Sunday, October 30, 2011


ARTHUR FONSECA FILHO

O Enem sob fogo cerrado

O clima de tensão e a cortina de fumaça dificultam que a sociedade perceba a grande contribuição desse exame ao sistema de ensino brasileiro

O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que aconteceu no último final de semana, está sob fogo cerrado: as críticas se concentram na divulgação dos dados, nos seus problemas de organização, nos riscos de fraude e, mais recentemente, no caráter nacional e unificador de tal exame.

Os críticos apontam que, ao substituir os vestibulares das universidades, o exame deixaria as instituições sem capacidade de escolher um perfil mais específico de aluno. 

Indicam, ainda, que o sistema permitiria que alunos com boa pontuação em uma região fossem aprovados em instituições de outra parte do país, tomando vagas locais e aumentando o risco de evasão.

Embora haja algo de real nessas ressalvas, há um evidente exagero em muitas das reclamações. 

O clima de tensão criado e a cortina de fumaça dificultam que a sociedade perceba a grande contribuição desse exame ao sistema educacional brasileiro.

Lembremos que o ensino médio brasileiro sofre, há décadas, de um garrote ao qual se submeteu pela fraqueza das políticas públicas de educação básica: a vampirização do currículo por grandes vestibulares. 

É uma reação em cadeia pela qual, por exemplo, um grupo de pesquisadores de cada um dos institutos da USP decide, sem sair da cidade universitária, o que a Fuvest deve cobrar dos alunos e, por consequência, o que uma boa escola de ensino médio precisa ensinar. 

Esse raciocínio, multiplicado por centenas de universidades país afora, resultou em um currículo irrealizável, conteudista ao extremo, míope, que nenhum bem trouxe à educação. Com o Enem, conceitos como competência e habilidade tornaram-se vocabulário comum de professores e alunos - e também de famílias e da sociedade.

O exame mostrou que os conhecimentos se renovam, mas que as estruturas cognitivas básicas que os operam permanecem e devem ser estimuladas. Demonstrou que uma prova inteligente é capaz de discriminar os mais competentes sem forçá-los a saberes enciclopédicos, destinados ao esquecimento. 

Identifica, ainda, quem passou por uma escola que valorizou o raciocínio, a argumentação, o ensino contextualizado, as habilidades de leitura alfabética e numérica... enfim, aquilo que é fundamental para o desenvolvimento humano.

O Enem já se mostrou um instrumento legítimo para aferir o desempenho dos alunos e para avaliar sua trajetória escolar. Em casos específicos, outros instrumentos complementares devem ajudar as universidades a encontrar um perfil próprio de aluno. As distorções eventuais podem, ainda, ser corrigidas por instrumentos de gestão.

Urge cuidar desse patrimônio, trabalhando para que a sociedade e a mídia compreendam melhor os resultados e deixem progressivamente de fazer análises dogmáticas, centradas nos riscos de qualquer grande exame, para enriquecer a leitura das múltiplas informações que o exame fornece.

ARTHUR FONSECA FILHO é educador, membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, diretor do Colégio Uirapuru e membro do conselho administrativo do Colégio Santa Cruz.

Saturday, October 29, 2011


ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR

O suicídio de Steve Jobs

Foi o que mais me chamou a atenção, no dia em que Steve Jobs morreu: em meio ao fluxo feroz de informações típico da CNN, o médico Sanjay Gupta, também repórter e apresentador do canal, disparou: "Há relatos de que, logo depois de descobrir que tinha câncer no pâncreas, Jobs não aceitou o tratamento indicado, e tentou controlar a doença apenas com uma dieta especial".

Nos dias seguintes, não se falou muito sobre isso, ou pelo menos não vi nem li. Mas, aos poucos, a situação foi se aclarando. Era aquilo mesmo: Jobs achou que driblaria a doença gravíssima à base de alimentos e energia cósmica. O biógrafo oficial, Walter Isaacson, revelou que houve até consultas a curandeiros.
Em nenhum lugar li uma descrição tão apavorante da doença de Jobs, e de como ele lidou com ela, como na reportagem "A Medical Gamble" ("Uma Aposta Médica", ou "Jogando com a Saúde", em tradução aproximada), de Sharon Begley, na "Newsweek".

Begley conta como Jobs atrasou o tratamento nove meses, enquanto tentava a tal dieta. E como, quando não havia mais o que fazer a não ser operar, ele foi submetido a uma cirurgia de nome assustador, "pancreatoduodenoctomia", descrita como uma das mais "complicadas e arriscadas" de toda a medicina, "mais do que cirurgia do cérebro". Mas já era tarde para uma cura efetiva.

A relutância de Jobs, sua recusa em aceitar os tratamentos prescritos a mortais comuns pode ser explicada, é claro, pelo viés psicológico. Um ego tão colossal que esmaga a razão. Uma autoconfiança desmedida, de quem se julga mais poderoso que a própria natureza (ou que Deus, conforme o gosto do leitor).

Mas não me arrisco nessa seara, muito mais bem explorada, neste mesmo espaço, por outros colunistas.

Prefiro falar de como a atitude de Jobs me parece típica da área onde ele nasceu, viveu e prosperou: o Vale do Silício, região de San Francisco, norte da Califórnia. 

