Saturday, December 31, 2011


DRAUZIO VARELLA

Feliz Ano-Novo

Fim de ano é sempre um inferno. Começa com o Natal, festa pagã consumista disfarçada de comemoração religiosa que nos enche de obrigações e tumultua a vida da cidade, já antes do primeiro de dezembro.

Com os dois olhos nas vendas e nenhum no aniversariante, o comércio se engalana com papais noéis obesos em posições circenses nas janelas e nas marquises das lojas, adornados com guirlandas de plástico, bolas multicolores e flores artificiais amarradas com laços vermelhos de bordas douradas, em meio às luzinhas que serpenteiam junto de trenós e renas a cavalgar num calor de 30 graus.

É um festival de breguice urbana de raro senso estético.

O trânsito de São Paulo que já é de chorar, vira uma tortura. As ruas que ousam chegar perto dos shoppings, da 25 de Março e das lojas do Bom Retiro viram estacionamentos a céu aberto, nos quais os carros se movem ocasionalmente.

A decoração da avenida Paulista e a incrível árvore de Natal do Ibirapuera atraem tanta gente desocupada, que pobre do mal-aventurado que precisa se locomover por essas paragens.

Graças às hordas de curiosos motorizados que se acotovelam para espiar a decoração da Paulista, sexta-feira passada fiquei preso num congestionamento na avenida Rebouças, à meia-noite. Tem cabimento? Ainda mais irritante é a felicidade natalina que se dissemina à medida em que o dia 25 se aproxima.

O pessoal dos escritórios lota os bares e restaurantes para almoços e jantares de confraternização ensurdecedora. Em meio à gritaria alcoolizada, todos se abraçam e se beijam, juram amor eterno e trocam presentes com os amigos secretos.

Nessa época, chovem convites para sair com parentes e amigos. Parece que se não os encontrarmos antes do fim de ano, o relacionamento sofrerá um abalo terrível.

Como alegar falta de tempo para não atender a essas convocações é considerado menosprezo, lá está você de banho tomado na correria, morto de fome, depois de um dia trabalho, do calor insuportável e do trânsito insano, para um jantar que será servido às dez e meia, quando todos já estiverem enfastiados com os canapés, azeitonas, patês e queijinhos servidos com as bebidas.

Vira um martírio trabalhar nessa época em que todos estão em clima de festa. A partir do dia 15, até o inadiável fica para o ano seguinte. Quando chega a hora de reunir a família na ceia de Natal, já estou desanimado de tanto correr, beber e comer mais do que devia.

O prazer de ver as crianças excitadas com os presentes embaixo da árvore, entretanto, compensa o sacrifício dos dias anteriores. Invadido pelo espírito natalino, chego a admirar o clarão dos fogos ao longe e até as luzinhas coloridas no prédio vizinho.

Nos dias que se seguem parece que São Paulo mudou de cidade: calçadas desertas, lojas fechadas, trânsito de 1950.

Pensa que faço as pazes com a paz? Nesse ambiente pacato sou tomado pela ansiedade do Ano Novo; prometo para mim mesmo que tudo será diferente, desta vez.

Agora trabalharei menos, dedicarei mais tempo para os amigos, visitarei o tio querido que passou dos 90 anos, andarei à toa pelas ruas do centro velho, apanharei chuva, estudarei mais, lerei as revistas e os livros que empilhei na cabeceira, viajarei para o rio Negro, terminarei de escrever o livro que está pela metade e correrei duas maratonas: uma no primeiro, outra no segundo semestre.

Serei um médico mais competente, mais culto, um escritor com domínio da escrita e um maratonista capaz de atravessar a linha de chegada sem a exaustão que dá vontade de chorar no meio da rua.

Tenho o bom senso, no entanto, de guardar em segredo essas intenções. Não ouso divulgá-las porque já o fiz em tantas oportunidades, que acabaria desmoralizado outra vez. A julgar pelos anos anteriores, daqui a pouco estarei tão envolvido com o trabalho que os bons propósitos irão para o espaço.

Dizem que uma das aquisições da maturidade é a aceitação das fraquezas e das limitações pessoais. Talvez eu morra sem resolver a contradição entre o trabalho excessivo e o lazer.

Vou parar de me queixar, às vezes fico cansado de ser eu.

Feliz Ano-Novo para você, leitor amigo, menos atormentado do que este que vos escreve no último dia de 2011.

Friday, December 30, 2011


Para biólogo, aquecimento é 'lobotomia'

Ex-ministro uruguaio do Meio Ambiente, Aramis Latchinian vê risco à soberania em agenda imposta por países ricos

FLÁVIA MARREIRO - FOLHA DE SÃO PAULO

O aquecimento global é um consenso "muito conveniente" entre diversos governos, ONGs e organismos multilaterais, que suga recursos da cooperação internacional e distorce prioridades na agenda ambiental e acadêmica, especialmente nos países da América Latina.

A opinião contundente é do ex-ministro do Meio Ambiente do Uruguai, Aramis Latchinian. Biólogo marinho e gestor ambiental em uma consultoria, ele é autor de Globotomía - del Ambientalismo Mediático a la Burocracia Ambiental (editora Puntocero, ainda sem tradução para o português), livro já lançado na Venezuela, no Uruguai e na Argentina.

Na obra, ele discorda que haja provas de que o componente humano seja relevante no aumento da temperatura do planeta.

'OBEDIENTES'

"Não falo de ceticismo ou negacionismo, falo de ter dúvidas. Se eu classificasse como negacionistas os que duvidam, teria de classificar de obedientes os que apoiam", disse o biólogo à Folha.

"Há demasiados atores que dependem de que seja nossa culpa [o aquecimento global]. Há uma burocracia gigantesca na ONU, muitas ONGs transnacionais e nacionais que construíram sua estratégia para existir com base na importância do problema", continua ele.

O centro do argumento de Latchinian, porém, é político. Para ele, o "alarmismo" de ONGs transnacionais que pregam "ambientalismo iluminista de corte autoritário" dilui responsabilidades locais e atropela agendas mais importantes: a gestão ambiental nas megalópoles do continente e questões como saneamento básico, despoluição dos rios e correção de más práticas agrícolas.

