Wednesday, March 28, 2012

O homem, o ser falante, se constitui pelo rompimento de sua harmonia com a natureza e, ao ter de abdicar de um destino guiado pela força instintiva, é impelido  a tecer a singular trama pulsional de sua vida. A criança chega ao mundo expulsa de seu acolhimento natural. Ao nascer, ao perder o envoltório protetor da placenta, ela perde - perda materializada pelo corte do cordão umbilical; ao enfrentar o desmame, outra perda. E não é difícil acompanharmos as sucessivas perdas que a inserção  no universo simbólico impõe e, em consequência, verificarmos o lugar do luto e seu trabalho ao longo de nossas vidas.

O que de fato é perdido quando todas essas perdas acontecem? Arriscaríamos dizer que luto e melancolia muitas vezes partilham uma mesma indagação, e que essas perdas que acontecem ao longo da vida poderão ou não ser significadas, simbolizadas, e receber um sentido que as farão caminhar na direção de um luto; em contrapartida, outra vicissitude poderá também ter lugar, e a perda ou as perdas permanecerem no vazio da falta de sentido, questão central da melancolia, materializada na dor da existência. Nessa direção, a procura do sentido da vida, a interrogação sobre a própria identidade ("Quem sou?") e o questionamento da existência ("Como existo?") justificam a relação entre a genialidade e a melancolia, tão presente na Antiguidade.

Por que razão todos os homens que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes, são manifestamente melancólicos, e alguns a ponto de serem tomados por males dos quais a bile negra é a origem, como contam, entre os relatos relativos aos heróis, os que são consagrados a Hércules?

Será o melancólico um enlutado na vida, aquele que não consegue uma resolução para suas perdas?

Freud insiste no que denomina "trabalho de luto". Ele não menciona os rituais através dos quais, ao longo da história, o homem pranteia seus mortos, porém, ao marcar o luto como ato, o luto como trabalho do eu (ego), chama a atenção para as consequências do abandono e do esquecimento desses rituais como processos de simbolização da dor.

Urania Tourinho Peres - Uma Ferida a Sangrar-lhe a Alma (posfácio à Luto e Melancolia - Sigmund Freud, tradução, introdução e notas por Marilene Carone)

Sunday, March 25, 2012

Então, em que consiste o trabalho realizado pelo luto? Creio que não é forçado descrevê-lo da seguinte maneira: a prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora exige que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto. Contra isso se levanta uma compreensível oposição; em geral se observa que o homem não abandona de bom grado uma posição da libido, nem mesmo quando um substituto já se lhe acena. Essa oposição pode ser tão intensa que ocorre um afastamento da realidade e uma adesão ao objeto por meio de uma psicose alucinatória de desejo*. O normal é que vença o respeito à realidade. Mas sua incumbência não pode ser imediatamente atendida. Ela será cumprida pouco a pouco com grande dispêndio de tempo e energia de investimento, e enquanto isso a existência do objeto de investimento é psiquicamente prolongada. Uma a uma, as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são focalizadas e superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido.

* Complemento metapsicológico à doutrina dos sonhos (1917d)

Sigmund Freud - Luto e Melancolia. Tradução de Marilene Carone

Saturday, March 24, 2012

- Por quê? O que você quer fazer? - ela perguntou, embora soubesse a resposta. Dexter colocou a mão no pescoço dela, ao mesmo tempo que Emma tocava de leve no quadril dele, e os dois se beijaram no meio da rua, rodeados de pessoas que corriam para casa sob os últimos raios do sol de verão, e foi o beijo mais doce que já tinham sentido.

É onde tudo começa. Tudo começa aqui, hoje.

E logo depois termina.

- Bom, a gente se vê por aí - disse Dexter, começando a se afastar.

- Espero que sim - ela sorriu.

- Eu também. Tchau, Em.

- Tchau, Dex.

- Até mais.

- Até mais. Até mais.

David Nicholls - Um Dia

Sunday, March 18, 2012


Texto de Freud de 1917 explicita a natureza de nossas identidades

Reedição de tradução pioneira de Marilene Carone para Luto e Melancolia traz belos estudos introdutórios

VLADIMIR SAFATLE

Uma das inovações de Freud encontra-se na sua maneira de repensar as relações entre normalidade e patologia. Freud dizia que um cristal, quando se quebra, respeita os sulcos que existiam antes, mas que eram invisíveis ao olho humano. Assim, se quisermos entender a estrutura do cristal, devemos partir de seu estado quebrado.

