Sunday, April 15, 2012

Suponho que Laura tenha conseguido alcançar um recorde mundial.

Laura teve oito filhos.

Não há nada de surpreendente nisso.

Os oito filhos tinham sete pais.

Duvido que alguém já tenha visto alguma coisa assim!

Foi Laura quem me deu minha primeira aula de biologia. Morava na casa vizinha à nossa, e eu a observava com atenção.

Via sua barriga crescendo durante meses.

Depois notava sua falta por um breve tempo.

E quando a via de novo, estava sem barriga nenhuma.

E o processo de fermentação recomeçava outra vez, dali a alguns meses.

Para mim aquilo era uma das maravilhas do mundo onde eu vivia, e sempre observava Laura. Ela mesma se mostrava bastante alegre com o que estava acontecendo. Costumava apontar para a barriga e dizer: "Esta coisa está acontecendo de novo, mas a gente acaba se acostumando depois das três ou quatro primeiras vezes. Mesmo assim, é um absurdo esse negócio".

Costumava pôr a culpa em Deus e falava da fraqueza dos homens.

Para seus primeiros filhos, ela experimentou seis homens diferentes.

Hat dizia: "Tem gente que é difícil de agradar".

Mas não quero dar a impressão de que Laura passava o tempo todo tendo filhos, espinafrando os homens e tendo pena de si mesma. Se Bogart era a pessoa mais entediada da rua, Laura era a mais animada. Estava sempre alegre e gostava de mim.

Ela me dava ameixas e mangas quando tinha; e, sempre que fazia biscoitos açucarados, me dava alguns.

Até minha mãe, que não gostava nem um pouco de risos, sobretudo em mim, até minha mãe ria de Laura.

Muitas vezes  me dizia: "Não sei por que a Laura fica paparicando você. Até parece que já não tem filhos demais para criar".

Acho que minha mãe tinha razão. Mas não acho que uma mulher como Laura conseguisse um dia ter filhos em excesso. Ela amava todos os filhos, embora a gente pudesse não acreditar nisso, a julgar pela linguagem que usava quando falava com eles. Alguns gritos e xingamentos de Laura foram as coisas mais saborosas que ouvi na vida e nunca vou esquecer suas palavras.

Uma vez, Hat falou: "Puxa, ela é um verdadeiro Shakespeare quando se trata de usar as palavras".

Laura costumava gritar: "Alwyn, seu bugre de boca grande, venha já aqui".

E: "Gavin, se não vier aqui neste minuto vou fazer você peidar fogo, está ouvindo?".

E: "Lorna, sua piranha preta de perna torta, por que não presta atenção no que está fazendo?".


[...]


Um dos milagres da vida na Miguel Street era que ninguém passava fome. Se a gente sentar diante de uma mesa com lápis e papel e tentar entender como isso acontecia, vai achar impossível. Mas morei na Miguel Street e posso garantir a vocês que ninguém passava fome. Talvez tivessem fome, mas não se ouvia ninguém falar disso.

Os filhos de Laura cresceram.

A filha mais velha, Lorna, começou a trabalhar de empregada doméstica numa casa em St Clair e tinha aula de datilografia com um homem na Sackville Street.

Laura dizia: "Não tem coisa melhor do que educação neste mundo. Não quero que meus filhos fiquem que nem eu".

No devido tempo, Laura deu à luz seu oitavo filho, com bem pouco esforço como de costume.

Aquele foi seu último filho.

Não é que Laura estivesse cansada, ou que tivesse perdido seu amor pela humanidade, ou que tivesse perdido seu amor por fazer a humanidade aumentar. Na realidade, Laura nunca parecia ficar mais velha nem menos alegre. Sempre senti que, se tivesse a possibilidade, ela poderia continuar a ter filhos sem parar.



A filha mais velha, Lorna, chegou em casa vindo da aula de datilografia já tarde da noite e disse: "Mãe, vou ter um filho".

Ouvi o grito que Laura deu.