Por que talvez em nenhum outro ponto do planeta convivam tão colados o conhecimento científico de ponta e o misticismo. Ou, pior ainda, a mistura perversa de ciência e crendice (por exemplo: usar o conhecimento científico da composição dos alimentos para, a partir daí, acreditar que eles, sozinhos, sejam capazes de curar uma doença agressiva e fatal).

Os laboratórios de Stanford e Berkeley, as duas melhores universidades da região, revolucionam a física, fazem avançar a medicina, ampliam nosso conhecimento sobre o cosmos, desvendam as entranhas atômicas das moléculas.

Mas, nas ruas dessas mesmas cidades, viceja o pensamento "alternativo". Xamanismo, energizações, meditação, tudo isso encontra espaço ali. E tudo movido à ingenuidade e ao paternalismo tão característicos de americanos bem-intencionados. Segundo essa linha de pensamento, se algo é exótico, propalado por pessoas de sotaques estranhos, vindas de lugares distantes, então deve ser bom.

No Vale do Silício, impera o capitalismo em estado bruto (ou selvagem, de novo conforme o gosto de quem lê). Investidores tão ricos quanto impiedosos descarregam fortunas em novas empresas, que surgem às centenas e tentam entregar resultados em meio ao ambiente mais criativo e competitivo do mundo.

No entanto, a poucos quilômetros dali, nas esquinas das ruas Haight e Ashbury, em San Francisco, está o berço do movimento hippie, da paz, do amor e do desdém pelo conforto material.

Outra cidade da região, Berkeley, viu nascer, nos anos 60, o movimento pela liberdade de expressão, crucial na construção do pensamento contestador americano. 

Mas foi na mesma Berkeley, nos laboratórios de Glenn Seaborg (Nobel em 1951), que se desenvolveram algumas das pesquisas mais importantes sobre a química dos elementos radiativos, essenciais para a fabricação da bomba atômica.

Jobs era filho dessas contradições californianas. 

Difícil imaginar o convencional e "nerdy" Bill Gates, ex-aluno de computação em Harvard, recorrendo a dietas anticâncer e a xamãs, caso tivesse uma doença grave. Basta lembrar das centenas de milhões de dólares que a Fundação Bill e Melinda Gates destina à pesquisa médica (Jobs não tinha nenhuma atividade filantrópica conhecida).

Para se tratar, Jobs percorreu o mesmo caminho intuitivo e arriscado que usava para conceber seus produtos. Só que, dessa vez, seu oponente não era o mercado, que ele tão bem dominava, mas células tumorais em replicação descontrolada. Embate perdido, uma espécie de suicídio.

Thursday, October 20, 2011

Mundo nunca foi tão pacífico, diz cientista

Livro de psicólogo evolucionista afirma que todas as formas de violência, inclusive o terrorismo, estão em queda

Homicídios, guerras e crueldade com animais também estão em queda e isso ocorre desde o século 16, segundo obra 

REINALDO JOSÉ LOPES - EDITOR DE CIÊNCIA E SAÚDE - Folha de São Paulo

Faz pelo menos 500 anos que o mundo está se tornando um lugar cada vez mais seguro para se viver, e a raça humana nunca foi tão pouco violenta. Ataques terroristas e guerras civis são meros soluços estatísticos numa paz que nossos ancestrais achariam quase impensável.

Duro de engolir, certo? Pois os números reunidos por Steven Pinker, 57, psicólogo evolucionista da Universidade Harvard, são difíceis de refutar. Todas as formas de violência estão em declínio, das guerras à crueldade com animais, e em alguns casos a queda já dura séculos, diz ele.

Pinker, pop star científico que aprecia os temas polêmicos, apresenta um resumo de seus argumentos em artigo de opinião na edição de hoje na revista científica "Nature". São ideias tiradas de seu novo livro, The Better Angels of Our Nature (ainda sem edição no Brasil).

ANJO BOM

Conforme o título do livro sugere, Pinker argumenta que os "anjos bons [literalmente, melhores] da nossa natureza" estão vencendo a disputa pela alma humana.

"As histórias da Antiguidade estão cheias de conquistas gloriosas que hoje seriam classificadas como genocídios. Fulano, o Grande e Sicrano, o Grande seriam processados como criminosos de guerra", brinca o cientista. E não se trata só da Antiguidade. O registro arqueológico e os estudos sobre povos indígenas atuais mostram que esse negócio de bom selvagem não existe, diz Pinker.

Mais precisamente, esses povos cometem centenas de vezes mais homicídios do que os europeus do século 21, e cerca de 20% das pessoas nessas sociedades morrem em guerras, afirma ele. O bioantropólogo Walter Neves, especialista da USP que estuda os primeiros habitantes da América, concorda. "A guerra, seja entre caçadores-coletores, seja entre horticultores [agricultores primitivos], é crônica e endêmica", afirma ele. No caso de povos pré-históricos, "é preciso tomar um pouco de cuidado porque a agressão entre eles, como bordoadas, deixa marcas no esqueleto que a nossa muitas vezes não deixa, então é difícil fazer a comparação", diz.

BRAÇO FORTE

A primeira queda na pancadaria teria vindo com o fortalecimento dos Estados, em especial as monarquias europeias, a partir do século 16.

Com o rei abarcando o poder absoluto e os nobres (que costumavam guerrear entre si) na coleira, a violência desregrada saiu de cena, já que atrapalhava a centralização de poder e riqueza desejada pelo monarca. Segundo motivo de queda da violência, segundo Pinker: a invenção da imprensa, barateando a circulação de ideias, e o Iluminismo resultante desse processo. 

