Monday, February 20, 2012

Chico trabalhou durante três meses com o diretor Silnei Siqueira e o cenógrafo José Armando Ferara na concepção, elaboração e ensaios para a montagem de Morte e vida Severina. [...]

Chico só começou a compor as músicas quando o poema já era tão seu quanto de João Cabral. [...] auxiliados pelo maestro Zuinglio Faustini, os arranjos corais eram ensaiados com a supervisão de Chico que modificava as músicas em função do efeito que era buscado pelo conjunto da montagem. Foi um trabalho duro e, ao mesmo tempo, emocionante. Era tudo novo, ousado, e a juventude de seus criadores colaborava para que assumissem os maiores riscos à procura de maior beleza e comunicação. Na véspera da estreia, exaustos e temerosos, pensavam: "o que lhes parecia beleza era comunicável? Haviam mesmo servido à obra do grande poeta?"

[...] Momentos antes da estreia, Chico contou ao diretor Siqueira o sonho que tivera naquela noite:

- No meio do espetáculo o público vaiava a gente. E jogava tomates em você.

- Por que só em mim?

- O sonho era meu, né?

Regina Zappa - 1962 - 1966 / Para seguir minha jornada: Chico Buarque

Sunday, February 19, 2012

Salta um Hollanda, no capricho!

Chico tinha um sonho: o de entrar num bar e pedir um Hollanda e o garçom gritar "Salta um Hollanda, no capricho".

Cera vez, quando viajava de carro para Belo Horizonte, começou a passar nos bares e pedir um Hollanda. Como ninguém conhecia, explicava que o sanduíche era feito de pão de forma, queijo derretido e rodelas de tomate. Na volta da viagem, passou de novo nos mesmos bares e qual não foi sua alegria quando em vários deles, ao pedir um Hollanda, o garçom trazia o inventado sanduíche sem titubear.

Regina Zappa - 1944 - 1962 / Para seguir minha jornada: Chico Buarque

Saturday, February 18, 2012


Hora de ir embora
Quando o corpo quer ficar
Toda alma de artista quer partir
Arte de deixar algum lugar
Quando não se tem pra onde ir

Sunday, February 12, 2012

[...] a arte de Amilcar de Castro, se rejeita a formalização demasiado unívoca de muitos construtivistas tardios, abre-se para o exterior - ou melhor, trabalha para concretizá-lo. A monumentalidade posta de pé por esse movimento deve portanto afastar qualquer dimensão simbólica - a versão pré-moderna da imponência - com o que ela tem de intimidação e apequenamento do observador.

[...] Essas peças porém, com sua vontade de possibilitar a comunicação entre os seres, não são propriamente extrovertidas. Não saem por aí acenando aos primeiros que passam. As esculturas de corte e deslocamento, sem dobras - que começam a ser feitas em 1972 - , deixam isso claro. Um jogo de leveza e contração as organiza e nenhum desses dois movimentos obtém primazia. A grande espessura das chapas - que nesses trabalhos chega a quatro polegadas, enquanto nos de corte e dobra tem no máximo duas polegadas - e suas dimensões reduzidas conferem um aspecto atarracado às obras. De fato, elas não demonstram a mesma desenvoltura das esculturas de corte e dobra. Cismadas e circunspectas, elas teimam em ser mais lugar do que espaço.


Rodrigo Naves - Amilcar de Castro: matéria de risco - A Forma Difícil: ensaios sobre arte brasileira.

Sunday, February 05, 2012


Boaventura de Sousa Santos:
“É possível que amanhã tenhamos que voltar às lutas ilegais”

http://somosandando.wordpress.com/

A mesa não tinha mulheres. Eram oito pessoas, nenhuma era mulher. Os sete primeiros homens falaram e parece que não perceberam a distorção de uma das atividades que mais juntou gente no Fórum Social Temático, lotando o Teatro Dante Barone, na Assembleia Legislativa, sexta-feira 27 à tarde. O oitavo dos homens a discutir “o sentido da democracia” parecia o mais sensível e mais preocupado. Boaventura de Sousa Santos só começou sua palestra depois de reclamar da falta de presença feminina na mesa enquanto tantas mulheres se faziam presentes na plateia. Mas não foi só por isso que, ao final, foi aplaudido de pé.