"O setor acadêmicos nos nossos países - não sei como é profundamente no Brasil - depende da cooperação internacional para pesquisar. Os fundos de cooperação estão condicionados aos temas. Se na Venezuela querem pesquisar o problema do lixo no rio Guaire, o que fazem é dizer: 'efeito do aquecimento global sobre o rio Guaire'. Eu já vi projetos até de psicólogos citando aquecimento global", ironiza ele.

O termo "globotomia" refere-se à operação para transformar um determinado tema na grande preocupação ambiental do momento.

Ele elenca: nos anos 1980 e 1990, foi o buraco na camada de ozônio. Agora, vivemos a era do aquecimento - que, com a crise mundial, foi perdendo força na agenda. O próximo ponto, aposta, será a defesa da biodiversidade.

O livro argumenta que globalizar os problemas ambientais é um erro. O lema "pense localmente, aja globalmente" foi invertido, afirma, e hoje as ONGs de atuação local seguem diretrizes das grandes ONGs mundiais, em busca de financiamento.

'TODOS RESPONSÁVEIS'

"Os responsáveis somos todos: é a evangelização que faz Al Gore no seu filme. Mas não é um problema de todos. Quer dizer, ninguém apagou uma luz em Las Vegas. Não foi reduzida a orgia de gasto de energia nos EUA. Se vemos os focos de emissão de gases do efeito estufa, vemos cidades pontuais, e nenhuma cidade latino-americana, nem sequer a Cidade do México, aparece. Seguir essa agenda é perder soberania."

A diatribe do ex-ministro contra a etiqueta do bom ambientalista moderno chega à prática de usar sacolas reutilizáveis nos supermercados. O uruguaio diz que é uma comportamento regressivo, "de voltar ao passado da bolsa da vovó", que não é reproduzível em larga escala.

Wednesday, December 28, 2011


ANÁLISE

TRABALHO INFANTIL

MARCELO MEDEIROS - ESPECIAL PARA A FOLHA

O Brasil ainda tem 6% de suas crianças de 10 a 14 anos trabalhando, segundo os dados do Censo 2010. Isso corresponde a um milhão de crianças. É quase como se todas as crianças da cidade de São Paulo estivessem trabalhando.

Mais grave ainda é a persistência desse problema, pois a proporção de crianças trabalhando no país não teve redução expressiva desde meados da década de 90.

O crescimento da economia brasileira, a queda da desigualdade social e a diminuição da pobreza não foram capazes de mudar expressivamente esse cenário.

Hoje sabe-se muito mais sobre trabalho infantil do que no passado. Pais que trabalharam quando crianças tendem a fazer com que seus filhos também trabalhem.

A maior parte desse trabalho é na agricultura, não remunerado e em tempo parcial. Meninos trabalham com mais frequência que meninas, e as atividades das crianças geralmente consistem em ajudar seus pais.

É mais comum nas áreas menos desenvolvidas do país e reflete muito de nossas desigualdades regionais.

Mas o trabalho infantil não se resume a isso, há um repertório longo de exploração e trabalho degradante até mesmo nas grandes metrópoles do Brasil.

RISCOS

Estudos mostram que não há nada de bom no trabalho infantil. Trabalhar traz riscos à saúde das crianças, piora seu desempenho escolar e, em alguns casos, chega a retirá-las das escolas.

Não ajuda no rendimento das famílias porque rende pouco e nem sequer prepara as crianças para um futuro profissional, pois adultos que trabalharam quando crianças terminam em profissões piores do que aqueles que nunca trabalharam.

Crianças, para se desenvolverem bem, devem brincar, estudar e não trabalhar.

O trabalho infantil é mais comum entre as famílias pobres mas, ao contrário do que se costuma pensar, não é uma estratégia de sobrevivência.

É reflexo de uma cultura que valoriza pouco a infância e a educação, um sintoma de problemas de longo prazo nos sistemas educacionais.

Também indica uma falha da educação no passado, que não foi capaz de preparar uma geração de pais que dessem prioridade à educação de seus filhos, e uma falha no presente, de um sistema que não consegue prover escolas em tempo integral capazes de suplementar aquilo que as famílias pouco educadas de hoje não são capazes de fazer.

Não é de surpreender, portanto, que avaliações recentes mostrem que programas de transferência de renda não reduzem o trabalho infantil: o problema maior não está na pobreza, está na educação.

MARCELO MEDEIROS é professor de sociologia da Universidade de Brasília, especialista em desigualdade social, e pesquisador do Ipea.

Tuesday, December 27, 2011


2011 - Retrospectiva


Primo Levi - A Trégua

Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel - Elite da Tropa

Luiz E. Soares, Cláudio Ferraz, A. Batista e R. Pimentel - Elite da Tropa 2

Catherine Millet - A Vida Sexual de Catherine M

Reali Jr. - Às Margens do Sena - depoimento a Gianni Carta

Irvin D. Yalom - O Carrasco do Amor e outras histórias de psicoterapia

Primo Levi - O Último Natal de Guerra

Miguel Torga - Bichos

Hélio Pellegrino - Édipo e a Paixão - Os Sentidos da Paixão

Agatha Christie - Um Corpo na Biblioteca

Jack London - Os Melhores Contos de Jack London

George Orwell - Mil Novecentos e Oitenta e Quatro

Aldous Huxley - Admirável Mundo Novo

Aldous Huxley - Regresso ao Admirável Mundo Novo

Hannah Arendt - Sobre a Revolução

Hannah Arendt - Responsabilidade e Julgamento

Celso Lafer - Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder

James Joyce - Retrato do Artista quando Jovem

Clement Greenberg - Estética Doméstica

Gay Talese - Vida de Escritor

Ricardo Alexandre - Nem Vem que Não Tem: A Vida e o Veneno de Wilson Simonal

Lorenzo Mammì - Espaços da Arte Brasileira / Volpi

Dashiel Hammett - O Falcão Maltês

Herman Melville - Billy Budd

Arundhati Roy - O deus das pequenas coisas

Lino de Macedo - O desenvolvimento da criança como uma abertura para todos os possíveis

Lino de Macedo - A questão da inteligência: todos podem aprender?