Da mesma forma, se quisermos entender a estrutura da normalidade, devemos partir deste no qual a normalidade se quebra. Nada do que é patológico nos é estranho, pois ele diz em voz alta o que sentimos em silêncio.

Poucos são os textos de Freud em que vemos esse pressuposto em operação com tanta radicalidade quanto em Luto e Melancolia.

A nova edição da tradução (a primeira digna desse nome em língua portuguesa) de Marilene Carone (1942-1987), traz dois belos estudos escritos por Maria Rita Kehl e Urania Tourinho, além de uma introdução à tradução.

Um dos méritos do texto está em sua capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexão mais ampla sobre as relações amorosas.

Freud sabe que o amor não é apenas o nome que damos para uma escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos de formação da identidade subjetiva. Esta é uma maneira de dizer que as verdadeiras relações amorosas colocam em circulação dinâmicas de formação da identidade, já que tais relações fornecem o modelo elementar de laços sociais capazes de socializar o desejo.

Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a fim de lembrar que se tratam de duas modalidades de perda de objeto amado.

Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo. No entanto, o melancólico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do sentimento de autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse contra si próprio, através de autorrecriminações e acusações.

A tese fundamental de Freud consiste em dizer que ocorreu, na verdade, uma identificação do Eu com o objeto abandonado de amor.

Tudo se passa como se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a melancolia fosse a continuação desesperada de um amor que não pode lidar com a situação da perda.

Incapacidade vinda do fato de a perda do objeto que amo colocar em questão o próprio fundamento da minha identidade. Mais fácil mostrar que a voz do objeto ainda permanece em mim, isto através da autoacusação patológica contra aquilo que, em mim, parece ter fracassado.

Essa é uma maneira de dizer que a melancolia é o cristal quebrado que nos mostra a natureza radicalmente relacional de nossas identidades. Conhecer tal natureza sempre foi a melhor forma de lidar com seus desafios.

Saturday, March 10, 2012


JOSÉ ROBERTO TORERO

A inveja é uma meta

Ver algo único é fazer parte de um clube seleto, de uma seita misteriosa, é ser também único

Caro leitor, já que só estamos nós dois aqui neste texto, vamos ser francos um com o outro: Fazer inveja nos outros é ótimo, não é? Não, claro, você tem razão, isso não é uma coisa bonita. Mas fazer uma invejazinha de vez em quando, para aquele primo chato ou para o cunhado que gosta de contar vantagem, é uma delícia, não é?

Daí eu pergunto: O que causa inveja? E eu respondo: Coisas que só você pode fazer, ver ou ter.

Desses três verbos, o terceiro causa a inveja mais chocha. Dependendo do objeto adquirido, ele provoca apenas cócegas invejentas. Por exemplo, uma Ferrari está tão longe de minhas posses, e mesmo de meus desejos [minha bagunça do banco traseiro (livros, sacolas, pastas, roupas e, não sei por quê, um chapéu de caubói) jamais caberia numa Ferrari], que nem ligo quando uma máquina vermelha emparelha ao meu lado no congestionamento.

O fazer tem o mesmo problema. Quando alguém me conta que realizou uma caminhada de 180 quilômetros, em vez de pensar "também quero", penso "bem feito".

Mas o ver, não. O desejo de ver é universal. Seja um desastre ou uma linda paisagem, ver algo raro ou belo sempre causa inveja.

E agora, com cinco parágrafos de atraso, finalmente chegamos ao futebol, pois aos fãs do esporte bretão, algo que causa muita inveja é quando o outro viu um lance que se tornou mitológico. Alguns (na verdade, muitos) até mentem para obter essa inveja. Tanto que já perdi a conta das pessoas que me contaram que estavam no Juventus x Santos em que Pelé fez aquele gol em que deu vários chapéus. Nem se a Rua Javari fosse o Morumbi.