E pela primeira vez vi Laura chorar. Não era um choro comum. Parecia que estava chorando todo o choro que tinha guardado desde o dia em que nasceu, todo o choro que havia tentado encobrir com seus risos.  Eu tinha ouvido pessoas chorarem em velórios, mas há muito exagero para impressionar os outros no choro delas. O choro de Laura naquela noite era a coisa mais terrível que eu tinha ouvido. Dava a sensação de que o mundo era um lugar estúpido, triste, e quase comecei a chorar junto com ela.

A rua inteira ouviu Laura chorar.

No dia seguinte, Boyee disse: "Não entendo por que a Laura ficou tão zangada por causa disso. Afinal, ela faz a mesma coisa".

Hat ficou tão revoltado que tirou seu cinto de couro e bateu em Boyee.

Eu não sei de quem eu tinha mais pena: de Laura ou de sua filha.

Eu tinha a impressão de que agora Laura estava com vergonha de aparecer na rua. Quando eu a vi, achei até difícil acreditar que era a mesma mulher que antes ria comigo e me dava biscoitos açucarados.

Estava velha agora.

Não gritava mais com os filhos, não batia mais neles. Não sei se estava cuidando melhor dos filhos ou se tinha perdido o interesse  por eles.

Mas nunca ouvimos Laura dizer nenhuma palavra de censura em relação a Lorna.

Aquilo era terrível.

Lorna levou seu fiho para casa. Não houve nenhuma piada sobre o assunto na rua.

A casa de Laura era uma casa morta, silenciosa.

Hat disse: "A vida é mesmo uma coisa de doido. A gente pode até ver que o problema está vindo, mas não consegue fazer nadinha para impedir que aconteça. A gente só pode ficar parado, olhar e esperar".



Pelo que os jornais diziam, foi só mais uma tragédia de fim de semana, uma entre muitas.

Lorna afogou-se no Carenage.

Hat disse: " É o que elas sempre fazem, nadam e nadam para longe, até que ficam muito cansadas e não conseguem mais nadar".

Quando a polícia veio dar a notícia para Laura, ela falou muito pouca coisa.

Laura disse: "Está bem. Está bem. É melhor assim".


V. S. Naipaul - O Instinto Maternal - Miguel Street (1959)

Friday, April 06, 2012


Poema em Linha Reta

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Sunday, April 01, 2012

[...] o autoerotismo ainda não é igual ao narcisismo do eu: um novo ato psíquico deve ocorrer para que a tal unidade primitiva se forme e para que a criança se identifique com ela, ou seja, com seu próprio eu. Além da satisfação libidinal autoerótica, o infans haverá de identificar-se com o objeto privilegiado que ele representa frente ao amor e ao desejo de seus pais. A partir desse ponto, está estabelecida a base para a formação do ego freudiano, fonte de investimento libidinal (a partir de 1915, diremos: pulsional) e dessa forma particular de amor a que chamamos narcisista. Nesse ponto da constituição psíquica, Freud haverá de encontrar, em 1915, a relação narcísica com um objeto frustrante que marca a estrutura da melancolia.

O narcisismo primário forma a base para o narcisismo secundário, vulgarmente conhecido como a dose essencial de estima que o ego dedica a si mesmo. O qual, por sua vez, é tributário das desilusões sofridas pelos pais em relação às suas próprias fantasias narcisistas: os filhos representam uma renovação das velhas esperanças infantis dos adultos, contrariadas pela realidade da vida. Outra parte do narcisismo secundário resulta de suas eventuais experiências exitosas - tanto no sentido dos investimentos em direção aos ideais do ego quanto na busca de satisfação da libido objetal. O maior ou menor êxito na constituição do narcisismo secundário varia, a depender de que os investimentos objetais estejam ou não em sintonia com os ideais do ego - caso contrário, estes ficarão sujeitos ao recalque. A vicissitude bastante comum de se desejar o que não se deve, o que não se pode, o que não contribui para a valorização do ego, contribui decisivamente para a diminuição da autoestima dos neuróticos, quando não conduz a inibições que impedem os caminhos do desenvolvimento do ego, ou a soluções de compromisso sintomáticas.

Maria Rita Kehl - Melancolia e Criação. Luto e Melancolia - Sigmund Freud