Jean Piaget - Seis Estudos de Psicologia

Gay Talese - A Mulher do Próximo: uma crônica da permissividade americana antes da era da Aids

Zuenir Ventura - 1968: o ano que não terminou

Laurentino Gomes - 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil

Chuck Palahniuk - Mais Estranho que a Ficção

Peter Ames Carlin - Paul McCartney: Uma Vida

Chuck Palahniuk - Snuff

Philip Norman - John Lennon: a Vida


VLADIMIR SAFATLE

A década do desencanto

Cada época tem um afeto que lhe caracteriza.

Nos anos noventa, ele foi a euforia: marca de um mundo supostamente sem fronteiras, pós-ideológico e animado pelas promessas da globalização capitalista. Na primeira década do século 21 os ataques terroristas aos EUA conseguiram transformar o medo em afeto central da vida social. O discurso político reduziu-se a pregações, cada vez mais paranoicas, sobre segurança, perda de identidade e fim necessário da solidariedade social.

No entanto, 2011 começou com uma mudança fundamental na dimensão afetiva. Pois novos laços sociais paulatinamente apareceram levando em conta a força produtiva do desencanto. Este é um dado novo. Desde o final dos anos 70, as sociedades capitalistas não tinham mais o direito de acreditar na produtividade do desencanto. Fomos ensinados a ver, no desencanto, um afeto exclusivamente ligado aos fracassados, depressivos e ressentidos; nunca aos produtores de novas formas.

Em Suave é a Noite, Scott Fitzgerald apresenta um de seus personagens dizendo que sua segurança intacta era a marca de sua incompletude. Tal personagem nunca sentira a quebra de suas certezas, a desarticulação de seus valores, por isto ele continuava incompleto. Ele não tinha o desencanto necessário para explorar, sem medo, a plasticidade do novo.

Os novos personagens que entraram em cena na política mundial a partir deste ano não têm esse problema. Aqueles que transformaram 2011 no ano das revoltas sabem que todo verdadeiro movimento sempre começa com a mesma frase: "Não acreditamos mais". Não acreditamos mais em suas promessas de desenvolvimento social, de resolução de conflitos dentro dos limites da democracia parlamentar, de consumo para todos. Sempre demora para que tal frase se transforme em um: "Agora sabemos o que queremos". Tal demora é o tempo que o desencanto exige para maturar sua produtividade. Como sempre, essa maturação chegará quando menos esperarmos.

Mas todo acontecimento vem sempre acompanhado de um contra-acontecimento. Se o grande acontecimento de 2011 foi essa nova economia afetiva no campo político, o grande contra-acontecimento ocorreu na Grécia e na Itália: a expulsão dos políticos do centro de decisão em prol de meros estafetas do sistema financeiro.

Como se, de um lado, tivéssemos em marcha a dinâmica de reconstrução do político. De outro, sua anulação completa através da falácia gerencial de empregados do Goldman Sachs travestidos de primeiros-ministros. Estas são as duas vias às quais a década que agora nasce será confrontada.

Sunday, December 25, 2011


Saskia Sassen

A política como lugar

Ocupar significa enfrentar a lógica antidemocrática do poder, redefinindo o papel do cidadão na ‘rua global’

24 de dezembro de 2011 | 16h 00 - estadao.com.br

Para pesquisadora, manifestantes do OWS fazem história ao transformar o que era mero espaço público

Ocupar não é o mesmo que demonstrar. Muitos dos protestos do ano passado - Praça Tahrir, os indignados, Ocupe Wall Street (OWS) e outros - deixam nítido o fato de que ocupar significa estabelecer um novo território. Transformar o que era visto meramente como um espaço num território. Nesse processo, ocupar também cria um pouco de história.

Território é um vetor estratégico em todos esses tão diversos processos de ocupação. No sentido em que estou usando o termo, território é uma condição complexa na qual se insere a lógica do poder e da reivindicação, algo que implica muito trabalho para criar e não pode ser reduzido apenas à factibilidade elementar do espaço ou da terra. Assim, ocupar é um processo que reelabora, mesmo temporariamente, a frequentemente antidemocrática lógica do poder incrustada no território. E com frequência também redefine o papel dos cidadãos, na maior parte debilitados e fatigados depois de décadas de injustiças e desigualdades crescentes.

Na verdade, as ocupações têm revelado até que ponto a realidade do território vai além de seu significado predominante em todo o século 20: o do território de soberania nacional. Dependendo da região do mundo, durante um século ou mais a complexa categoria que é o território ficou restrita a um único significado: território de soberania nacional.

O movimento Ocupe Wall Street entrou num dos territórios estratégicos das finanças globais e, durante dois meses de trabalho duro e muita deliberação coletiva, estabeleceu um novo território - físico e conceitual - com sua própria lógica de organismo e representação descentralizados. O movimento Ocupe Oakland se inseriu num território estratégico do comércio global em novembro, quando temporariamente fechou o porto da cidade, o quarto maior dos Estados Unidos. 

A maneira como a Praça Tahrir foi usada durante a revolução egípcia - o trabalho de erigir um acampamento e mantê-lo habitável e pacífico durante vários meses - da mesma maneira transformou a praça num outro tipo de território. Los Indignados, na Espanha, não realizaram apenas manifestações: eles estabeleceram um acampamento com múltiplas funções. 
Os estudantes que ocuparam a Universidade de Porto Rico um ano atrás durante dois meses, cercados pelo Exército, criaram algo parecido a uma sociedade e economia alternativas, cuidando do seu próprio sustento, ensinando várias habilidades um ao outro.

Essas e tantas outras ocupações exigiram trabalho e estratégia. Diria que é um movimento social multilocalizado, criado a partir do cruzamento de um modo político global e das especificidades e história locais. Cada um desses lugares tem a própria genealogia de ações, histórico de violência e libertação e geografia do poder. Mas nesta atual era global algumas condições estruturais estão presentes em mais e mais países: em todos eles observamos o crescimento das desigualdades e a expulsão das jovens gerações da classe média de um projeto de vida de classe média.

No seu início, a criação do território nacional envolveu conquistar autonomia de uma potência dominante - como ocorreu com os Estados Unidos no princípio e também no caso dos movimentos de independência na África e muitas outras lutas em todo o mundo. Esses foram momentos importantes, quando a lógica do poder e da outorga de poder coincidiram numa tentativa de se criar sistemas políticos e socioeconômicos mais igualitários. Como resultado, surgiram governos de certa maneira receptivos às demandas das classes médias emergentes.

