ocidentais.
A abordagem adotada por Washington foi codificada na Estratégia de Segurança Nacional, anunciada em 2002. Essa prometida estratégia de hegemonia permanente dos Estados Unidos promulgou uma doutrina de guerra preventiva e descartou as restrições inerentes ao multilaterialismo. E o que os outros pensavam a respeito disso não tinha a menor importância. Os Estados Unidos poderiam agir unilateralmente.
A Casa Branca estava longe de ser a única a fazer essa avaliação a respeito do poderio dos Estados Unidos. A doutrina militar de Choque e Pavor, também conhecida como doutrina de domínio rápido, fez com que a mídia passasse a retratar os Estados Unidos como uma Roma do século 21. Os comentaristas contaram os porta-aviões, os bombardeiros invisíveis ao radar e os mísseis de cruzeiro e declararam que os Estados Unidos eram invencíveis – ignorando alegremente a vulnerabilidade que fora exposta pela Al Qaeda. Muammar Gaddafi foi obrigado a abandonar as suas armas de destruição em massa. Os mulás do Irã cogitaram abandonar as suas ambições nucleares e buscar a paz.
Mas o momento unipolar passou rápido. Bin Laden está morto, e os Estados Unidos estão saindo do Iraque. O Afeganistão será devolvido aos afegãos. O conceito sempre curioso de “guerra contra o terror” foi discretamente abandonado. O extremismo muçulmano é sem dúvida uma séria ameaça – basta ver o Paquistão, o Iêmen e a Somália. No entanto, esta não é aquela luta maniqueísta imaginada por indivíduos como Tony Blair, o ex-primeiro-ministro do Reino Unido.
O Oriente Médio já se mostrou de fato pronto a abraçar a democracia, sem no entanto ter sido coagido a isso com ataques desfechados com mísseis de cruzeiro. Os árabes estão reivindicando o seu próprio futuro, sem se importar com as ideias dos neoconservadores norte-americanos e da Al Qaeda.
Os norte-americanos cansaram-se do multilateralismo e da guerra preventiva. A decisão de Barack Obama de liderar da retaguarda na campanha militar para a derrubada de Muammar Gaddafi é condizente com o estado de espírito do seu país. Quando os republicanos se viram, recentemente, diante de uma escolha entre preservar as reduções de impostos e manter os gastos com armamentos, eles optaram pelas reduções de impostos.
O poderio norte-americano está sendo contestado em um nível que seria inimaginável após a queda de Bagdá. Segundo todos os parâmetros, os Estados Unidos continuam sendo a única superpotência mundial, mas poucos são os que acreditam que Washington é ainda capaz de ditar por conta própria o rumo dos acontecimentos globais.
O mundo foi de fato virado de ponta cabeça, mas o Afeganistão, o Iraque e o território acidentado do Waziristão, no Paquistão, têm se constituído em uma cortina de fumaça, obscurecendo a principal história da última década. As mudanças mais importantes estão nos Estados emergentes da Ásia e da América Latina. Dez anos após o 11 de setembro, o desafio estratégico aos Estados Unidos gira em torno do rápido deslocamento de poder. A ordem global não pertence mais ao Ocidente.
A ascensão desses outros países foi prevista há muito tempo. Mas ninguém imaginava que isso fosse acontecer tão rapidamente. No início do século atual, acreditava-se que a economia chinesa alcançaria a dos Estados Unidos por volta de 2050. Agora a expectativa é de que a economia norte-americana seja superada pela China antes de 2020.
Os desafios ao sistema multilateral estabelecido por Franklin Delano Roosevelt e por Harry Truman não são derivados de um presidente unilateralista na Casa Branca, mas sim da existência de novas grandes potências que não estão dispostas a aceitar uma ordem mundial delineada pelo Ocidente. A mudança de equilíbrio deve-se um pouco à uma questão de percepção – e de antecipação, bem como a realidades concretas. A China pode ter acabado de incorporar um porta-aviões ao seu arsenal, mas os Estados Unidos já contam com uma dúzia dessas belonaves patrulhando os oceanos do mundo. Apesar disso, a direção desse movimento é importante. A China está incrementando as suas forças armadas enquanto os Estados Unidos recuam.
E a outra grande mudança, é claro, deve-se ao colapso financeiro global de 2008. Aquele foi um momento de importância não só econômica, mas também geopolítica. O fracasso do sistema bancário ocidental e a crise da dívida soberana que arrancaram as pretensões de poder remanescentes da Europa e fizeram com que os Estados Unidos perdessem a sua classificação AAA nos mostraram um mundo no qual o Ocidente não é mais o senhor da globalização.
No passado, o consenso de Washington estabeleceu as regras para todos os outros países. Mas o capitalismo liberal de mercado estadunidense foi soterrado pelos destroços do Lehman Brothers. A China é o maior credor dos Estados Unidos. E os países emergentes possuem os seus próprios modelos econômicos.
A resposta de Bush ao 11 de setembro reforçou essas tendências subjacentes. As guerras no Iraque e no Afeganistão custaram aos Estados Unidos mais de US$ 1 trilhão e uma quantidade correspondente de prestígio global. Essas guerras acabaram revelando os limites, e não o alcance, do poder militar. Mísseis de cruzeiro não funcionam contra dispositivos explosivos improvisados.
O que restou foi um mundo que se encontra em um ponto intermediário de transição. A história registrará a década passada como sendo um parênteses – separando um breve período de poder norte-americano sem paralelos de um novo, e caótico, mundo multipolar. A Al Qaeda foi derrotada. Mas, apesar de todo o horror que ele infligiu em 11 de setembro de 2001, Bin Laden acabou não modificando tanto assim o mundo.
Tradução: UOL
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