Pois bem, caro leitor, e com prazer eu vos digo que, na última quarta-feira, eu estava na Vila Belmiro quando Neymar fez aquele gol. Vi as pernas velozes do garoto gingarem para lá e para cá num ritmo alucinante por 60 metros. E vi seu toque sutil para encobrir o goleiro. Ao vivo e em preto e branco.

Todos os torcedores que estavam perto de mim reagiram do mesmo modo: primeiro gritamos palavrões de satisfação, depois nos cumprimentamos emocionados, como se nos déssemos parabéns por estar ali. Aliás, sempre que encontrar com os sujeitos que estavam ao meu lado naquela partida, trocaremos um pequeno aceno, como se fizéssemos parte de uma sociedade secreta.

Pode ficar com inveja, meu caro. Ainda mais se você é santista.

O quê? Você também estava lá? Pronto, começaram as mentiras...




Sunday, March 04, 2012


CIÊNCIA

A mitologia das idéias

O "brainstorming" vs. o poder dos introvertidos


RESUMO Recentes descobertas na psicologia e na neurociência colocam por terra fórmulas pré-fabricadas sobre como surgem as boas ideias. Livros publicados nos EUA explicam por que o "brainstorming" não funciona e as pessoas trabalham melhor sozinhas, embora a razão humana evolua para o saber coletivo.

HÉLIO SCHWARTSMAN


ilustração DEBORAH PAIVA

COMO TEMOS BOAS IDEIAS? A questão não é trivial e já mobilizou de pensadores do porte de Platão, Descartes e David Hume a empresários preocupados em aumentar a produtividade de seus funcionários. Como não poderia deixar de ser, métodos ditos infalíveis para obtê-las enchem as estantes das seções de livros de autoajuda.

A maioria dessas receitas está errada. E a razão é muito simples: o mundo é um lugar complexo demais para ser subsumido por meia dúzia de fórmulas pré-fabricadas. Para tornar as coisas um pouco mais complicadas, muitas vezes topamos com uma boa ideia sem conseguir identificá-la como tal.

Recentes descobertas na psicologia e na neurociência, ainda que não permitam produzir um guia da criatividade passo a passo, pelo menos servem para descartar determinados mitos que insistem em se perpetuar.

"BRAINSTORMING"

O mais célebre deles é o do "brainstorming". Como conta o escritor Jonah Lehrer em recente artigo para a revista The New Yorker, o conceito surgiu no livro Your Creative Power (Myers Press). Nesta obra de 1948, ainda em catálogo, o publicitário norte-americano Alex Osborn, sócio da mítica agência BBDO, prometia dobrar o poder criativo do leitor.

O livro, que foi um inesperado best-seller, trazia conselhos como "carregue sempre um caderninho, para não ser surpreendido pela inspiração". O ponto alto, contudo, estava no capítulo 33, intitulado "Como organizar um esquadrão para gerar ideias". Osborn dizia que o segredo do sucesso de sua agência eram as sessões de "brainstorming", nas quais uma dezena de publicitários se reunia por 90 minutos e saía com 87 novas ideias para uma "drugstore".

A principal regra de um "brainstorming" era "não critique o companheiro". Para Osborn, "a criatividade é uma flor tão delicada", que precisa ser alimentada com o louvor e pode ser destruída por uma simples palavra de desencorajamento.

A coisa pegou como uma praga. Osborn escreveu vários outros best-sellers e virou guru da literatura de negócios. Os pedagogos também adoraram e até hoje nossos filhos perdem precioso tempo na escola se dedicando a atividades de grupo onde o mantra é jamais criticar o coleguinha, mesmo que ele diga uma tremenda besteira.

O principal problema com o "brainstorming" é que ele não funciona. Como mostra Lehrer, o conceito fracassou já em seu primeiro teste empírico, em 1958. Pesquisadores da Universidade Yale puseram dois grupos de 48 estudantes para propor soluções criativas para uma série de problemas. No primeiro, os voluntários atuariam segundo as instruções de Osborn; no segundo, cada aluno trabalharia sozinho. Estudantes que operaram individualmente apresentaram, em média, duas vezes mais propostas que os do "brainstorming". Mais ainda, um comitê de juízes considerou essas contribuições melhores e mais factíveis que as do primeiro grupo.