Com mais frequência, contudo, essas primeiras lutas para criar território próprio foram frustradas por elites que se apoderaram abusivamente do poder, deixando os cidadãos empobrecidos e sem nenhum direito de representação. Essa decadência não seria apenas interna, contudo. Estabelecer o próprio território também pode levar à colonização dos antigos habitantes do lugar ou, no decorrer do tempo, significou entrar furtivamente no território de outros. O que nos leva de volta às contradições do território nacional: alguns Estados-nação foram criados no rastro de vastas geografias imperiais de exploração e dominação. Num sentido importante, contudo, territórios colonizados são constituídos por meio de uma lógica distinta daquela do território feito nação, que é impulsionado, pelo menos no início, pela lógica da autodeterminação. Hoje, era em que vemos a decadência do Estado liberal, a lógica do poder não coexiste com a lógica da outorga de poder - ela coexiste com o empobrecimento crescente da classe média e a perda dos direitos do cidadão.

A decadência do “projeto nacional” em parte decorre da emergência de vetores territoriais diferentes. Observamos a ascensão de novos agrupamentos de uma miscelânea de território, autoridade e direitos outrora firmemente assentados nas estruturas nacionais. O espaço operacional das empresas globais é um agrupamento de uma miscelânea de múltiplos territórios nacionais. Assim também é a rede das cidades globais. Esses agrupamentos emergentes na maior parte atravessam o binário do “nacional versus global”. Os movimentos “Ocupe” também são agrupamentos emergentes de uma miscelânea de vários territórios nacionais (e globais). Sua reivindicação do espaço público é uma resposta às deficiências cada vez mais palpáveis da lógica do Estado-nação.

Esses movimentos lançaram um processo emergente que considero como da “rua global”, um lugar para se criar o social. Esse modo de formação do público é bem diferente da tradição europeia do espaço público, que é o lugar para implementar práticas que já se tornaram um ritual. O movimento “rua global” liberta o território, como categoria e como capacidade; ele transforma a rua num espaço para reformular o social e o político por aqueles que não têm acesso aos instrumentos de poder estabelecidos dentro dos limites do território de soberania nacional. É por isso que os acampamentos no Cairo, Nova York e em todos os outros locais são um elemento crucial em meio às mudanças mais profundas que estão desestabilizando a territorialização nacional da vida política e social. E é por isso que as tentativas para fazer acampamentos na Síria e no Bahrein são importantes, mesmo se fracassarem.

O espaço mais amplo permitindo essa ocupação em múltiplos lugares é a rede das cidades globais em todo o mundo, cujo número vem aumentando, em parte como resultado das necessidades territoriais maiores do capital global e das finanças globais. E aqui reside uma interessante dialética entre o crescimento das cidades globais e o crescimento dos movimentos de ocupação. A cidade surge como um espaço em que os impotentes podem fazer história; não é o único espaço, mas é um espaço crucial. Seja no Egito, nos Estados Unidos ou qualquer outro lugar, é importante que o objetivo dos ocupantes não seja o de arrebatar o poder. 

Inversamente, eles estiveram e estão engajados em trabalhar para a cidadania, expor as falhas e os erros da política e da sociedade. No meu livro Territory, Authority, Rights (Território, Autoridade, Direitos - 2006), abordei essa questão de como os impotentes podem fazer história e, se o conseguirem, como poderão fazer isso sem se tornar necessariamente pessoas com o poder nas mãos. Isso nos mostra que a impotência não é simplesmente uma condição absoluta que pode ser nivelada para se tornar ausência de poder. O fato de as pessoas se tornarem presentes e, importante, se tornarem visíveis umas para as outras, pode alterar a natureza da sua impotência. Com base em certas condições, a impotência pode se tornar algo complexo, e com isso quero dizer que ela pode conter a possibilidade de criar o político, o cívico, ou a história.

A violência com que várias dessas ocupações pacíficas têm sido confrontadas pela polícia e pelos soldados do Exército é indicação de quão ameaçadora é a ocupação. E o quão difícil e desordenado tem sido neutralizar o projeto dos ocupantes nos mostra que o Estado tem que trabalhar para restaurar o território no seu antigo formato e se reinserir na lógica mais antiga.

TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO ESTE TEXTO É PARTE DE UM ENSAIO DA AUTORA PARA A REVISTA ARTFORUM 


Olgária Chain Feres Matos

As rebeliões do efêmero

A ideologia dominante é a do novo-rico, que conhece o preço de todas as coisas, mas desconhece o seu valor

24 de dezembro de 2011 | 16h 00 - estadao.com.br

O movimento pela descriminalização do uso da maconha, a luta contra a corrupção, a dos estudantes na USP pela retirada da Polícia Militar do câmpus universitário, dos homossexuais contra a homofobia no Brasil, correspondem à tendência neoliberal global de ocupação do espaço público - mas em um país que não responde pela qualidade da formação educacional que garantiria o fortalecimento da “vida intelectual” e do debate político. Que se pense, em particular, no movimento pela liberação da maconha, que não desenvolve reflexões sobre o sentido da disseminação de narcotizantes na sociedade de massa e do consumo, a questão da cultura do excesso, cuja exemplaridade são as festas rave e a música techno. Nos anos 80, Salvador Dalí, com todo seu surrealismo, interpelado sobre o uso de drogas, respondeu que se deveria consumi-las no máximo cinco vezes durante toda a vida. Ser Baudelaire ou Michaud, Omar Khayyam ou Benjamin não é dado a muitos.

Já as mobilizações estudantis no Chile, ao contrário das contestações no Brasil, têm sido contra a flexibilização dos currículos escolares e a redução da carga horária nas disciplinas humanistas e formadoras, como literatura, línguas estrangeiras, história, etc., a fim de barrar a desigualdade no acesso aos bens culturais e a proliferação dos privilégios educacionais. O que manifesta a consciência de que a educação não é um serviço do qual se é consumidor, cliente, porque ela não é uma mercadoria.