“A luta democrática tem que ser anticapitalista.” Começou assim a aula do sociólogo português. A democracia era o tema do encontro daqueles oito homens, e Boaventura não deixou de mencionar a sua ausência ou a ameaça de que deixe de existir. Passamos por um momento em que, segundo ele, um dos maiores países capitalistas, a China, dispensa a democracia e outro grande bloco tem a democracia suspensa. A União Europeia, “o berço da democracia e que tentou ensinar ao mundo durante cinco séculos os valores da civilização”, tem agora suas instituições democráticas suspensas e vive uma crise que é econômica e política.

“A presidenta disse que o Brasil já teve neoliberalismo, mas que agora os brasileiros não vão deixar o neoliberalismo entrar novamente. Que deus a ouça.” Boaventura foi tão enfático porque “o neoliberalismo conseguiu esvaziar a democracia de sua vertente redistributiva, e por isso temos hoje democracias de baixa e de baixíssima intensidade”. O roubo e a acumulação originária primitiva chegaram aos salários dos operários europeus, disse Boaventura, encerrando o debate dos motivos da crise e iniciando o das suas alternativas.

A esquerda esqueceu-se de pensar

“As instituições democráticas já não satisfazem as necessidades dos cidadãos.” Alertando sobre as alternativas que se nos apresentam (que podem ser piores do que o que já temos) à crise das instituições, acrescentou que “a democracia representativa virou-se de costas para as populações”. Não surpreende, portanto, que o anarquismo seja a única tradição sobrevivente nos movimentos europeus. Para ele, esquerda e direita “golpeiam da mesma forma” os povos camponeses, indígenas e quilombolas nesse continente.

Impossível avaliar alternativas ao capitalismo que coloca a democracia em crise sem passar pelos movimentos de jovens que estão tomando os espaços, especialmente na Europa. “Autodeterminação dos povos é o que pode nos defender da loucura da globalização neoliberal. A sociedade civil nos responde nos únicos espaços não tomados pelo capitalismo financeiro: as ruas, as praças. A presença dos movimentos nas ruas mostra que a democracia está nas ruas em estados antidemocráticos.” Não faltou crítica à esquerda, no mundo todo, que não pensa, não debate, não progride: “a grande maldição da esquerda no século XX foi transformar militantes em funcionários. Temos que começar pela refundação dos partidos e pela democracia nos movimentos. As cartas dos movimentos da Puerta del Sol mostram essa preocupação pela horizontalidade, pela democracia. A esquerda tem que pensar e a esquerda esqueceu-se de pensar”.

O fascismo ameaça a democracia

E a democracia, para Boaventura, passa pelo respeito à diferente história dos povos do Brasil, não apenas pela redução da pobreza. E, nesse caminho, chama a repensar muitos dos nossos instrumentos de politica. “É possível que amanhã tenhamos que voltar às lutas ilegais”, afinal, é possível que o fascismo, que já toma conta, substitua a democracia no próximo período. As lutas podem ter que ocorrer “por dentro e por fora do Estado, constitucionais e não constitucionais”. Falando exclusivamente de Brasil, em uma crítica direta à presidenta Dilma, disse que “os movimentos sociais talvez hoje se sintam menos acolhidos pela Presidência da República de gente que lutou como eles”.

Boaventura defendeu a autodeterminação como um outro modelo de desenvolvimento, que é parte da luta democrática. “Temos que nos habituar a pensar que os nossos objetos de consumo – tecnologia, roupas – têm sangue. Trabalho escravo é sangue. Há um ciclo de produção que nega a vida, que destrói a vida. E nos obriga a pensar numa outra pauta de direitos humanos, o direito da natureza, que pode nos dar uma nova forma de vida, de prosperidade, que pode não passar pelo crescimento econômico.”

Sobrou também crítica ao governo do Rio Grande do Sul, do amigo Tarso Genro, “um dos homens que melhor pensa a politica no continente latino-americano”. O sociólogo amaciou o ego do governador pouco antes de afirmar que ele precisava fazer no estado a reforma política que não conseguiu aprovar enquanto ministro da Justiça. Tarso falara logo antes de Boaventura e mencionara a dificuldade que passou, também criticando o governo petista do qual fez parte. Bem informado, o português falou na falta de comunicação entre as secretarias estaduais, que muitas vezes não se comunicam nem internamente.