ARQUITETURA

Outra noção popular e errada é a de que laboratórios e escritórios devem ter uma arquitetura que praticamente obrigue as pessoas a interagirem, favorecendo "insights" criativos. Essa moda derrubou muitas paredes, e grandes empresas se tornaram um imenso átrio, onde todos se encontravam o tempo inteiro. Estima-se que cerca de 70% dos escritórios dos EUA sigam esse padrão. Um dos maiores entusiastas do conceito de arquitetura de plano aberto era Steve Jobs, da Apple.

Como mostra Susan Cain, no recente  Quiet: The Power of Introverts in a World that Can't Stop Talking [Crown, 352 págs., R$ 26] , a relação entre interações sociais e boas ideias é mais sutil. Num estudo chamado Coding War Games, Tom Demarco e Timothy Lister avaliaram a performance de 600 programadores de informática de mais de 90 companhias.

A diferença entre os profissionais era impressionante: o desempenho do melhor superou o do pior em dez vezes. E, para tornar as coisas mais misteriosas, as causas suspeitas de sempre - como experiência, salário, tempo dedicado à tarefa - não explicavam o fenômeno.

Demarco e Lister, entretanto, perceberam que os melhores programadores tendiam a agrupar-se nas mesmas firmas. Investigando essa pista, descobriram que o segredo era a privacidade: 62% dos que se saíram bem disseram que seu lugar de trabalho oferecia um ambiente reservado onde podiam se concentrar, contra apenas 19% dos que tiveram pior performance.

INTROVERTIDOS

O objetivo de Cain, nesse interessante livro que pretende ser uma espécie de manifesto de libertação dos introvertidos, é demonstrar que as pessoas precisam respeitar seu temperamento. Especialmente para os tímidos, em geral super-representados nas carreiras científicas, o excesso de interações sociais é amedrontador. Eles se saem melhor em ambientes mais tranquilos, onde sua atenção não seja requisitada para desempenhar várias tarefas ao mesmo tempo.

O problema, sustenta a autora, que largou a advocacia para dedicar-se ao estudo da introversão e à orientação para tímidos, é que o mundo - o Ocidente em especial - abraçou uma cultura da personalidade, cujos valores são ditados por um ideal de extroversão. Quem não consegue ou não gosta de falar em público e motivar as pessoas já sai perdendo pontos na carreira e na própria vida.

Voltando à criatividade, antes de eliminar todas as reuniões de sua empresa, construir paredes por todos os lados e proibir os funcionários de trocar bom-dia, é preciso saber que o problema é mais complexo e nuançado.

Embora as pessoas de um modo geral trabalhem melhor sozinhas (especialmente os introvertidos), a criação continua sendo um processo coletivo. Na verdade, cada vez mais coletivo.

Ben Jones, da Northwestern University, passou os últimos 50 anos analisando quase 20 milhões de publicações acadêmicas e 2,1 milhões de patentes. Em mais de 95% dos campos e subcampos científicos, o trabalho de equipe vem crescendo. O mesmo ocorre com o tamanho das redes de colaboradores, que aumenta em média em 20% a cada década.

Se até um ou dois séculos atrás a ciência podia gravitar em torno de gênios individuais como Einstein e Darwin, à medida que ela se torna mais complexa e especializada, avanços significativos dependem cada vez mais da interdisciplinaridade que, por seu turno, depende de redes cada vez maiores.

A ideia de saber coletivo ganhou inesperado apoio no ano passado, com a publicação de um impactante artigo dos pesquisadores franceses Hugo Mercier e Dan Sperber, que virou do avesso alguns dos pressupostos da filosofia e da psicologia. Eles sustentam que a razão humana evoluiu -não para aumentar nosso conhecimento e nos aproximar da verdade, mas para nos fazer triunfar em debates.

A teoria, dizem os autores, não só faz sentido evolutivo como resolve uma série de problemas que há muito desafiavam a psicologia: os chamados vieses cognitivos.

EXPERIMENTO

Antes de prosseguir, peço licença para descrever uma experiência curiosa. O psicólogo Richard Wiseman, da Universidade de Hertfordshire, resolveu espalhar 240 carteiras pelas ruas de Edimburgo. Elas não continham dinheiro, apenas documentos de identidade, cartões de fidelidade, bilhetes de rifa e fotografias pessoais.