Já o movimento dos homossexuais, mais politizado porque em luta contra preconceitos de que decorrem sofrimentos, não se interroga sobre a tendência pós-moderna a indiferenciações do que é por natureza assimétrico, no que diz respeito àquelas que existem entre as gerações, entre pais e filhos, professores e alunos, masculino e feminino, isto é, o mal-estar identitário no mundo contemporâneo. Quanto ao movimento pela “transparência”, tem a força da indignação, mas não questiona a corrosão do sistema parlamentar, consequência, hoje, da falência da escolaridade e da ética que a ela se vinculava quando a educação, ao menos em seus princípios fundadores, humanistas e republicanos, propunha, primordialmente, formar as crianças para fazer delas adultos mais felizes e melhores.

Auspiciada pelo dinheiro como valor hegemônico, a ideologia dominante é a do novo-rico, que conhece o preço das coisas, mas desconhece seu valor. Se, em seu primeiro espírito, o capitalismo se baseou na parcimônia e no não contraimento de dívidas e no segundo valorizou o mérito e o trabalho como “dignificante” do homem, seu estágio atual é “sem espírito”, entronizando o dinheiro como supremo valor, dinheiro que, na aceleração do tempo, induz à pressa, os indivíduos perdendo o gosto do pensamento, nada desejando aprofundar.

O próprio amálgama de diversos delitos entendidos como corrupção (favorecimentos ilícitos, informações privilegiadas, tráfico de influência, gratificações indevidas, desvio de verbas públicas, suborno, omissões por interesses próprios ou partidários, formação de cartéis), malgrado pontos em comum, atesta sua fraca conceituação. E porque é mais fácil “derrubar o tirano do que as causas da tirania”, a vigilância cidadã fica sujeita à demagogia, quando a opinião pública é direcionada por interesses dissimulados, a defesa do bem público transgredindo seus limites e invadindo a esfera privada e a da intimidade. Tais movimentos, quanto mais conceitualmente confusos, mais vulneráveis à apropriação oportunista.

Além disso, as mobilizações contemporâneas se fazem com as novas tecnologias de informação, nas quais tudo se passa “aqui e agora”. Essa temporalidade é a do efêmero, mas em sentido pós-moderno, uma vez que ele se reduz ao episódico, compensado pela visibilidade promovida pelas mídias. Sua lógica é a do espetáculo que não se vincula a qualquer fundamentação teórica, adquirindo a forma do “evento”. No passado, a vida se organizava no tempo longo e nos laços duradouros, cuja “metafísica” subjacente dizia respeito à percepção da impermanência de tudo, da lei do efêmero, da vanidade das coisas e da grandeza do instante. As manifestações públicas e ocasionais contemporâneas se constituem no âmbito de um vazio ideológico e no quadro do anti-intelectualismo do mundo moderno, o que se expressa na pseudoparticipação popular e em governos que se fazem através das mídias, pela televisão e pela propaganda.

Com reivindicações particulares voltadas para si mesmas, esses movimentos não se vinculam uns aos outros, resultando em particularismos. Há algum tempo, as manifestações públicas repercutiam em toda a sociedade, chamada assim a delas participar, ativamente ou por consentimento, ao que correspondia a lei entendida como universal, pelo reconhecimento das diferenças das demandas sociais, unificadas, justamente, na lei universalizadora. As mobilizações contemporâneas têm seguidores que se reúnem em comunidades virtuais com sua solidariedade pós-moderna, sem valores comuns admirados e compartilhados por todos.Walter Benjamin caracterizou a modernidade capitalista como “pobreza da experiência” e “experiência da pobreza”, mas nela identificou o novo. Pois essa pobreza “leva a começar do começo, a retomar as coisas desde o princípio, a dar um jeito com pouco, a construir com o pouco que se tem”.

Recorde-se que o movimento que paralisou a França em 1968, de que decorreram desde o movimento de emancipação feminina até a própria democratização das esquerdas autoritárias e de seus partidos centralizadores - encontrando-se na base até mesmo da queda do Muro de Berlim -, teve seu início com estudantes que reivindicavam o direito de visita a suas colegas e namoradas em seus quartos de estudantes.

Razão pela qual os recentes movimentos no Brasil podem constituir o “princípio esperança” do aprimoramento da vida política e do bem-viver em nosso cotidiano.

PROFESSORA TITULAR DE FILOSOFIA DA USP E AUTORA, ENTRE OUTROS, DE BENJAMINIANAS: CULTURA CAPITALISTA E FETICHISMO CONTEMPORÂNEO (UNESP)

Saturday, December 24, 2011


Inacreditável?

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR

Os monstros da Coreia do Norte

Se tiver um tempo livre neste Natal, procure no YouTube: Pulgasari. E prepare-se para ver algumas das cenas mais insanas da história do cinema de horror.

Pulgasari é o nome de um filme de ficção científica norte-coreano, de 1985, feito sob instruções diretas de Kim Jong-il, na época ainda um aspirante à sucessão do pai, o déspota Kim Il-sung.

Como 100% da produção cinematográfica da Coreia do Norte, o longa enaltece o regime. Pulgasari é um boneco de arroz que, ao entrar em contato com sangue humano, passa a crescer descontroladamente, e a se alimentar de ferro. Antes que o monstro estraçalhe de vez Pyongyang, o Exército entra em ação e acaba com ele.

Segundo especialistas em cinema norte-coreano (sim, eles existem), Pulgasari simboliza o caráter monstruoso e insaciável do capitalismo que, não fosse pela brava resistência da dinastia Kim, tomaria conta do mundo.

O enredo não é grande coisa, mas os bastidores são fenomenais. O filme foi dirigido pelo sul-coreano Shin Sang-ok. Kim Jong-il, ditador morto esta semana, era fã de seu trabalho. Tão fã que mandou sequestrá-lo em 1977, quando Shin estava de passagem por Hong Kong.

Em um primeiro momento, Shin passou cinco meses numa pensão na capital, Pyongyang, sem que ninguém explicasse nada. Tentou escapar e foi preso em uma solitária por três meses. Ao tentar fugir de novo, acabou transferido para um campo de prisioneiros políticos, onde vegetou por inacreditáveis quatro anos.

Um dia, do nada, foi convidado para um jantar com o próprio Kim Jong-il. Ao chegar, deparou-se com sua ex-mulher, a atriz Choi Eun-hee, que tinha sido sequestrada um poucos antes dele, e cujo paradeiro era ignorado desde então.

O caso é contado em detalhes no livro Kim Jong-il: North Korea's Dear Leader, do jornalista americano Michael Breen.