O horário das utopias realistas

A luta dos povos indígenas, quilombolas e campesinos é sempre tema de Boaventura, e dessa vez não foi diferente. “Não podemos tolerar que os indígenas morram todos os dias à beira da estrada porque foram expulsos de suas terras. A reforma do Estado, a refundação da democracia, dos partidos, dos movimentos, é a nossa única garantia da sustentabilidade da democracia. A direita está mostrando que dispensa a democracia. Quem não pode dispensar a democracia é a esquerda. Portanto não podemos falar de sentidos da democracia (Tarso falara no sentido das democracias grega, estadunidense, latino-americana e brasileira). Temos é que democratizar a democracia. Os povos têm que ter suas formas de democracia respeitadas. Indígenas urbanos tinham dificuldade de se adaptar ao Orçamento Participativo porque tinham sua forma de decisão coletiva”. Uma anedota serviu para justificar o argumento do sociólogo. Contou que, quando foi promulgada a constituição da Bolívia, nas primeiras eleições uma comunidade votou 99% a favor de um candidato. A oposição então fez uma queixa de que teria sido fraudada. Foram averiguar e descobriram que se tratava de uma comunidade indígena que passou quatro dias consensuando em quem votar. “O que parecia uma fraude eleitoral era uma forma de democracia de alta intensidade que estaríamos perdendo se não calculássemos essas formas de democracia alternativa.”

Boaventura encerrou com a chamada ao debate. Para que a esquerda pense e proponha alternativas. “Temos q pensar uma nova forma, que não é o capitalismo verde. Podem dizer que é uma utopia, mas todas as utopias têm um horário. E esse é o horário das utopias realistas.”


Onde está o levante da esquerda?

Hans Hoyng e Gregor Peter Schmitz

O cientista político Francis Fukuyama já foi o queridinho dos neoconservadores americanos. Em entrevista ao Spiegel, o autor de O Fim da História explica por que ele hoje acredita que os excessos do capitalismo são uma ameaça à democracia e questiona por qual motivo não existe um "Tea Party" de esquerda.

Pergunta: Professor Fukuyama, o senhor é mais conhecido por seu ensaio O Fim da História, no qual o senhor declara que, após o fim da União Soviética, a democracia liberal emergiu como modelo triunfante mundial. Hoje, sua mais recente pesquisa alega que as falhas do capitalismo e da globalização podem ameaçar este modelo democrático. Como o senhor explica essa mudança?

Fukuyama: Capitalismo não é a palavra certa para ser usada aqui, porque não há uma alternativa viável ao capitalismo. O que estamos realmente falando é sobre o crescimento econômico e o desenvolvimento das sociedades econômicas modernas. Uma combinação de fatores está começando a desafiar seu progresso nos Estados Unidos. Tivemos muitas mudanças tecnológicas que substituíram o trabalho de baixa capacitação e tiraram os empregos das pessoas nas democracias ocidentais.

Pergunta: Por isso que países como os EUA e o Reino Unido queriam se tornar economias voltadas para os serviços.

Fukuyama: Sem pensar, adotamos uma versão da globalização que assumia que tínhamos que mudar muito rapidamente para este mundo pós-industrial, pós-manufatura. Ao fazê-lo, esquecemos que a razão pela qual o socialismo verdadeiro nunca decolou nos EUA foi o fato que a economia moderna parecia produzir sociedades de classe média, nas quais a maior parte da população podia ter um status de classe média. Elas trabalhavam nas indústrias que abolimos em nossos países e transferimos para países como a China.

Pergunta: E os membros da classe média que mantiveram seus empregos, viram sua renda estagnar ou até cair, enquanto os vitoriosos da globalização colhiam recompensas sem igual. O nível de desigualdade de renda nas nações avançadas hoje é maior do que nunca. Qual efeito isso tem em nossas sociedades?

Fukuyama: Isso não é bom para a democracia. Se a renda for distribuída de forma relativamente similar e não houver fortes diferenças entre ricos e pobres, temos maior sensação de comunidade. A sensação de confiança aumenta. E não temos partes da comunidade com maior acesso ao sistema político, que usam para fazer valer seus próprios interesses...

Pergunta: Tudo isso mina o processo democrático.

Fukuyama: O que você verá em uma democracia com classe média debilitada é muito mais populismo, mais conflito interno e uma incapacidade de resolver questões de distribuição de forma ordenada. Nos EUA neste momento, você tem essa volta do populismo. Deveria ser de esquerda, mas de fato a maior parte está na direita. Se você conversa com membros do Tea Party sobre como se sentem em relação ao governo, são muito apaixonados. Eles odeiam o governo. Eles acham que foram traídos pelas elites.

Pergunta: Os americanos, contudo, estão começando a discutir o problema da desigualdade social de forma mais aberta.

Fukuyama: Estão começando a perceber isso. O foco recente do público na desigualdade e o movimento de Ocupem Wall Street são arautos da mudança nessa direção. O problema é que, nos EUA, é extremamente difícil mobilizar pessoas em torno de questões puramente de classe. O presidente Barack Obama foi ostracizado como “socialista europeu” quando levantou a ideia de maiores impostos sobre os ricos. Esses debates de classe são historicamente impopulares – exceto por um período de tempo muito breve nos anos 30, durante a Grande Depressão.

Pergunta: A crise financeira mais recente foi muitas vezes comparada à Grande Depressão: Por que não vimos outra vez a esquerda se erguendo contra os ricos?

Fukuyama: Tampouco sei. Onde está o movimento de esquerda? Esta é uma crise que começou em Wall Street. Realmente teve raízes no modelo americano particular de liberalização financeira. Prejudicou a pessoa comum tremendamente e beneficiou as partes mais ricas do país – o setor financeiro - que se saiu muito bem da crise, graças ao resgate do governo. Era de se pensar que isso pavimentaria o caminho para uma ascensão do populismo de esquerda como visto nos anos 30. Um Tea Party da esquerda, por assim dizer.

Pergunta: O movimento Ocupem Wall Street poderia preencher esse vazio da esquerda?

Fukuyama: Eu realmente não levo esse movimento a sério, porque sua base social é extremamente estreita, consiste mormente dos mesmos garotos que estavam protestando em 1999 em Seattle contra a Organização Mundial de Comércio – anticapitalistas. Sociologicamente, o grande problema para a esquerda nos EUA é que a classe trabalhadora e a classe média baixa, que na Europa certamente teriam um comportamento político social democrata, tendem a votar nos republicanos ou são facilmente atraídas pelo lado Republicano. Enquanto as pessoas de Ocupem Wall Street não conseguirem se conectar com esse grupo demográfico, não haverá uma grande base populista de apoio à esquerda nos EUA.

Pergunta: A crise simplesmente não foi suficiente grave para chegar a isso?

Fukuyama: Ironicamente, a crise não se tornou uma depressão profunda, com o desemprego em 20%, como nos anos 30, porque o Federal Resserve e o Tesouro agiram em apoio ao setor financeiro. Na época, o presidente Franklin D. Roosevelt pôde reestruturar os grandes bancos. Acredito que a única solução para nossos problemas atuais é reestruturar todos esses grandes bancos. Goldman Sachs e Citigroup e Bank of America devem se tornar entidades menores que podem falir. Eles não seriam mais “grandes demais para falir”, mas isso não aconteceu até agora.

Pergunta: Também poder-se ia dizer que o presidente Obama simplesmente não foi tão duro quanto Roosevelt.

Fukuyama: Obama teve uma grande oportunidade bem no meio da crise. Foi nessa hora que a Newsweek fez uma edição com a manchete: “Somos todos socialistas agora”. A equipe de Obama poderia ter nacionalizado os bancos e depois os vendido aos pedaços. Mas a visão da Casa Branca do que era possível e desejável ainda era muito formatada pelas necessidades desses grandes bancos.

Pergunta: Em outras palavras, Obama e seus assessores influentes, como o secretário do Tesouro Timothy Geithner, fazem parte do “1%” que o movimento Ocupe Wall Street é contra.

Fukuyama: É óbvio que fazem parte do 1%. Eles se socializam com esses gurus de Wall Street. O chefão do Goldman Sachs, Lloyd Blankfein reuniu-se com Geithner muitas vezes durante a crise. Esse contato próximo claramente influencia a visão de mundo da Casa Branca.

Pergunta: Mas o senhor diria seriamente que os republicanos estão menos próximos de Wall Street?

Fukuyama: Ah, não. Os políticos republicanos estão completamente comprados por Wall Street. Mas a verdadeira pergunta é: por que a classe trabalhadora continua votando neles? Minha explicação é, em parte, por causa dessa profunda desconfiança de qualquer forma de governo que vá muito fundo na política americana. Essa postura se vê hoje refletida em figuras políticas como Sarah Palin, que acusa Obama de ter ido para Harvard. Há uma espécie de ressentimento populista na política norte-americana contra o governo das elites.

Pergunta: Até o movimento do Tea Party é em grande parte financiado por bilionários que representam tudo aquilo ao que os membros do Tea Party se opõem.

Fukuyama: O Tea Party é um movimento genuíno de base, então eu não concordo com essas teorias de conspiração que dizem que foi gerado pelos bilionários. Esses comícios de Ron Paul são muito apaixonados. O público é jovem e acabou de adquirir essa ideia libertária em sua cabeça que o governo realmente é a fonte de todos os nossos problemas. Então, acho que as convicções dos ativistas do Tea Party são sinceras, não são manipuladas pelos bilionários. Mas é verdade que eles se mobilizam contra seus próprios interesses econômicos e em favor dos interesses das elites que deveriam desprezar. Ainda não compreendo plenamente por que fazem isso.

Pergunta: Por que o presidente Obama não consegue alcançar essas pessoas?

Fukuyama: O presidente nunca anunciou uma visão de uma ordem econômica diferente, que não parecesse uma volta a um tipo de fórmula clássica democrática liberal de altos gastos. Os democratas nunca articularam uma filosofia econômica que não fosse uma volta aos anos 70, ao governo grande e assim por diante, ou à posição dos sindicatos, que é muito hostil à globalização.

 Pergunta: O que mais ele deveria fazer?

Fukuyama: Eu de fato penso que o modelo alemão seria interessante, de uma perspectiva americana, porque a Alemanha ainda é a segunda maior exportadora, mas fez um papel muito melhor em proteger sua base manufatureira e sua classe trabalhadora, se comparada com os EUA. Alguém precisa articular uma estratégia nos EUA que dirá que nosso objetivo não é maximizar o lucro. É proteger a classe média pelo envolvimento com o mundo globalizado, mas que beneficie a grande massa de pessoas. Nenhum democrata de fato pôde fazer isso.

Pergunta: O senhor quer que a esquerda americana tire lições da “Agenda 2010” do ex-chanceler Gerhard Schröder, que foi um pacote controverso de reformas trabalhistas e de previdência que derrubaram o modelo democrático social clássico?

Fukuyama: O que os sociais democratas fizeram na Alemanha foi aumentar o grau de flexibilidade dos mercados de trabalho e tornar o Estado de bem estar social alemão mais amigável à competição capitalista. A antiga plataforma tradicional de instituir cada vez mais proteção social não domina mais na Alemanha, e isso é bom. Parte do problema da Europa é que reformas similares não aconteceram na França e na Itália.

 Pergunta: Essa proteção da classe média inclui uma nova forma de protecionismo global?

Fukuyama: Nunca deveríamos ter permitido que os chineses desindustrializassem uma grande parte do mundo. Os chineses conseguiram colocar os países do Ocidente uns contra os outros, basicamente roubando sua tecnologia. Eles tiveram sucesso porque todo mundo no Ocidente tem essa visão de curto prazo que diz: “Posso ser esmagado pelos chineses mais à frente, mas se eu não fizer dinheiro agora, outra pessoa vai fazer. Então fecho negócios com eles mesmo que estejam me assaltando”. Essa opinião é de pouca visão. Nós deveríamos ter sido mais duros muito com a China.

Pergunta: Essa tendência ainda pode ser revertida?

Fukuyama: É tarde demais, ao menos nos EUA. Perdemos todas as indústrias cruciais de manufatura para a China.

Pergunta: Uma sensação de impotência também prevalece na Europa. Toda vez que os políticos da UE tentam apresentar novas soluções para a crise do euro, não conseguem convencer os agentes financeiros em torno do mundo. Será que é ainda possível ter uma liderança política, diante do excessivo poder dos mercados financeiros mundiais?

Fukuyama: O problema de liderança política não nasce simplesmente da pressão dos mercados. Todas as democracias modernas têm uma doença, ou seja, que o processo democrático tende a ser capturado por grupos organizados que não são representativos do público em geral. Este é o problema da Grécia. Os farmacêuticos, médicos, servidores públicos, arquitetos, cada grupo social do país organizou-se em uma corporação fechada que controla preços e evita em grande parte a taxação. Eles fazem uma fortuna, mas levam à falência nacional.

 Pergunta: Agora, tecnocratas não eleitos e assessores de fora estão sendo convidados para participarem da reforma do sistema grego. O que isso quer dizer para a democracia?

Fukuyama: Se eu tivesse que fazer uma aposta, diria que a Grécia vai deixar o euro, porque, no fim, qualquer intervenção vai ser vista pelo povo grego como uma imposição não democrática de políticas que eles não querem. Os gregos nunca vão se comportar como alemães, certo?

Pergunta: A Europa ainda pode ser democrática, em suas tentativas desesperadas para resgatar o euro?

Fukuyama: Todo o projeto europeu era muito movido pela elite desde o início. A evidência disso era que, toda vez que um país fazia um referendo e votava contra maiores regulações da UE...

Pergunta:. O referendo era simplesmente repetido.

Fukuyama: A elite da UE dizia: “Ah, vocês erraram desta vez. Vamos continuar tentando até vocês acertarem”. Virtualmente todo país europeu hoje tem um partido populista de direita. Eles são anti-UE, anti-imigração e têm exatamente a mesma causa, porque há uma noção que as elites na Europa não tratam de fato de suas questões.

 Pergunta: Os sistemas autoritários, por outro lado, parecem estar ficando cada vez mais populares. Quando os empresários alemães viajam para a China comunista, por exemplo, ficam encantados com o sistema de lá. Eles contam como decisões importantes podem ser feitas rapidamente.

Fukuyama: Ouço isso dos empresários americanos também. O sistema chinês é particularmente impressionante quando você o compara com a Europa e os EUA, onde atualmente não se consegue tomar nenhuma decisão.

Pergunta: Então, a China autoritária emergirá como novo modelo global – o que totalmente contradiria a tese de “O Fim da História”, que a democracia se tornou a opção automática do mundo todo.

Fukuyama: Não. A China nunca será um modelo global. Nosso atual sistema ocidental está realmente destruído de formas bem fundamentais, mas o sistema chinês não vai funcionar tampouco. É um sistema profundamente injusto e imoral, onde tudo pode ser tirado de qualquer um em um segundo, onde as pessoas morrem em acidentes de trem por causa de uma falta absurda de fiscalização pública e transparência onde a corrupção manda. Já estamos vendo enormes protestos em toda as partes da China...

Pergunta:  Que as autoridades do Partido Comunista temem ser reminiscente da Primavera Árabe.

Fukuyama: Quando o governo deixa de garantir os atuais níveis de crescimento econômico, depara-se com essa grande vulnerabilidade moral. A democracia liberal ainda de fato é o único jogo que temos no mundo todo, apesar de todas suas falhas.

Tradutor: Deborah Weinberg

Wednesday, February 01, 2012


"Somos o que fazemos... mas somos principalmente o que fazemos para mudar o que somos".

"Muita gente pequena, em lugares pequenos, fazendo coisas pequenas, pode mudar o mundo".

Eduardo Galeano, por requentar o Jean-Paul Sartre e por reproduzir, provavelmente sem ver, o paradigma cristão liberal burguês do "se cada um fizer a sua parte": vá chupar prego!!! que retórica nunca foi poesia.


As mães e suas babás, uma relação de amor e ódio

Pascale Krémer

Pela primeira vez, uma socióloga desvenda as complexas relações entre os pais e suas empregadas domésticas de origem africana. Um grupo de mulheres negras, em uma praça, sentadas três ou quatro em cada banco, vigiam crianças brancas. Ninguém repara nelas, uma vez que em Paris essa cena é de uma absoluta banalidade. Mas Caroline Ibos empenhou-se em observá-las. Essa professora de sociologia política na Universidade Rennes-2 realizou uma pesquisa inédita sobre as babás africanas que cuidam dos filhos de casais parisienses nos quais ambos trabalham. Durante três anos, frequentando dia após dia a mesma praça, ela conquistou a confiança de uma dúzia de mulheres marfinenses que lhe confidenciaram seus segredos, e depois passou para o outro lado do espelho, entrevistando algumas dezenas de empregadores franceses.

Seu livro, Qui gardera nos enfants? [“Quem cuidará de nossos filhos?” Ed. Flammarion], será lançado no dia 8 de fevereiro. Fascinante, ele revela um estado da sociedade francesa – desigualdade dos sexos na esfera doméstica, a impermeabilidade das classes sociais, a persistência dos preconceitos raciais... E é provavelmente um tanto perturbador para os pais, uma vez que para a pesquisa essas babás que se introduziram na intimidade dos lares acabaram se transformando em etnólogas das famílias francesas.

Tudo começa com um recrutamento que lembra um cerimonial. Em geral ele se dá em uma tarde de sábado, com o apartamento bem arrumado, a criança a ser cuidada e seus pais instalados na sala, em uma encenação da família ideal. A candidata é primeiramente julgada por sua pontualidade e sua capacidade de encontrar a residência. Depois a futura empregadora conduz a entrevista, geralmente com o pai andando de um lado para outro.

O que surpreende Caroline Ibos é a “confiança baseada no nada”. Mulheres formadas que deveriam ser racionais confiam “aquilo que elas têm de mais caro” (e as chaves do apartamento) a uma quase desconhecida, cujas referências, situação legal caso sejam estrangeiras ou o nível de escolaridade elas raramente verificam. O fato de que elas são mães conta mais: é por uma capacidade de amor percebida intuitivamente que elas recrutam. Pelo interesse demonstrado pela criança, por uma alegria, por uma doçura, um corpo de babá...

São estereótipos atribuídos às mães, dos quais essas mulheres ativas tentam justamente se libertar! Outra surpresa para a pesquisadora foi que pessoas instruídas, não racistas, nessa ocasião adotam crenças racistas que circulam oralmente a respeito das babás. “As africanas são maternais, mas pouco afeitas às tarefas domésticas”, “As asiáticas são limpas, mas frias”... É verdade que avaliar uma pessoa a partir de estereótipos “permite implicitamente justificar sua subordinação social”, analisa Caroline Ibos.

Na prática, ela explica, a relação patrão/doméstica se resume a uma relação assimétrica e difícil entre duas mulheres. Muito rapidamente o pai se apaga, reaparecendo somente na hora da demissão, quando é o caso. Acontece que é bem complicado ser patroa dentro de sua própria casa. Ter uma doméstica sem necessariamente dispor dos códigos da grande burguesia. As patroas sentem um certo desconforto: elas se dão conta de seu poder praticamente ilimitado, caso não imponham seu próprio senso de moral. “Elas sabem que exigem demais”, resume Ibos, “mas a babá permite que elas realizem seus sonhos de sucesso familiar e social”.

As babás, sujeitas a uma implacável exploração, têm a impressão de nunca terem um descanso, de recomeçarem eternamente as mesmas tarefas fastidiosas. Com o tempo, vão se somando um monte de pequenas tarefas (“Você pode passar na lavanderia?”, “Pode trazer o pão?”). Elas foram contratadas para cuidar das crianças, mas, aos poucos a ordem das prioridades vai se invertendo. O que conta é que o apartamento esteja bem arrumado à noite. É isso que lhes dá a sensação de serem empregadas domésticas responsáveis por crianças, um tanto desprezadas. Por exemplo, não há discussão quanto à educação das crianças, elas se contentarão em aplicar as ordens.

Isso também explica uma frequente degradação das relações entre patrão e empregado. Enquanto a criança ainda é um bebê, a babá tem tempo para limpar e arrumar a casa. Mas quando ela começa a andar, a babá brinca com ela. A mãe entende, é claro, mas se instala uma insatisfação. E quando a relação se deteriora, as babás diminuem a faxina. Elas confessaram a Caroline Ibos que essa é a vingança política delas. Além disso, para quê se sacrificar tanto por um trabalho que “não é reconhecido como um trabalho de verdade”? “Para a patroa”, elas dizem, “é como se fosse um prazer cuidar de seus filhos...”

Há uma certa verdade em suas declarações. As empregadoras ouvidas por Caroline Ibos muitas vezes acreditam que essa tarefa, embora seja mal paga, precária, ingrata, é uma vocação natural para uma mãe. “Isso tranquiliza a consciência delas, que costumam dizer: ‘Uma boa babá é aquela que não faz esse trabalho só por dinheiro.’ É um mal-entendido básico! Ela está lá para ganhar a vida, mesmo que ela mostre solicitude e afeição pelas crianças.” No parque, as babás lhe contaram que elas gostavam das crianças das quais cuidavam, mas também que as esqueciam muito rapidamente uma vez que iam embora.

A forma como elas as enxergam, também estereotipada, nem sempre é carinhosa. Elas as consideram mimadas demais, malcriadas. Com pais que seriam sujeitos a caprichos, sempre temendo vê-las perdendo seu tempo, não lhes transmitindo valores morais, encorajando-as a serem egoístas e dominadoras, e muito precocemente apegadas ao dinheiro. “A patroa tem tanto medo de seus filhos que, quando ela faz algo que não agrada, ela diz que sou eu que estou mandando! Ela diz: ‘Crianças, a Aurore quer que vocês comam cenoura!’”, relata a pesquisa. Mas Caroline Ibos também ressalta que, afinal, as babás acabam se inspirando muito nessa educação para seus próprios filhos, como se elas interiorizassem um modelo de sucesso à moda francesa.

Para as babás, o casal e a família francesa não funcionam muito bem. Elas não invejam essas mulheres que as empregam. “Minha patroa tem uma bela casa, mas ela é infeliz.” A vida delas é difícil, elas trabalham o tempo todo, são estressadas, não sabem relaxar. “A figura da babá evidencia as relações que permanecem desiguais entre sexos em torno das questões domésticas e familiares. As mulheres fogem da humilhação humilhando uma terceira pessoa”, afirma a acadêmica. Em vez de enfrentar conflitos exaustivos e humilhantes com seus parceiros, as patroas descontam nelas. As camisas não estão passadas? “A babá não faz mais nada...”

Mulheres negras a serviço de famílias brancas, efetuando tarefas desvalorizadas - a situação dessas empregadas também diz muito sobre o abismo entre as “raças”, segundo Ibos. Uma vê sua patroa como todo-poderosa e rica, a outra permanece sob a influência de preconceitos. O que os pais não imaginam é o rancor, profundo e doloroso, diante da colonização, entre essas imigrantes que chegam de uma antiga colônia francesa. Elas dizem: “Eu faço a antilhana”, com esse sentimento perpetuado pela dominação colonial.

Mas talvez o que o livro de Caroline Ibos conta de melhor seja o confronto das distintas classes sociais dentro de casa. É uma situação excepcional na sociedade francesa, onde essas duas pontas da escala social às vezes se cruzam, mas não se aproximam. “Para as empregadoras, estar diante da fragilidade da outra é um sofrimento. Os sinais de pobreza constrangem – o casaco feio na entrada, as sandálias usadas sem meia no inverno... Elas são a lembrança daquilo que elas querem esquecer, de tudo aquilo pelo qual elas não têm como não se sentirem um pouco responsáveis.” É contra isso que se constrói a casa da família, refúgio de paz em um mundo violento.

Com a babá, a bolha protetora estoura. Chegam a política, a miséria do mundo. No final, essa proximidade de classes não as aproxima, constata Ibos, pessimista. “A patroa pode dar pequenos presentes de compaixão, mas reserva sua piedade para causas ou vítimas bem mais distantes dela. Entre as duas mulheres, não se constrói nenhuma relação verdadeira”. Paradoxalmente, entende-se que esse conflito de classes é menos doloroso para as babás. Elas não o vivem inteiramente como uma humilhação, porque elas não se limitam à sua condição de domésticas. Elas também são outra coisa. Na África, elas têm um lugar de sucesso. Elas poderão construir uma casa para si.

Tradutor: Lana Lim