A única variação eram as fotos. Algumas das carteiras não tinham foto nenhuma e outras traziam imagens que podiam ser de um casal de velhinhos, de uma família reunida, de um cachorrinho ou de um bebê.

A meta do experimento era descobrir se a fotografia afetaria a taxa de devolução das carteiras. Num mundo perfeitamente racional, a imagem seria irrelevante. Devolve-se o objeto perdido porque é a coisa certa a fazer. O trabalho de colocá-lo numa caixa de correio não é tão grande assim, e é o que gostaríamos que os outros fizessem, caso nós é que tivéssemos perdido os documentos.

É claro, porém, que as fotografias influíram nos resultados. Foram devolvidas apenas 15% das carteiras sem foto, pouco mais de 25% das que traziam a imagem dos velhinhos, 48% das da família, 53% das do filhotinho e 88% das do bebê.

O experimento ilustra como o cérebro opera. Embora tenhamos nos acostumado a pensar que tomamos decisões pesando prós e contras de cada uma das alternativas possíveis e extraindo com base nisso uma conclusão, o que os estudos psicológicos e neurocientíficos mostram é que, na maioria das ocasiões, a parte inconsciente de nossa mente chega de imediato a uma conclusão, por meio de sentimentos, palpites ou intuições. Neste instante, são os vieses cognitivos que estão operando.

Em seguida, a porção racional de nosso cérebro se põe a procurar e elaborar argumentos racionais (ou quase) para justificar essa conclusão. É muito mais uma conta de chegada do que um cálculo honesto.

SIGNIFICADO

O neurocientista norte-americano Michael Gazzaniga trabalha bem essa questão. Ele identifica no hemisfério esquerdo estruturas que buscam dar sentido ao mundo. O pesquisador as chama de "intérprete do hemisfério esquerdo". É ele que busca desesperadamente um significado unificado a todas as nossas experiências, memórias e fragmentos de informação.

Ele nos faz deixar de ver as evidências que não nos interessam e atribui enorme peso a tudo o que apoia a nossa tese. Quando a história não fecha, pior para a verossimilhança: o intérprete não hesita em criar desculpas esfarrapadas e explicações que beiram o delírio.

Quem resume bem a situação é Robert Wright, em Animal Moral (Campus BB, 2005, esgotado): "O cérebro é como um bom advogado: dado um conjunto de interesses a defender, ele se põe a convencer o mundo de sua correção lógica e moral, independentemente de ter qualquer uma das duas. Como um advogado, o cérebro humano quer vitória, não verdade; e, como um advogado, ele é muitas vezes mais admirável por sua habilidade do que por sua virtude".

Voltando ao trabalho de Mercier e Sperber, ele é bom porque consolida numa argumentação sólida explicações evolutivas para vários dos vieses, em especial o "viés de confirmação", pelo qual fechamos os olhos para as evidências que não corroboram nossas crenças e expectativas e sobrevalorizamos aquelas que apoiam nossas teses.

Sob o modelo clássico, o viés de confirmação é uma falha de raciocínio mais ou menos inexplicável. Mas, se a razão evoluiu para nos fazer vencer em debates, então faz sentido que eu busque apenas provas em favor da minha teoria, e não contra ela.

As implicações são fortes. A mais óbvia é que a razão só funciona bem como fenômeno social. Se pensarmos sozinhos, vamos muito provavelmente chafurdar cada vez mais em nossas próprias intuições e preconceitos. Mas, se a utilizarmos no contexto de discussões mais ou menos estruturadas, aumentam bastante as chances de, como grupo, nos darmos bem.

Temos então um aparente paradoxo: as pessoas trabalham melhor sozinhas, mas a construção do conhecimento é um processo coletivo. O ruído se dissolve se reinterpretarmos o "sozinhas" como "com privacidade, mas em constante diálogo (de preferência virtual) com outros especialistas".

PATOLOGIAS

É preciso, porém, muito cuidado. A linha que separa a sabedoria das multidões dos delírios coletivos é tudo menos nítida. Como mostra toda uma linha de pesquisas iniciada por Irving Janis, da Universidade Yale, nos anos 70, grupos incubam uma série de patologias do pensamento.