O querido líder julgava-se um esteta, a porto de ter escrito o tratado Sobre a Arte do Cinema. Trecho: "Vocês, os diretores de cinema, devem revolucionar-se completamente, e lutar devotadamente pelo Partido e pela revolução, pela vitória da causa do socialismo e do comunismo. Essa é a maneira de se mostrarem dignos da consideração do Partido, e da confiança que ele demonstra em vocês".

A versão final para o inglês de Sobre a Arte do Cinema foi feita pelo britânico Michael Harrold, que trabalhou nada menos que seis anos, a partir de 1987, como revisor de inglês para o governo de Pyongyang. Na volta, Harrold escreveu um livro revelador: Comrades and Strangers: Behind the Closed Doors of North Korea.

Foi parar ali de alegre. Tinha acabado de se formar na Universidade de Leeds quando viu um anúncio de "precisa-se de tradutor". Inscreveu-se sem saber nada sobre o regime. Depois de um ano e incontáveis confusões com a burocracia norte-coreana, desembarcou em Pyongyang.

De cara, uma gafe. Quando os dois oficiais que o esperavam no aeroporto perguntaram o que ele conhecia do país, respondeu: "Até outro dia, não sabia nem onde ficava no mapa".

Pela reação negativa dos anfitriões, Harrold aprendeu aí sua primeira e mais importante lição: a dinastia Kim erigiu um universo paralelo em que a Coreia do Norte é o centro do mundo.

Segundo essa distorção da realidade, povos de todo o planeta admiram a prosperidade e a perfeição do sistema político de Pyongyang.

Cada frase emitida por Kim Il-sung ou Kim Jong-il é aguardada ansiosamente em todo o mundo. Os EUA só têm um objetivo: destruir a Coreia do Norte. E a Coreia do Sul é o inferno na Terra.

Como Harrold suportou seis anos nesse esquema, o livro não explica. Mesmo assim, é uma peça valiosa, o relato de um estrangeiro que viveu sob um regime totalitarista, paranoico e mentiroso, talvez o mais opressivo de toda a história contemporânea. Harrold descreve a solidão da vida dos expatriados na capital, as avenidas amplas e desertas, os bares quase vazios, a pequena comunidade de estrangeiros solapados pelo tédio.

Ele não chega a se posicionar politicamente, e não demonstra grande remorso por ter atuado tanto tempo na máquina de propaganda de um regime tão repressor.

Ler o livro desse inglês e assistir a Pulgasari são maneiras de entender um pouco mais os monstros que assombram a Coreia do Norte.

Thursday, December 22, 2011


Tutty Vasques

Dor caricatural

A julgar pela comoção descontrolada nas ruas de Pyongyang após a notícia da morte de Kim Jong-il, o ‘Querido Líder’ era uma espécie de Mamonas Assassinas da Coreia do Norte. Nem quando Tancredo Neves morreu se viu nada igual por aqui!

O Ocidente tem bons motivos para desconfiar da reação carpideira dos norte-coreanos, que até então só haviam se mostrado na TV oficial em duas situações: marchando ou acenando bandeirinhas em cerimônias militares.

Chorando aos baldes daquele jeito, francamente, o resto do mundo jamais tinha visto em lugar nenhum do planeta. Os americanos não chegaram a se jogar no chão em momentos de desespero quando assassinaram John Kennedy.

Aqui no Brasil, nem em velório de texto de Nelson Rodrigues a gente encontra viúvas inconsoláveis expondo de maneira tão visceral o que o autor chamava de “dor caricatural”.

Contra a tese de que tamanho drama seria encenação promovida pela propaganda comunista, deve-se dizer o seguinte: ninguém finge tão mal! Se pedir pro cigano Igor chorar por Kim Jong-il, ele seria mais convincente diante das câmeras.

Cá pra nós, tem alguma coisa terrivelmente verdadeira no sofrimento coletivo na Coreia do Norte. Ou não!

Monday, December 19, 2011


FOLHA - Santos 0 x Barcelona 4

Barcelona sobra contra o Santos, e final do Mundial tem a maior goleada em 50 anos

LEONARDO LOURENÇO + RODRIGO BUENO - ENVIADOS ESPECIAIS A YOKOHAMA

Muito mais time

Foram muitas comparações entre Barcelona e Santos, entre Messi e Neymar. Mas a distância entre eles foi enorme: 4 a 0 e um show.

A maior goleada em decisões do Mundial desde 1961 (Peñarol 5 x 0 Benfica) coroou um time que já está na história como uma máquina de ganhar títulos e de ainda praticar um futebol vistoso.

Desde que Josep Guardiola assumiu o clube catalão, são 16 títulos disputados e 13 conquistados, dentre eles os dois Mundiais que a equipe espanhola possui, algo que atormentava o arquirrival do tricampeão Real Madrid.

Além do placar elástico, incomum em decisões no Japão, o Barcelona impôs seu estilo de forma avassaladora, ficando com 71% de posse de bola e criando várias chances, mandando bolas na trave, fazendo lances de efeito.

Messi, autor de dois tentos, foi eleito o melhor jogador do torneio. Xavi, com gol e assistência na final, ficou em segundo lugar. Coube a Neymar, quase nulo na decisão, o bronze do torneio.

O título do Barça foi definido ainda no primeiro tempo.

Rafael, principal figura santista em campo apesar dos 4 a 0, já tinha interceptado um chute de Messi e feito outras duas boas intervenções quando foi vazado pela primeira vez, aos 17min.

Messi, em uma de suas jogadas mais características, tocou por cima do goleiro com estilo. Durval, uma das apostas de Muricy para o Mundial, falhou na jogada.

O Barcelona atacava mais pelo lado direito de seu ataque, aproveitando o lado mais frágil da defesa santista. Foi por ali também que saiu a jogada do segundo gol. Xavi, com tranquilidade, apenas concluiu a jogada quase da marca do pênalti.

O terceiro foi digno de um massacre. Com muitos jogadores na frente, quase todos participando do lance, Messi costurou a defesa rival e viu na sequência da jogada uma série de finalizações que terminaram com o gol de Fàbregas. Parecia um treino.

Danilo sentiu contusão e foi substituído por Elano aos 31min, mas o Santos todo foi para o vestiário atordoado.