Os pensadores iluministas, com sua ênfase no debate racional e sua redescoberta das ideias democráticas, dominaram o universo intelectual europeu, debatendo todos os temas tabus e defendendo os direitos de plebeus, minorias, mulheres e até animais. O debate iluminista acabou levando ao lento porém crescente predomínio da democracia como regime de governo, o que também diminuiu guerras - é muito raro que uma democracia declare guerra contra outra. E o avanço do comércio internacional tornou os países cada vez menos interessados em guerrear por riquezas, diz ele. 


Sunday, October 16, 2011

Wednesday, October 12, 2011

Monday, October 10, 2011

Por Steve Jobs

É uma honra estar com vocês hoje na sua cerimônia de formatura em uma das melhores universidades do mundo. Nunca me formei na faculdade. Este discurso é o mais perto que já cheguei de uma formatura. Hoje quero contar a vocês três histórias da minha vida. Só isso. Nada de mais. Apenas três histórias.

1.

A primeira história é a respeito de ligar os pontos. Desisti de cursar a Universidade Reed depois dos primeiros seis meses de aula, mas continuei a frequentar o câmpus como ouvinte por mais 18 meses antes de desistir de vez. Por que eu larguei a faculdade? Tudo começou antes de eu nascer. Minha mãe biológica era uma mulher jovem e solteira que tinha se formado na faculdade e decidiu me entregar à adoção. Ela fazia questão que eu fosse adotado por um casal formado no ensino superior e, por isso, tudo foi arranjado para que eu fosse adotado logo ao nascer por um advogado e a mulher dele.

Mas, quando nasci, o casal decidiu que na verdade o que queriam era uma filha. Assim, meus pais, que estavam na lista de espera, receberam um telefonema no meio da madrugada perguntando: “Temos um inesperado bebê menino; vocês o querem?” Eles responderam: “É claro”.

Posteriormente, minha mãe biológica descobriu que minha mãe nunca tinha se formado na faculdade e que meu pai não concluiu o ensino médio. Ela se recusou a assinar os documentos finais da adoção e só mudou de ideia alguns meses depois, quando meus pais prometeram que um dia eu iria à universidade.

Bem, 17 anos mais tarde, eu fui para a universidade. Mas, ingenuamente, escolhi uma universidade quase tão cara quanto Stanford, e toda a poupança dos meus pais, de classe trabalhadora, estava sendo gasta com o meu ensino superior. Depois de seis meses, não consegui enxergar o mérito daquilo.

Eu não tinha ideia do que queria fazer da vida e não imaginava como a universidade poderia me ajudar a descobrir a resposta. E ali estava eu, gastando todo o dinheiro que meus pais tinham poupado durante toda a vida. Decidi abandonar o curso e acreditar que tudo daria certo no fim.

Na época foi assustador, mas, em retrospecto, foi uma das melhores decisões que tomei. Assim que larguei a faculdade, não precisei mais frequentar as aulas que não me interessavam e pude ir como ouvinte às que pareciam ser mais interessantes.

Nem tudo foi romântico. Eu não tinha quarto no dormitório universitário e, por isso, dormia no chão dos quartos dos colegas. Recolhia garrafas de Coca-Cola para trocá-las por US$ 0,05 e ter dinheiro para comprar comida. Caminhava mais de 10 km aos domingos, de um extremo ao outro da cidade, para fazer a melhor refeição da semana no templo Hare Krishna. Eu amava isso. E percebi depois que boa parte daquilo com que me deparei ao seguir minha curiosidade e minha intuição consistiu em experiências de valor incalculável.

Eis um exemplo do que quero dizer: naquela época, a Universidade Reed oferecia provavelmente a melhor instrução caligráfica de todo o país. Por todo o câmpus, cada cartaz e cada etiqueta de cada gaveta eram maravilhosamente escritos à mão. Por ter virado um desistente que não precisava mais assistir às aulas normais, decidi participar das aulas de caligrafia.

Descobri muito a respeito de fontes serifadas e sans-serif, de variações no espaçamento de diferentes combinações de letras, de características que mais chamam a atenção naquilo que há de melhor na tipografia. Era um assunto maravilhoso, histórico, de uma sutileza artística que a ciência não é capaz de capturar. E tudo me pareceu fascinante.

Nada disso parecia inspirar a menor esperança de encontrar uma aplicação prática na minha vida. Mas, dez anos mais tarde, quando estávamos projetando o primeiro Macintosh, me lembrei daquelas aulas. E todos aqueles conceitos foram incorporados ao nosso projeto para o Mac. Ele foi o primeiro computador a ter uma tipografia belíssima. Se eu nunca tivesse participado daquele curso como ouvinte, o Mac não teria contado com diferentes tipos de fonte e nem com caracteres de espaçamento proporcional. Como o Windows copiou o Mac, é provável que nenhum computador pessoal tivesse esses recursos.

Se nunca tivesse me tornado um desistente, não teria me tornado um ouvinte naquela aula de caligrafia e, talvez, os computadores não tivessem os maravilhosos recursos tipográficos que têm hoje. É claro que, na época da faculdade, era impossível ligar esses pontos. Mas, dez anos mais tarde, a relação entre eles estava claríssima.

Repito que não é possível ligar os pontos quando olhamos para o futuro; só podemos ligá-los ao olhar para o passado. É preciso confiar que os pontos acabarão se ligando uns aos outros. É preciso confiar em alguma coisa – instinto, destino, carma, o que for. Essa abordagem nunca me decepcionou, e fez toda a diferença na minha vida.

2.

Minha segunda história é a respeito do amor e da perda.

Eu tive sorte – descobri cedo aquilo que amo fazer. Woz e eu fundamos a Apple na garagem dos meus pais quando eu tinha 20 anos. Trabalhamos duro e, dez anos mais tarde, a Apple tinha crescido e virado uma empresa avaliada em US$ 2 bilhões, com mais de 4 mil funcionários. Tínhamos acabado de lançar nossa criação máxima – o Macintosh – no ano anterior, e eu tinha acabado de completar 30 anos.

E então, fui demitido. Como é possível uma pessoa ser demitida de uma empresa que ajudou a fundar? Bem, conforme a Apple cresceu, contratamos alguém que me pareceu muito talentoso para administrar a empresa ao meu lado e, no primeiro ano de parceria, as coisas deram certo.

Mas nossas visões para o futuro começaram a divergir e, finalmente, brigamos e nosso conselho administrativo decidiu tomar o partido dele. Assim, aos 30 anos, eu estava fora. A notícia foi muito divulgada. Aquilo que fora o foco de toda a minha vida adulta tinha sido tirado de mim, e a experiência foi devastadora.

Por alguns meses, não soube ao certo o que fazer. Tive a sensação de ter decepcionado a geração anterior de empreendedores – de ter derrubado o bastão quando ele era transmitido a mim. Encontrei David Packard e Bob Noyce e tentei me desculpar por ter estragado tudo.

Meu fracasso foi absolutamente público e pensei até em fugir do Vale do Silício. Mas comecei a perceber algo: eu ainda amava aquilo que fazia. As infelizes situações vividas na Apple não tinham mudado isso em nada. Eu tinha sido rejeitado, mas continuava apaixonado.

E, assim, decidi começar de novo. Não percebi isso na época, mas parece que ter sido demitido da Apple foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para mim. O peso do sucesso foi substituído pela leveza de ser um iniciante de novo, menos cheio de certezas a respeito de tudo. Aquilo me deu a liberdade necessária para começar um dos períodos mais criativos da minha vida.

Nos cinco anos seguintes, fundei uma empresa chamada NeXT, outra chamada Pixar e me apaixonei por uma mulher fantástica com a qual me casei. A Pixar avançou até criar o primeiro longa-metragem de animação feito por computador, Toy Story, e virou o estúdio de animação mais bem sucedido do mundo. Numa reviravolta notável, a Apple comprou a NeXT, eu voltei para a Apple e a tecnologia que desenvolvemos na NeXT está no coração do renascimento da Apple. E Laurene e eu construímos juntos uma família maravilhosa. Tenho certeza que nada disso teria acontecido se eu não tivesse sido demitido da Apple.

Foi um remédio muito amargo, mas parece que o paciente precisava tomá-lo. Às vezes a vida nos atinge na cabeça com um tijolo. Não percam a fé. Estou convencido de que a única coisa que me manteve trabalhando foi o amor que sentia por aquilo que fazia. É preciso descobrir aquilo que amamos. E isso vale tanto para o trabalho quanto para a vida afetiva.

O trabalho vai ocupar uma parte substancial de nossas vidas, e a única maneira de ficarmos realmente satisfeitos é desempenhar um trabalho que acreditamos ser grandioso. E a única maneira de fazer um trabalho grandioso é amar aquilo que fazemos. Se ainda não descobriram o que é que amam fazer, sigam procurando.

E, como ocorre em todos os grandes relacionamentos, as coisas só melhoram com o passar dos anos. Assim, continuem procurando até encontrar aquilo que amam. Não se contentem com menos do que isso.

3.

Minha terceira história é a respeito da morte.

Quando tinha 17 anos, li uma frase a respeito da morte que era mais ou menos assim: “Se viver cada dia de sua vida como se fosse o último, chegará um dia em que você estará certo”.

Aquilo me impressionou muito e, desde então, nos últimos 33 anos, tenho me olhado no espelho todos os dias pela manhã e me feito essa pergunta: “Se este fosse o último dia da minha vida, será que eu faria mesmo o que estou prestes a fazer hoje?” E, sempre que a resposta é “não” por muitos dias seguidos, percebo que preciso mudar alguma coisa.

Lembrar que logo estarei morto é a ferramenta mais importante que encontrei para me ajudar a tomar as grandes decisões da vida. Afinal, quase tudo – todas as expectativas, todo o orgulho, todo o medo do fracasso ou do constrangimento – tudo isso se torna insignificante diante da morte, restando só aquilo que é importante. Lembrar que vamos morrer é a melhor maneira que conheço de evitar a armadilha de pensar que temos algo a perder. Já estamos nus. Não há motivo para não seguir o coração.

Há cerca de um ano, fui diagnosticado com câncer. Fiz um exame às 7h30 da manhã, e ele mostrou claramente um tumor no meu pâncreas. Eu nem sabia o que era um pâncreas. Os médicos disseram que era quase certo que aquele era um tipo de câncer considerado incurável e que eu não deveria esperar viver mais do que três ou seis meses.

O médico me disse para voltar para casa e resolver minhas pendências, algo que equivale à maneira codificada dos médicos de dizer que vamos morrer. Significa que temos de tentar contar aos filhos em poucos meses tudo aquilo que imaginamos ter 10 anos para dizer. Significa certificar-se de que tudo foi arranjado para que a situação seja tão fácil quanto o possível para a sua família. Significa despedir-se.

Convivi com o diagnóstico o dia todo. Naquela noite, fiz uma biópsia, procedimento no qual enfiaram um endoscópio pela minha garganta, atravessando o estômago e chegando ao intestino, cutucando meu pâncreas com uma agulha para recolher algumas células do tumor.

Eu estava sedado, mas minha mulher, que estava presente, contou que quando os médicos analisaram as células ao microscópio, todos começaram a chorar, pois tratava-se de um tipo raríssimo de câncer no pâncreas que pode ser tratado por meio de cirurgia. Eu fiz a cirurgia e agora estou bem. Essa foi a ocasião em que vi a morte mais de perto e espero não repetir a experiência nas próximas décadas.

Mas, depois de ter passado por isto, posso agora dizer a vocês algo que me parecia menos claro quando a morte era um conceito intelectual: ninguém quer morrer. Mesmo as pessoas que desejam ir para o Paraíso não querem morrer para chegar até lá.

Ainda assim, a morte é o destino final do qual todos nós partilhamos. Ninguém jamais escapou dela. E é assim que as coisas deveriam ser, porque a morte é provavelmente a melhor invenção de toda a vida. Ela é o grande agente transformador da vida. Ela tira do caminho o que é velho e abre espaço para o que é novo.

No momento, vocês são o novo, mas, um dia, alguns anos mais tarde, vocês se tornarão gradualmente velhos e serão tirados do caminho. Peço perdão por ser tão dramático, mas isso é bastante verdadeiro.

Nosso tempo é limitado e, por isso, não devemos desperdiçá-lo vivendo uma vida que não seja a nossa. Não se deixem aprisionar pelo dogma – que equivale a viver de acordo com os resultados do pensamento de outra pessoa. Não deixem o ruído da opinião alheia afogar a voz que vem do interior de cada um de vocês.

E, mais importante, tenham a coragem de seguir seu coração e sua intuição. De alguma maneira, eles já sabem aquilo que vocês realmente desejam se tornar. Tudo o mais é secundário.

Quando eu era jovem, havia uma publicação fantástica chamada The Whole Earth Catalog, que foi uma das bíblias da minha geração. Foi criada por um sujeito chamado Stewart Brand perto daqui, em Menlo Park, e ele deu vida à publicação com o seu toque poético. Isso era no fim dos anos 60, antes dos computadores pessoais e da editoração eletrônica, o que quer dizer que tudo era feito usando máquinas de escrever, tesouras e câmeras Polaroid. Era uma espécie de Google em forma de livro de bolso, 35 anos antes de o Google ter sido inventado. Tratava-se de uma publicação idealista, que transbordava de ferramentas bacanas e noções geniais.

Quando a revista pareceu ter cumprido sua missão, eles fizeram uma edição final. Estávamos em meados da década de 70, e eu tinha a idade de vocês. Na quarta capa da última edição havia uma foto de uma estrada interiorana nas primeiras horas da manhã, o tipo de estrada na qual os mais aventureiros gostam de pedir carona.

Abaixo da foto estava escrito: “Continuem esfomeados. Continuem bobos”. Aquela foi a mensagem de despedida deles.

Continuem esfomeados. Continuem bobos. Sempre desejei isso para mim mesmo.

E agora que vocês estão se formando para dar início a um novo começo, é isso que desejo a vocês.

Continuem esfomeados. Continuem bobos.

Muito obrigado a todos.

TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Em 2005, Jobs foi convidado para ser o paraninfo da turma de formandos da Universidade de Stanford, na Califórnia. Na época, Jobs estava no fim do processo de recuperação de uma cirurgia que retirou um tumor de seu pâncreas. Ele falou durante oito minutos para um estádio cheio de estudantes.

http://blogs.estadao.com.br/link/

Sunday, October 09, 2011

Movimentos refletem era de exclusão, diz sociólogo

ELEONORA DE LUCENA - SÃO PAULO

Movimentos que aparecem e desaparecem, fluidos e persistentes. Fragmentados, gravitam em torno dos excluídos do capitalismo. Assim, Michael Burawoy, presidente da Associação Internacional de Sociologia, explica os movimentos sociais que pipocam no mundo e o recente Ocupe Wall Street.

Para o professor de sociologia na Universidade da Califórnia em Berkeley, que já trabalhou como operário para fazer suas pesquisas, a atual crise econômica vai ajudar o capitalismo a se reestruturar. E prevê que a catástrofe ambiental "vai forçar uma resposta a nível global".

Nesta entrevista ele compara os movimentos com o Maio de 68, fala do poder dos EUA e faz uma avaliação da China. "Acho que o Estado chinês é o mais brilhante do mundo. É incrivelmente sensível e flexível", afirma.

Ele estará no Brasil para a reunião anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), que acontece de 24 a 28 de outubro em Caxambu (MG).

Sobre sua profissão, sugere: "Acho que todos os acadêmicos como eu deveriam compulsoriamente passar um tempo em fábricas ou em situações similares, onde serão humilhados rotineiramente".

*

Folha - Como descreve o capitalismo hoje?

Michael Burawoy - É a terceira onda de mercadilização. A primeira foi no século 19 que espalhou o mercado pelo mundo, outra no século 20 e agora a terceira onda. A mudança começou nos anos 1970. Muitos chamam de neoliberalismo, mas pode confundir com ideologia. Prefiro chamar de terceira onda de mercadilização, a partir dos EUA e da Grã-Bretanha. Vivemos numa era de capitalismo de mercado. A queda da URSS renovou as energias, porque sugeriu que alternativas ao capitalismo não existem. A elite pós-soviética que tomou o poder abraçou o mercado com fervor revolucionário. A China hoje parece abordar o mercado de uma maneira diferente, embora seja muito comprometida com as economias centrais de mercados desregulados. O mundo virou pró-mercado e talvez a América Latina seja o lugar mais interessante de resistência a essa onda.

Mas hoje não há uma crise enorme, de fundo?

Não chamaria de crise de fundo. O significado das crises é que elas permitem ao capitalismo reestruturar a si mesmo. Na crise de 2008 nos EUA, quando Obama chegou ao poder, muitos pensaram que haveria alguma mudança contra o mercado. Mas não aconteceu. O capitalismo se reestruturou e aprofundou a mercadilização. E o capital financeiro se fortaleceu. Os Estados salvaram os bancos. Dizíamos que era o socialismo para os ricos. A crise existe, mas não é uma oportunidade para progressivas transições ou transformações, mas reestruturar o capitalismo.

E para que direção vai a reestruturação agora?

O capitalismo financeiro ficou ainda mais forte, essencialmente fora do controle dos Estados individualmente. Acontece nos EUA, na Europa, com a desregulação. Nos anos 30 era possível para os Estados conter e redirecionar o capitalismo. Hoje é difícil para os Estados fazerem isso. É uma pergunta aberta se Estados e regiões poderão fazer isso hoje. Eles têm dificuldade em conter a crise nesse momento.

O que poderá ser feito?

Os mercados vão continuar do seu jeito. A grande crise do capitalismo virá quando chegar a catástrofe ambiental. Penso que haverá desastres cada vez mais frequentes e profundos. Haverá um momento de virada na história, uma espécie de barbárie ou alguma forma de regulação global dos mercados. Pode ser um cenário não muito positivo. Regulação de mercados pode ter um caráter fascista ou comunista ou social-democrata. Não se sabe. A reação contra os mercados pode tomar muitas formas de regulação. Precisaria ter um caráter global por causa da catástrofe ambiental de proporção global. Outra questão é se teremos recursos para de fato conter o capitalismo. Não sei quando isso acontecerá, mas essa será a crise de fundo do capitalismo: destruir as condições de sua própria existência, destruindo o ambiente, modificando condições que nunca deveriam ter sido modificadas.

E o poder das finanças vai diminuir?

Sim, se houver um movimento contra essa terceira onda de mercadilização, deve haver um movimento contra o capitalismo financeiro. Também operando de forma global. É difícil para os Estados regularem o capital financeiro. Precisa ser um movimento global. Pode ser uma cooperação global de Estados ou movimentos sociais que perpassem fronteiras nacionais. O movimento contra o capitalismo financeiro de hoje precisaria ter uma proporção global. Isso é muito difícil, porque estamos trancados em políticas nacionais. Transcender isso é muito difícil. Essa herança de Estados forte é uma contenção nacional.

Mas há agora movimentos na Europa, no Norte da África, no Oriente Médio, nos EUA, o Ocupe Wall Street. Eles têm pontos em comum?

Sim. É interessante ver como são similares. Estive em Barcelona e vi os indignados. Agora também em Wall Street. São muito similares. Resistem a se engajar no sistema político, em levantar temas políticos. Isso reflete a ubiquidade que essa forma do capitalismo financeiro expressa. Política estatal, políticos locais não conseguem lidar com isso. É reconhecimento de que as novas formas de capitalismo não podem ser facilmente contidas pelos canais políticos normais. Todos esses movimentos refletem uma era de exclusão. Se você olha para os participantes desses movimentos eles são os excluídos, não são muito os explorados. O centro de gravidade desses movimentos são os excluídos, os desempregados, estudantes semiempregados, juventude desempregada, membros precários da classe média até. É um conglomerado de grupos diferentes todos vivendo um estado de precariedade porque foram excluídos da possibilidade de ter uma posição estável de exploração. Hoje a exploração, o dinheiro seguro é um privilégio para poucos. Muitos querem fazer parte da exploração para ter uma renda estável. Os políticos de hoje giram em torno de uma aristocracia de explorados. Isso no mundo todo, com diferenças. Na Espanha há os indignados, muito organizados nas praças. Organizam assembleias, sua forma de democracia participativa, nas praças dos centros das principais cidades. Na Inglaterra houve mais revoltas, o que reflete 30 anos de vazio na sociedade civil de lá. A direção desses movimentos está muito ligada à relação com o movimento sindical oficial. Nesta semana uma central sindical aderiu ao Ocupe Wall Street. O movimento sindical tem um papel importante no Egito e na Tunísia. Acho que o centro de gravidade dos trabalhadores está mudando das centrais que representam os explorados, para os despossuídos.

Qual o futuro dos movimentos se sua organização é muitas vezes confusa?

Na minha opinião esses movimentos não são muito fortes, mas são persistentes. São oposições radicais. É uma das reações à terceira onda de mercadilização. Mas há muitas outras. Aqui há o Tea Party, os republicanos direitistas, que são uma outra forma de reação ao mesmo fenômeno. Na Europa há um avanço da direita, que é uma outra reação. Na América Latina há interessantes experiências de participação em democracias em nível local. Também é uma resposta à terceira onda de mercadilização. Há a resposta islâmica. Há o estado iraniano de um lado e o turco de outro. São diferentes, mas respostas ao mesmo fenômeno. Mas nenhuma dessas respostas tem uma coerência para se espalhar pelo mundo todo. São respostas fragmentadas. Essas respostas vão continuar, algumas de forma mais regressiva, ou progressista, ou emancipativa, ou democrática. Temos que esperar para ver qual delas vai assumir uma força dominante. No fim, acho que a crise ambiental vai forçar uma resposta a nível global. Mas por enquanto é muito fragmentada. As centrais sindicais reclamam que fizeram esse protestos antes, e ninguém deu atenção para eles. O interessante é que parte desses novos movimentos é a política simbólica. Eles têm a capacidade de atrair atenção para eles, usando técnicas inovadoras. Recusam fazer compromissos e concessões. Estão sendo muito bem sucedidos simbolicamente. A pergunta é se eles conseguirão transformar essa política simbólica em um movimento mais profundo. É fascinante. Não é muito forte. São poucos milhares pelo país. O que é significativo é o caráter simbólico. É uma posição muito clara que vivemos num período do capitalismo em que o bem estar está fora de controle e o estado frustra. É um ataque central ao âmago do capitalismo. O movimento sindical está numa posição mais defensiva, pois querem defender empregos e não de fato atacar o capitalismo. A significância não é de números, mas simbólica na crítica ao capitalismo.

E os partidos políticos tradicionais são totalmente por fora disso?

Sim, completamente. Os republicanos acusam os manifestantes de fomentar o choque de classes. Claro, que estão fomentando choque de classes contra o capitalismo. Eles dizem isso para tentar deslegitimizar o movimento imediatamente. Isso pode ser verdade para parte da população norte-americana.

Mas esse movimento pode ter alguma influência dentro do partido democrata, assim como o Tea Party tem no partido republicano, para revitalizar o partido e conquistar algo de efetivo?

Acho que o partido democrata deve ser revitalizado, mas isso não está na pauta do movimento. É uma política formal com a qual eles não vão se engajar. Podem estimular mudanças no partido democrata? Eu pessoalmente duvido. Isso é tão profundamente diferente do partido democrata. Esse movimento também expressa a desilusão com a administração Obama.

Mas esse movimento pode ter alguma importância nas eleições do ano que vem?

Suspeito que pode. Pode ser explorado o fato de ser um ano eleitoral e pode engajar políticos. Podem usar o ano eleitoral para disseminar suas ideias. Mas não imagino que vão se candidatar. Não é um movimento de política eleitoral. É distante da política eleitoral. A questão é como movimentos assim desligados das principais instituições da sociedade podem sobreviver. Acho que é o seguinte: eles aparecem, se sustentam por algumas semanas ou meses. Depois perdem a atenção da mídia, perdem o apoio, desaparecem. E depois reaparecem. É um processo contínuo de aparecimento e desaparecimento. É como se houvesse um movimento giratório pelo mundo. Esses movimentos aparecem por causa de alguma fagulha, um incidente qualquer, e se sustentam por algumas semanas, desaparecem e aparecem em algum outro lugar. Há um senso de continuidade, mas não num mesmo lugar. É um movimento transespacial dessa forma. Fundamentado muito por razões locais, mas transespacial.

Tudo isso é muito novo, não?

Sim, mas é preciso ver tudo isso no contexto do capitalismo. É um movimento muito fluido e flexível. Fui a Wall Street alguns dias atrás. Dá para ver que é fluído e flexível. Eu estava lá e nem sabia que haveria uma marcha. Há espontaneidade, flexibilidade. É fascinante. Aparecer, desaparecer. É parte de sua força e de sua fraqueza.

Nesse contexto, crescem as ideias de esquerda?

Sim, os participantes são de esquerda, são radicais democratas participativos, que preferem estruturas horizontais a verticais. Protestam contra o capitalismo que enxergam ao seu redor. Tudo acontece de forma muito transparente. É uma antítese da terceira onda de mercadilização. Mas quero enfatizar que não é a única reação a esse fenômeno do capitalismo. Há reações à direita também, com fundamentos mais autoritários. Os indignados também são uma forma democrática de política. Não sei se pretendem usar a palavra socialismo. Democracia é a palavra. Já os estudantes, como no Chile, também estão protestando contra essa onda do capitalismo, que essencialmente privatizou as universidades. Não só isso, mas a produção de conhecimento se tornou um projeto comercial e isso significa que se você quer educação precisa pagar por isso. Vi isso recentemente na Ucrânia, onde os estudantes estão protestando. E o movimento estudantil é claramente contra isso, contra a comercialização da universidade. Os países podem ter abraçado o mercado, mas os estudantes reconhecem as enormes limitações e o que o mercado significa para eles. No período soviético a educação era gratuita. Ninguém imaginava a privatização da educação. O mundo pós-soviético era para ser de emancipação. Mas eles verificaram rapidamente que não houve solução para os problemas que a planificação soviética criou. É também um problema sociológico. Também o movimento estudantil é fragmentado, aparecendo e desaparecendo, tentando construir algo pelo mundo com os temas em comum, mas é muito difícil ainda. É frágil, mas persistente.

O sr. faz alguma comparação com maio de 68?

Não, é um mundo diferente. Maio de 68 foi o fim da era de Keynes, uma reação à segunda onda de mercadilização. Era o período de Keynes na economia, as universidades eram entendidas como instituições públicas, a economia de mercado era regulada. As lutas tinham um caráter muito diferente. Hoje as lutas são defensivas do ponto de vista do interesse material. Uma defesa contra o mercado. Em 68 tiveram um caráter mais político do que econômico. Nos EUA havia a luta pelos direitos civis, pelo direito de liberdade de expressão, contra a guerra do Vietnã. Em Paris, o Maio de 68 foi também uma luta política. Hoje os estudantes estão enfrentando uma situação econômica impossível. Os estudantes não estão ganhando a luta pela defesa de seus interesses econômicos, em defesa da universidade pública, em defensa da educação semigratuita.

O que o sr. acha do papel da China?

Eu vi a transição na Rússia. Do Estado socialista para a economia de mercado. A estratégia era muito simples: destruir tudo do passado. Tudo que tinha a ver com coletivização, planificação da economia, destruir, destruir, destruir. E fizeram isso com o Estado: destruir, destruir. Achavam que se destruíssem o passado, destruíssem as instituições do Estado, as regulações do mercado, a economia de mercado iria chegar espontaneamente ao paraíso. Mas o que ocorreu foi que não chegou ao paraíso, mas, de fato, ao inferno. A economia russa afundou de uma maneira nunca vista em tempos de paz no século 20. É um contraste. Enquanto a Rússia caia, a China estava se expandindo e crescendo nos anos 1990 e até hoje. Isso porque a China não disse: destruir, destruir. Disse: vamos construir o mercado com a moldura da regulação de mercado, na moldura do partido de Estado. Assumiram que os mercados precisam de instituições para que funcionem de maneira efetiva. Acho que os terapeutas de choque, das teorias de big-bang no que era a antiga URSS não entenderam que os mercados não cresceram como mercados. É preciso ter instituições. Os chineses entenderam isso. A transição deles foi alimentar, incubar os mercados na moldura do partido de Estado. E eles foram extremamente bem sucedidos e continuam a sê-lo. O problema deles é que ser tão bem sucedido também gera todo o tipo de tensões. Particularmente os diferentes níveis de iniquidade, entre áreas rurais e urbanas, entre classes, entre ocupações. A questão é se os chineses podem conter essas tensões e conflitos gerados pelo sucesso do modelo econômico. Acho que o Estado chinês é o mais brilhante do mundo. É incrivelmente sensível e flexível. Sabe exatamente onde novos conflitos vão aparecer e tem uma enorme capacidade de contornar esses conflitos, ora criando um aparato legal de flexibilização dentro da arena legal, ora fazendo concessões econômicas. Há uma enorme máquina, uma série de estratégias para diluir os conflitos. Ninguém sabe até quando isso vai durar, mas eles têm sido bem sucedidos até agora. Eles estão fazendo uma mudança lenta das fábricas das áreas da costa para as áreas mais baratas do interior. Novas cidades são criadas do dia para a noite. Alguns capitais acham muito caro e vão para o Camboja ou Taiwan. Há uma reestruturação do capital na China. Há estudos sobre a ida dos capitalistas chineses para a África. E eles exploraram as riquezas de lá de modo muito diferente do das empresas capitalistas do Ocidente. Eles têm um tempo muito maior. Uma das características do capitalismo é o curto prazo, o lucro imediato. Então, quando o preço do cobre vai para baixo, saem da Zâmbia. Mas os chineses não vão embora. Eles vão ficar e olhar para o longo prazo porque eles têm a retaguarda do Estado. Eles têm uma visão melhor do que precisam para o futuro, o que significa muitos recursos naturais. Estão tomando conta silenciosamente de várias partes do mundo, direta ou indiretamente, sem ambições políticas.

O poder dos EUA está caindo?

É difícil de responder, porque é difícil o significado de poder. A economia não está numa boa forma, mas é uma economia extremamente forte. Politicamente é muito poderosa. Mas acho que está enfrentando um super estresse, não sabendo como lidar com os conflitos que emergem no mundo, mas ainda consegue manter pontos cruciais, o principal deles é Israel. Manter Israel é sempre uma condição sine qua non na geopolítica. Mas é difícil responder a pergunta porque o poder é multidimensional.

O sr. acha que Obama será reeleito?

É muito cedo para dizer, mas diria que sim.

O sr. fez um trabalho interessante atuando como operário. O que pode dizer sobre isso e sobre os seus projetos atuais?

Eu não trabalho mais como operário.

Sente falta?

Não. Odiei cada momento. Acho que todos os acadêmicos como eu deveriam compulsoriamente passar um tempo em fábricas ou em situações similares, onde serão humilhados rotineiramente. Estou estudando minha própria fábrica agora que é a universidade. Esse é o meu projeto: estudar universidades em crise pelo mundo afora. É entender o que acontece com as universidades, como elas lidam com as pressões do mercado de um lado e do Estado de outro. A maioria das universidades está em crise. Há uma comercialização da produção do conhecimento e do consumo do conhecimento.

Saturday, October 08, 2011