A primeira delas é a polarização. Junte um punhado de gente com opiniões semelhantes, deixe-os conversando por um tempo e o grupo sairá com convicções mais parecidas e mais radicais. Provavelmente é assim que nascem facções como o Tea Party, que reúne ultraconservadores radicais nos EUA, e até mesmo organizações terroristas. O advento da internet e das redes sociais pode estar facilitando a formação desses bandos.

A animosidade é outro elemento importante. Ponha um corintiano e um palmeirense para discutir futebol numa sala. Eles discordarão, mas provavelmente se tratarão com civilidade. Entretanto, se você colocar cem de cada lado, quase certamente produzirá xingamentos e até pontapés, quando não tragédias.

Há, por fim, a conformidade. Grupos tendem a suprimir o dissenso. Mais do que isso, procuram censurar dúvidas que um dos membros possa nutrir e ignorar evidências que contrariem o consenso que se forma. É esse o segredo do sucesso das religiões.

Nesse contexto, são especialmente divertidos os experimentos do psicólogo Solomon Asch. Ele submeteu 123 voluntários a um teste tão ridiculamente fácil que ninguém poderia errar: exibia para eles um cartão que trazia estampada uma linha com determinado comprimento. Em seguida, num segundo cartão, apareciam três linhas marcadas com letras de A a C, umas com medidas bem diferentes das outras. A missão era identificar a letra cuja linha era igual à do primeiro cartão. Em 35 tentativas, apenas um infeliz deu a resposta errada.

Mas (sempre há um "mas" em ciência), quando o pesquisador pôs comparsas seus para dar propositalmente respostas erradas antes do voluntário, a taxa de acertos despencava de 97% para 25%. Resultados parecidos foram reproduzidos em no mundo inteiro.

As incursões de Asch pelos perigos da conformidade inspiraram outros experimentos famosos, como os de Stanley Milgram (no qual, pressionadas por um pesquisador, as cobaias não hesitam em dar choques que acreditam ser quase fatais num ator) e de Phil Zimbardo (ele simulou uma prisão num porão da Universidade Stanford, e os voluntários que faziam o papel de guardas se tornaram tão violentos que a encenação teve de ser interrompida).

DÚVIDA

O melhor remédio contra essas doenças do grupo é semear a dúvida, em especial se o questionamento surgir de um membro respeitado do próprio grupo. Como mostram Ori e Rom Brafman em  Sway: The Irresistible Pull of Irrational Behavior [Broadway Books, 224 págs., R$ 19] , a existência de pessoas "do contra" ("dissenters", em inglês) são nossa melhor esperança.

Embora possa produzir fricções de alto custo emocional para todas as partes envolvidas, a figura do "dissenter" costuma levar a maioria a reformular seus argumentos (ou projetos), de modo a responder a objeções percebidas como relevantes. Essa dinâmica fica particularmente clara em situações como a de tribunais colegiados, comissões legislativas e na própria ciência. É praticamente o inverso de um "brainstorming", onde a regra era não criticar.

O "do contra" aqui, ainda que possa provocar brigas homéricas, é um elemento fundamental para melhorar a qualidade do trabalho. O diálogo, vale frisar, nem precisa ser ao vivo. É preciso criar mecanismos que questionem os consensos.

Embora não exista receita para ter boas ideias, é possível melhorar seu desempenho se conseguir trabalhar num ambiente que lhe proporcione privacidade e o poupe de interrupções. Normalmente, é melhor estar sozinho, mas sem jamais se alijar dos debates travados em seu campo de atuação.

Quando precisar juntar colaboradores, mais vale reunir grupos heterogêneos, com um número razoável de pessoas "do contra". Eles reduzem os riscos das patologias da conformidade. Em vez dos elogios, prefira as críticas. Apesar de desgastantes, são elas que vão ajudá-lo a melhorar suas ideias. E, mais importante, não acredite em fórmulas prontas.

Saturday, March 03, 2012


ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR

Livros sobre o nada

Pouco acompanho a produção contemporânea de ficção, mas recaídas acontecem, e uma delas é o tema de hoje: o romance There But for The, da escocesa Ali Smith (ainda inédito no Brasil), um dos mais citados nas listas estrangeiras de melhores de 2011.

A história é assim: um pessoal se reúne para jantar e, por razões desconhecidas, um dos convidados se levanta, tranca-se em um quarto e dali não sai.

A partir daí, não acontece absolutamente nada. Mas descobrir que não está acontecendo nada não é missão fácil. É preciso decifrar a prosa de Ali Smith e desbastar a estrutura narrativa. A autora é do tipo que, se pode complicar, complica.

O que, em si, não é mau, como sabemos nós, leitores masoquistas. Se é para sofrer, a gente topa. Mas tem de haver uma troca, um pote de ouro no final desse caminho tortuoso. Ou pote nenhum - mas aí é preciso que o percurso, ainda que difícil, apresente beleza e originalidade.

Infelizmente, não é o caso de There But for The. Ele não tem uma história boa para contar. Tampouco a estrutura é super inovadora. Em princípio, nem valeria ocupar este espaço. Só está aqui porque, talvez, seja um símbolo importante do estado atual da literatura.

Que virou, a meu ver, essa coisa psicologizante, de fluxo de consciência, jogos de palavras, falação interminável, em geral na primeira pessoa. Narrativas que só se ocupam de si próprias. É só uma tese, admito, e não das mais elaboradas. Mas There But for The se encaixa perfeitamente nela. Uma literatura que trata do vácuo. E que, detalhe importante, tem como único referencial o próprio mundo dos livros.

Dei uma olhada na biografia de Ali Smith. Bingo. Formada em letras na Escócia, depois pós-graduação em Cambridge, depois participações em sabe-se lá quantos grupos de estudo... Vida fora dos livros? Não encontrei.

No romance, a literata Smith tem um "protagonista": o solteirão de meia-idade Miles Garth, aparentemente assexuado e, claro, literato também. É ele que se tranca no quarto. O jantar acontece em Greenwich, subúrbio ao sul de Londres, sede do observatório famoso.

O evento é promovido por um casal yuppie que, para parecer moderno, reúne em casa, às vezes, pessoas de perfis "exóticos".

À mesa, estão Miles, seu conhecido Mark, um casal meio bronco, um casal erudito e a filha deste, Brooke, superdotada de nove anos, que os pais tratam como adulta e levaram ao jantar sem avisar os anfitriões. É um ambiente tenso.

Com perdão da heresia, lembra um pouco a refeição oferecida logo depois do velório de Marmieládov, em Crime e Castigo. São semelhantes a atmosfera pesada, o desconforto, as ironias, as acusações.

Mas, enquanto a profundidade psicológica dos personagens de Dostoiévski é objeto de estudo há quase 150 anos, na cena criada por Ali Smith é tudo esquemático e politicamente correto.

Os donos da casa são cabeças de vento fúteis, classe média em busca de status. O casal negro é sensato e erudito. No outro casal, xucro, o marido é homófobo desbocado, mas mantém, secretamente, um caso gay com outro convidado, Mark, que é judeu, filho de uma famosa artista suicida. Isso não é uma lista de personagens. É um inferno de boas intenções.

Que fique claro: There But for The não é banal ou mal escrito. Smith mostra imaginação e erudição. Brinca à vontade com as palavras, faz referências a dezenas de livros, parodia autores etc. etc.

E a estrutura é criativa. Conta a história de Miles Garth sob a perspectiva de quatro pessoas que mal sabiam quem ele era: uma conhecida de adolescência; Mark (que o levou ao jantar); a mãe velhinha de uma ex-namorada; e a menina Brooke. Mas não passa disso.

Ouvi recentemente de um amigo, infinitamente mais bem informado que eu sobre literatura atual, que ele nunca tinha ligado para histórias policiais, mas vinha se interessando cada vez mais pelo gênero.

Compreende-se: bons enredos estão em falta. E os romances policiais são uma ótima fonte. Como o Agente Secreto (1907), de Joseph Conrad, também passado em Greenwich, e ao qual existem várias referências em There But for The. O livro de Ali Smith teve ao menos esse mérito. Fui buscar O Agente Secreto na estante. Uma história, afinal.