A goleada era inevitável.Segundos depois de Daniel Alves acertar a trave de Rafael, Messi chegou outra vez na cara do arqueiro santista.

Desta vez o melhor do mundo nos dois últimos anos e favorito ao tri preferiu driblá-lo. Os 4 a 0 ficaram até de bom tamanho para o Santos, que voltou a um Mundial após 48 anos para finalizar, segundo o Datafolha, sete vezes, contra 17 do Barcelona.

O time espanhol deu 736 passes durante o jogo. O Santos, só 188. Foi um vareio.

JUCA KFOURI

Massacre em Yokohama

Jamais havia torcido contra este Barcelona de Lionel Messi. Nem queria.

Jamais, portanto, havia sentido a aflição de ver a bola permanentemente nos pés catalães.

É mesmo desesperador.

Enquanto o Santos tentava jogar aquilo que conhecemos como futebol de campo, o Barça jogava, se me permitem, futebol de salãozão.

De pé em pé como se sabe e sempre na iminência de dar o bote fatal, como a cada chance de gol que pode vir tanto de um chute de fora da área quanto de uma matada de chaleira como a de Xavi na abertura do placar no golaço de Messi, simples e belo, divertido como um quadro de Joan Miró. Ou de uma entrada surpreendente que não surpreende, se me entendem (porque acontece toda hora), como no segundo gol de Xavi ou na bola na trave de Fàbregas, ou no seu terceiro gol, ou no quarto de Messi, ou...

Será preciso parar para pensar sobre o jogo que jogamos por aqui, exceção feita aos chilenos da Universidad, incomparavelmente menos talentosos que os catalães, mas com um sistema parecido, de ocupação de espaços e mobilidade.

Quem desdenhava dos adversários do Barcelona no Espanhol viu o campeão da Libertadores ser tratado como se fosse um Zaragoza qualquer, sem se dizer que se o Barça atropelou também o Al Sadd enquanto o Santos sofreu para superar o Kashiwa, foram os qataris os terceiros colocados ao superar os japoneses nos pênaltis na casa deles.

Se para mim é impossível não querer o bem do Santos por tudo que significou no despertar da minha paixão pelo futebol de fantasia, foi quase sobre-humano não torcer mais uma vez pelos catalães que têm no time azul e grená uma equipe melhor até que a seleção espanhola também campeã mundial, porque a Fúria não tem Messi.

Impossível não lembrar dos tempos do Santos de Pelé, quando os técnicos rivais diziam que para pará-lo só com metralhadora para abater o Rei e cordas para amarrar Coutinho, Pepe, Zito.

Pois Muricy Ramalho não teve tal arsenal à disposição e felizmente, ao menos, não mandou seu time bater. Mas quem sabe tenha aprendido, assim como, e principalmente, Mano Menezes, o que é o futebol do time de Pep Guardiola ou, mais modestamente, do técnico de La U, o argentino Jorge Sampaoli, não por acaso apelidado de Bielsita, em referência ao Loco, seu mestre. Ou da Alemanha.

E não me venham só com táticas e estratégias.

O nome disso é ousadia. É arte. É arte pura.

XICO SÁ

Se oriente, rapaz

Amigo torcedor, amigo secador, passei as últimas temporadas sem querer que os jogos do Santos acabassem nunca. Ontem roguei a Cristo, cujo sovaco faz sombra aqui no chatô da minha nega no Cosme Velho (Rio), para que terminasse logo o martírio contra o Barça.

E foi o juiz apitar a partida de um time só e o velho camarada madrileno Juan, um irmão ludopédico, me dizer das suas ao telefone. "Eu já levei de cinco, você está no lucro, aceite a minha solidariedade, estava torcendo pela sua baleia Moby Dick", tenta me confortar o torcedor do Real Madrid.

É, meu caro, depois dos 40 a ressaca não é indisposição física e mental, depois dos 40, meu chapa, a ressaca é uma dengue existencialista. Onde estou? Quem que eu sou? Pra onde eu vou? Cadê a bola? Cadê minha cabeça? É o que sinto até agora depois de ser vítima da maior e mais virtuosa roda de bobinho do mundo.

Só nos resta uma velha cantiga de conforto nessa perdição toda, quem sabe a gente não ache o caminho de volta: "Se oriente, rapaz, pela constelação do Cruzeiro do Sul/ Se oriente, rapaz/ Pela constatação de que a aranha vive do que tece/ Vê se não se esquece/ Pela simples razão de que tudo merece/ Consideração".

Considere, santista Gilberto Gil, que o Bahia, seu outro time, fez bonito e isso já valeu o ano. Considere, amigo do Peixe, que o que vale mesmo é a Libertadores da América, aí você ganhou bonito. Considere que o Santos vai ganhar tudo, de novo e sempre.

Sim, Muricy, deveríamos ter treinado só roda de bobinho para a final. Desculpa ai, leitor, estou falando besteira, me entenda, é delírio tremens depois do vareio de bola. Acontece.

Não, de forma alguma teria jeito, você fez tudo que era possível, prezado técnico cujo nome de guerra é o trabalho. Foi só terrível e dolorosa superioridade, como reconheceste. Simples. Pronto.

Mas não deixemos de dizer um sonoro "que mierda", como se despediu o Juan na nossa prosa ao telefone. O madrileno entende do assunto: "Não aguento mais perder para esses caras, só o bando de Lampião seguraria esse time".

Juan estuda sobre o cangaço no Nordeste brasileiro. Figura. É, só adotando mesmo o esquema de Virgulino. Fica a dica para a próxima vítima.

Ah, meu bom Juan, se eu soubesse teria ficado na cama com a moça curtindo os cafunés de uma naturalíssima ressaca. Ela bem que tentou. Ela não entende porque os homens sofrem tanto com isso.

JOSÉ ROBERTO TORERO

O sonho de Leocádio depois de assistir ao massacre cruel

Escrevo no ônibus, voltando do estádio, e olho o menino de dez anos que dorme ao lado, enrolado num cachecol branco e preto. Um menino que eu chamo de Leocádio.

Imagino que ele está tendo pesadelos terríveis, com monstros gigantes com o uniforme do Barcelona. Ele tenta escapar por todos os lados, mas está cercado, assim como os santistas quando tentavam começar uma jogada.

Ou talvez seja o contrário. Ele é quem está correndo atrás da bola, que é passada pelos monstros grenás de um lado para o outro, de pata em pata, num eterno jogo de bobinho, passando sempre a milímetros de suas pernas sem que ele consiga tocá-la.

O menino estava alegre antes do início do jogo. Não conseguia ficar quieto na cadeira e mal piscou durante a festa de abertura. Tinha atravessado meio mundo, estava do outro lado do planeta para assistir ao time de sua cidade.

Ele esperava ver arrancadas de Arouca, passes de Ganso, dribles de Neymar, gols de Borges. Mas nada disso aconteceu. O que ele viu foi um lindo e dolorido espetáculo do outro time.

O menino ficou quieto depois do primeiro gol, cabisbaixo depois do segundo, encolhido depois do terceiro, suspirou depois do quarto.

Imagino que ele deve estar triste, achando que a realidade é amarga, que a felicidade é ilusão, que o futebol e a vida são cruéis. Mas aí, o menino que eu fui, e que todos somos um pouco, acorda, tira remela do olho e pergunta:

- No ano que vem a gente vem de novo?

Thursday, December 15, 2011

Verissimo - O Estado de S.Paulo

Uma tarde em Florença

Nos cruzamos algumas vezes depois disso, mas a única vez que estive com o Sócrates foi na sua casa em Florença, quando ele era ídolo na Fiorentina. Tínhamos marcado um encontro com o Araújo Neto, correspondente do Jornal do Brasil em Roma, que estava vindo a Florença para entrevistá-lo. O Araújo nos carregou junto para a entrevista. Não foi difícil localizar a casa do Doutor nos arredores de Florença. O motorista do táxi sabia exatamente como chegar lá. A casa do estupendo Socrate? Como não iria saber?

A casa era uma mansão toscana no meio de ciprestes e de um grande gramado. Quando chegamos, um dos filhos do jogador estava tendo seu cabelo cortado ao ar livre. Não deu para identificar, no que parecia ser o staff permanente da casa, quem era brasileiro e quem era italiano. O próprio barbeiro podia ser da casa ou recrutado na vizinhança para a honrosa missão. Sentamo-nos no quintal também, e conversamos a tarde inteira. Infelizmente, só o que sobrou da conversa foram as fotos. Não me lembro do que falamos. De Florença e de como a família estava se adaptando, provavelmente. E de futebol, certamente.

Era uma oportunidade para expor minha teoria sobre o passe de calcanhar, já que estava na presença de um notável especialista no assunto. Eu achava que o passe de calcanhar era um pouco como o palavrão no teatro. Quase sempre era desnecessário, não avançava a ação da peça - ou da jogada, no futebol - mas nunca deixava de provocar uma reação na plateia. Por mais que se repetissem e se banalizassem, o passe de calcanhar e o palavrão jamais perderiam seu poder de surpreender o público.

Tenho certeza que não mencionei minha tese naquela agradável tarde florentina, primeiro porque sou do tipo que prefere ouvir as teses dos outros em vez das suas, segundo porque os passes de calcanhar do Sócrates, ao contrário dos palavrões no teatro, tinham a particularidade de nunca serem gratuitos, ou só para impressionar. Com Sócrates, taquinho não era brilhatura.

Mais importante do que surpreender o público era surpreender o adversário. E esta era uma das muitas maneiras em que Sócrates era um jogador - e uma pessoa - diferente. Não se esperasse dele o convencional.

O Araújo Neto já se foi, o Sócrates já se foi, restam as vagas lembranças de uma tarde sob os ciprestes, há muitos, muitos anos.

Tuesday, December 13, 2011


A COLÔNIA

“O comércio do Rio de Janeiro consiste principalmente de negros, ferro, sal, tecidos de lã, chapéus, panos de algodão estampados, quinquilharia, armas, alguns objetos de fantasia, um pouco de vinho e de óleo, peixe salgado e manteiga”, relatou John Mawe.

O RIO DE JANEIRO

Outro aspecto que despertava a curiosidade dos visitantes era o número de negros, mulatos e mestiços nas ruas. Os escravos realizavam todo tipo de trabalho manual. Entre outras atividades, eram barbeiros, sapateiros, moleques de recado, fazedores de cestas e vendedores de capim, refrescos, doces, pães de ló, angu e café. Também carregavam gente e mercadorias. Pela manhã, centenas deles iam buscar água no chafariz do aqueduto da Carioca, que era transportada em barris semelhantes aos usados para levar os excrementos até as praias no final da tarde.

 “O barulho é incessante”, reclamou o viajante alemão Ernst Ebel, descrevendo o som dos escravos que percorriam as ruas transportando todo tipo de mercadorias: “Uma chusma de negros semi-nus cada qual levando à cabeça seu saco de café, e conduzidos à frente por um que dança e canta ao ritmo de um chocalho, ou batendo dois ferros na cadência de monótonas estrofes a que todos fazem eco, dois mais carregam ao ombro pesado tonel de vinho, suspenso de longo varal, entoando a cada passo melancólica cantilena; mais além, um segundo grupo transporta fardos de sal, sem mais roupa que uma tanga, e, indiferentes ao peso e ao calor, apostam corrida gritando a pleno pulmão. Acorrentados uns aos outros, aparecem acolá seis outros com baldes de água na cabeça. São criminosos empregados em trabalhos públicos”

Laurentino Gomes - 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil

Thursday, December 08, 2011

À frente do cortejo iam as autoridades do Rio de Janeiro, os oficiais militares, os juízes e os padres, monges e seminaristas dos numerosos conventos. Logo atrás, "seguia-se o estandarte da Câmara, trazido por um cidadão, o qual trajava vestido de seda preta, capa da mesma cor, colete e meias de seda branca, chapéu meio abado de plumas brancas e presilhas de pedras preciosas, cuja capa era ornada com bandas de seda ricamente bordada". Era ladeado por duas compridas fileiras de homens trajados da mesma maneira, que formavam a "guarda do estandarte". Por fim, fechando o cortejo, vinha o pálio sob o qual caminhava a família real. As varas desse pálio eram sustentadas por oito pessoas, entre as quais se destacava Amaro Velho da Silva, um dos maiores traficantes de escravos do Brasil na época.

Laurentino Gomes - 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil