Saturday, June 30, 2012



DRAUZIO VARELLA

As raízes do racismo

Consideramos membros de nosso grupo mais justos, inteligentes e honestos do que integrantes de outros

Somos seres tribais que dividem o mundo em dois grupos: o "nosso" e o "deles". Esse é o início de um artigo sobre racismo publicado na revista Science, como parte de uma seção sobre conflitos humanos, leitura que recomendo a todos.

Tensões e suspeições intergrupais são responsáveis pela violência entre muçulmanos e hindus, católicos e protestantes, palestinos e judeus, brancos e negros, heterossexuais e homossexuais, corintianos e palmeirenses.

Num experimento clássico dos anos 1950, psicólogos americanos levaram para um acampamento adolescentes que não se conheciam.

Ao descer do ônibus, cada participante recebeu aleatoriamente uma camiseta de cor azul ou vermelha. A partir desse momento, azuis e vermelhos faziam refeições em horários diferentes, dormiam em alojamentos separados e formavam equipes adversárias em todas as brincadeiras e práticas esportivas.

A observação precisou ser interrompida antes da data prevista, por causa da violência na disputa de jogos e das brigas que irrompiam entre azuis e vermelhos.

Nos anos que se seguiram, diversas experiências semelhantes, organizadas com desconhecidos reunidos de forma arbitrária, demonstraram que consideramos os membros de nosso grupo mais espertos, justos, inteligentes e honestos do que os "outros".

Parte desse prejulgamento que fazemos "deles" é inconsciente. Você se assusta quando um adolescente negro se aproxima da janela do carro, antes de tomar consciência de que ele é jovem e tem pele escura, porque o preconceito contra homens negros tem raízes profundas.

Nos últimos 40 anos, surgiu vasta literatura científica para explicar por que razão somos tão tribais. Que fatores em nosso passado evolutivo condicionaram a necessidade de armar coligações que não encontram justificativa na civilização moderna? Por que tanta violência religiosa? Qual o sentido de corintianos se amarem e odiarem palmeirenses?

Seres humanos são capazes de colaborar uns com os outros numa escala desconhecida no reino animal, porque viver em grupo foi essencial à adaptação de nossa espécie. Agrupar-se foi a necessidade mais premente para escapar de predadores, obter alimentos e construir abrigos seguros para criar os filhos.

A própria complexidade do cérebro humano evoluiu, pelo menos em parte, em resposta às solicitações da vida comunitária.

Pertencer a um agrupamento social, no entanto, muitas vezes significou destruir outros. Quando grupos antagônicos competem por território e bens materiais, a habilidade para formar coalizões confere vantagens logísticas capazes de assegurar maior probabilidade de sobrevivência aos descendentes dos vencedores.

A contrapartida do altruísmo em relação aos "nossos" é a crueldade dirigida contra os "outros".

Na violência intergrupal do passado remoto estão fincadas as raízes dos preconceitos atuais. As interações negativas entre nossos antepassados deram origem aos comportamentos preconceituosos de hoje, porque no tempo deles o contato com outros povos era tormentoso e limitado.

Foi com as navegações e a descoberta das Américas que indivíduos de etnias diversificadas foram obrigados a conviver, embora de forma nem sempre pacífica. Estaria nesse estranhamento a origem das idiossincrasias contra negros e índios, por exemplo, povos fisicamente diferentes dos colonizadores brancos.

Preconceito racial não é questão restrita ao racismo, faz parte de um fenômeno muito mais abrangente que varia de uma cultura para outra e que se modifica com o passar do tempo. Em apenas uma geração, o apartheid norte-americano foi combatido a ponto de um negro chegar à Presidência do país.

O preconceito contra "eles" cai mais pesado sobre os homens, porque eram do sexo masculino os guerreiros que atacavam nossos ancestrais. Na literatura, essa constatação recebeu o nome de hipótese do guerreiro masculino.

A evolução moldou nosso medo de homens que pertencem a outros grupos. Para nos defendermos deles, criamos fronteiras que agrupam alguns e separam outros em obediência a critérios de cor da pele, religião, nacionalidade, convicções políticas, dialetos e até times de futebol.

Demarcada a linha divisória entre "nós" e "eles", discriminamos os que estão do lado de lá. Às vezes com violência.

A grande maioria dos "sem-religião" não está, propriamente falando, livre dos comportamentos religiosos, das teologias e mitologias. Estão às vezes entulhados por todo um amontoado mágico-religioso, mas degradado até a caricatura e, por esta razão, dificilmente reconhecível. O processo de dessacralização da existência humana atingiu muitas vezes formas híbridas de baixa magia e de religiosidade simiesca. Não nos referimos às inúmeras "pequenas religiões" que pululam em todas as cidades modernas, às igrejas, seitas e escolas pseudo-ocultas, neo-espiritualistas ou intituladas herméticas - pois todos esses fenômenos ainda pertencem à esfera da religiosidade, ainda que se trate quase sempre de aspectos aberrantes de pseudomorfose. Também não fazemos alusão aos diversos movimentos políticos e profetismos sociais, cuja estrutura mitológica e fanatismo religioso são facilmente discerníveis. Bastará, para dar um só exemplo, lembrarmos a estrutura mitológica do comunismo e seu sentido escatológico. Marx retoma e prolonga um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático-mediterrânico, a saber, o papel redentor do Justo (o "eleito", o "ungido", o "inocente", o "mensageiro"; nos nossos dias, o proletariado), cujos sofrimentos são chamados a mudar o estatuto ontológico do mundo. Com efeito, a sociedade sem classes de Marx e a consequente desaparição das tensões históricas encontram seu precedente mais exato no mito da Idade de Ouro, que, segundo múltiplas tradições, caracteriza o começo e o fim da História. Marx enriqueceu este mito venerável de toda uma ideologia messiânica judaico-cristã: por um lado, o papel profético e a função soteriológica que ele atribui ao proletariado; por outro, a luta final entre o Bem e o Mal, que pode aproximar-se facilmente do conflito apocalíptico entre o Cristo e o Anticristo, seguido da vitória decisiva do primeiro. É até significativo que Marx resgate, por sua conta, a esperança escatológica judaico-cristã de um fim absoluto da História; distingue-se nisso dos outros filósofos historicistas (por exemplo Croce e Ortega y Gasset), para quem as tensões da história são consubstanciais à condição humana e, portanto, jamais poderão ser completamente abolidas.

Mircea Eliade - Existência Humana e Vida Santificada - O Sagrado e o Profano

Friday, June 29, 2012


Tordesilhas, a nova fronteira

512 anos após o descobrimento do Brasil, a linha imaginária separa um país rico de um que começa a realizar seu potencial de crescimento

MARCELO SOARES + SIMON DUCROQUET  (SÃO PAULO)

O Brasil continua dividido pela linha de Tordesilhas, que estava em vigor quando Pedro Álvares Cabral aportou no país há 512 anos, data celebrada hoje.

Em vez de dividir terras portuguesas e espanholas, a linha de Tordesilhas do século 21 divide a riqueza a leste e o potencial a oeste.

Das 50 cidades que mais cresceram entre os censos de 2000 e 2010, 37 estão do lado espanhol de Tordesilhas.

A soja, segundo principal produto na pauta de exportações brasileiras, responde pela maior parte do crescimento. Além da sua própria colheita e beneficiamento, é o seu transporte que gera obras de infraestrutura, que atraem riquezas e trabalhadores.

"A população e a economia historicamente se concentraram numa faixa de até 100 km do litoral, o que facilitava as exportações", diz Antônio Nivaldo Hespanhol, diretor da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Unesp em Ribeirão Preto - cidade localizada a 720 km do mar.

Com dois terços do território, o lado que foi da Espanha responde hoje por cerca de um quarto do PIB do país. Essa proporção já foi menor. Em 50 anos, o Centro-Oeste aumentou sua participação no PIB de 2% para 9,6%.

O Sul do Brasil desenvolveu-se mais cedo, por estar próximo ao mar, e Porto Alegre ainda hoje seria a capital mais rica do além-Tordesilhas. O geógrafo Marcos Aguiar, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, aponta uma diversificação recente no sul do Estado, tradicionalmente agropecuário.

MAIS TECNOLOGIA

Investimentos em portos e em tecnologia de produção são apostas de Aguiar para o crescimento da região.

O Centro-Oeste cresceu a partir da década de 1930, no governo de Getúlio Vargas, a partir da agricultura.

Com a construção de Brasília, a infraestrutura para levar a classe política até a nova capital fez surgirem novos polos urbanos.

A Embrapa também colaborou na ocupação do Centro-Oeste ao pesquisar como adaptar grãos ao cerrado.

Quando as commodities recuperaram valor no mercado internacional, a terra e o know-how estavam posicionados. "Hoje, agroindústrias como Bunge e Cargill investem diretamente na região que é a fonte dos grãos, o Centro-Oeste", afirma o professor da Unesp.

Para o futuro, ele aposta mais no desenvolvimento econômico do que no crescimento populacional do além-Tordesilhas. Grandes extensões de terra são necessárias para a agroindústria.

Embora o dinheiro do campo desenvolva a economia dos polos urbanos regionais, ainda faltam serviços atraentes a essas cidades.

Em Rondônia, sobra emprego, mas falta onde gastar dinheiro

Prazo para receber óculos com lentes antirreflexo: 15 dias. McDonald's fechado por alguns dias, logo após a inauguração, por falta de ingredientes. Uma corrida pelo ensino superior. Emprego farto, ­ao menos por enquanto.

"Hoje, só fica desempregado em Porto Velho [RO] quem quiser", diz a administradora Giovana Nor. "O problema é onde gastar dinheiro."

Com o contraste entre a disponibilidade financeira e a dificuldade logística, os estoques acabam rápido e demoram para ser repostos.

Há dois anos, a administradora deixou São Paulo. Morando a 500 metros do rio Madeira, presenciou a corrida de trabalhadores de todo o Brasil pelos empregos diretos e indiretos das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. O setor de serviços cresceu.

Com um sistema de saúde ainda precário, muitos moradores de Rondônia precisam ir a São Paulo ou a Mato Grosso para obter tratamento. Segundo Nor, as usinas precisaram criar uma licença especial, de cinco dias, para os trabalhadores que viajam para visitar as famílias.

Qualquer espetáculo lota por quebrar a rotina de escassez de opções. Pode ser rock, frevo, teatro de rua ou música erudita, diz Nor.

(MS E SD)

Tuesday, June 26, 2012


CLÓVIS ROSSI

Nove meses, o parto do golpe

Usar a máquina pública foi o motivo oculto por trás do fulminante processo contra Lugo

O New York Times espantou-se com o fato de que o presidente Fernando Lugo foi afastado quando faltam apenas nove meses para a eleição de seu sucessor.

O espanto caberia, se não fosse o fato de que são precisamente esses nove meses que explicam o fuzilamento sumário do então presidente. No Paraguai, muito mais do que no Brasil, o uso da máquina pública é crucial para ganhar eleições.

E a máquina pública paraguaia é uma obra do Partido Colorado, que ocupou o poder sem interrupções desde 1947 até a vitória de Lugo em 2008. Sem contar o período 1887/1904 em que também foi dominante.

Para recuperar o poder em 2013, os colorados precisavam evitar que Lugo atrapalhasse o uso da máquina, na qual continuam bem incrustados, apesar da derrota de 2008.

Da mesma forma, os liberais precisam do poder - que ocuparam por quase 40 anos, desde a chamada "Revolução Liberal" de 1904 - para ganhar com um nome de seus próprios quadros.

Em 2008, tiveram de pegar carona na candidatura de Lugo, fornecendo o vice-presidente, o hoje presidente Federico Franco, e o apoio parlamentar de seus 14 senadores e 27 deputados.

Lugo de aliado passava a ser um estorvo, mesmo não podendo candidatar-se de novo ele próprio (a Constituição veda a reeleição).

Juntou-se então a fome de poder de ambos os grandes partidos com a vontade de comer o pleito de 2013 -e Lugo virou um cadáver político. Ainda mais que a eles se somou o movimento criado pelo general golpista Lino Oviedo.

Os três grupos, somados, têm 38 senadores em 45 e 62 deputados em 80. Nenhuma surpresa, pois, com a forte maioria obtida primeiro para a instauração do processo de impeachment e, em seguida, para o fuzilamento sumário do presidente.

Posto de outra forma: a derrubada de Lugo foi o primeiro movimento para a sucessão. O próprio Lugo, em entrevista à Telesur venezuelana, adotou essa interpretação ao dizer que "há indícios sérios e claros de que Horacio Cartes está por trás [do julgamento político], [porque] sabe que sua candidatura não está crescendo".

Cartes é o pré-candidato favorito no Partido Colorado, mas precisa da máquina para decolar.

Ele apareceu nos papéis do Departamento de Estado dos EUA vazados pelo WikiLeaks como vinculado ao narcotráfico, relembrou ontem o jornal El País. Claro que ele nega, como quase todos os políticos acusados de crimes.

Dado que os vizinhos sul-americanos do Paraguai ameaçam suspendê-lo até que eleições democráticas em abril devolvam o país à plenitude democrática, o que é um reconhecimento implícito de que o afastamento de Lugo é irreversível, cabe uma pergunta, especialmente à diplomacia brasileira: vale, para o Paraguai, a ideia de que é absolutamente intocável a soberania de todo e qualquer país, conceito aplicado, por exemplo, às ditaduras da Síria e da Líbia?

Ou seria no mínimo prudente vigiar a campanha eleitoral para evitar que métodos e dinheiros pouco limpos levem ao poder uma figura sob suspeita em um vizinho e sócio?



Cada um a seu modo, mas de modo semelhante, Safatle e Schwartsman defendem um certo pragmatismo crítico na análise do afastamento do presidente paraguaio.

VLADIMIR SAFATLE

As leis

Egito e Paraguai não têm muita coisa em comum, a não ser a fragilidade de suas democracias. Eis países que gostariam de se ver caminhando em direção à consolidação democrática, mas que descobrem como tal caminho pode ser atrapalhado, vejam só, pelas leis.

Certamente, uma afirmação dessa natureza será rapidamente contraposta pelos ditos defensores do Estado democrático de Direito.

Na verdade, tais defensores querem nos fazer acreditar que as leis que temos devem sempre ser respeitadas, sob o risco de entrarmos em situações de puro arbítrio nas quais o mais forte impõe sua vontade. Eles esquecem como, muitas vezes, criamos leis que visam permitir que grupos interfiram e fragilizem os processos democráticos. Ou seja, leis que são, na verdade, a mera expressão da vontade dos grupos sociais mais fortes.

Isso explica porque a democracia, muitas vezes, avança por meio da quebra das leis. Ela reconhece que ações hoje vistas como criminosas possam ser, na verdade, portadoras de exigências mais amplas de justiça. Foi assim, por exemplo, com as greves - compreendidas durante muito tempo como crimes, e aceitas hoje como direito de todo trabalhador. Vale a pena lembrar desse ponto porque vimos no Egito e no Paraguai situações exemplares do uso da lei contra a democracia.

No Egito, um tribunal constitucional dissolveu o primeiro Parlamento democraticamente eleito da sua história por julgar inconstitucional uma lei parlamentar que proibia membros do regime ditatorial de Mubarak de participar de eleições. Não só a lei aprovada pelo Parlamento era justa, como o ato de dissolvê-lo por julgar inconstitucional uma de suas ações é claramente uma aberração. Mas tal golpe foi feito na mais clara "legalidade" e sem nenhuma manifestação da comunidade internacional.

Já no Paraguai, o Congresso votou o impeachment do presidente em um processo sumário, que durou algumas horas e sob a acusação nebulosa de incompetência (há de perguntar qual parlamentar escaparia de uma acusação dessa natureza). Tal lei serve apenas para tornar o presidente refém de um Congresso que, há mais de cem anos, representa as mesmas oligarquias. Um processo sério de impeachment exigiria amplos direitos de defesa e esclarecimento. Mas tudo foi feito "legalmente".

Diga-se, de passagem: até o golpe de Estado brasileiro (1964) foi feito "legalmente", já que o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou vacante a Presidência por Goulart ter "abandonado" o governo ao procurar abrigo no RS, tomando posse o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli. O que demonstra como nem sempre estamos protegidos pelas leis.

HÉLIO SCHWARTSMAN

Golpe ou impopularidade?

A pergunta cabível não é se houve um golpe no Paraguai, mas, sim, qual a natureza do impeachment. Este, como outras relíquias institucionais, se apresenta de modo ambíguo o bastante para comportar diferentes interpretações.

O mecanismo surgiu na Inglaterra medieval como uma forma de processar e condenar autoridades que, por serem amigas do rei, estavam acima da lei. Em vez de seguir os trâmites normais, o julgamento de impeachment ocorria no Parlamento, que era o que de mais perto havia de um poder independente ao da Coroa.

Assim, se reduzirmos o impeachment a um procedimento penal, os entusiastas de Lugo têm razão em queixar-se do açodamento com que o caso foi julgado, o que constituiria violação ao direito de ampla defesa.

O problema é que o homem, já dizia Aristóteles, é um animal político. Desde os primórdios o impeachment foi usado não só para julgar crimes de autoridades, mas também para livrar-se de políticos impopulares. A tendência foi reforçada com os avanços institucionais pós-Iluminismo: ao menos em teoria, todos, independentemente de condição social ou ligações, seriam processados na Justiça pelos crimes que cometessem.

Não é coincidência que, na Inglaterra parlamentarista, o instituto tenha se tornado obsoleto, sendo substituído pela moção de desconfiança, capaz de depor um governo em minutos sem que ninguém evoque nenhum suposto direito de defesa.

Nessa interpretação mais política do impeachment, Lugo caiu porque perdeu apoio popular -a economia despencou de 15% de crescimento em 2010 para 1,5% de retração neste ano - e se isolou dos partidos -tentou trazer os colorados para o governo, mas falhou e, com isso, afastou os liberais, que o apoiavam. Resultado: 39 votos a 4 pelo afastamento.

Cada um pode ficar com a interpretação que preferir, mas é importante deixar os paraguaios decidirem sem interferências seu destino.

Sunday, June 24, 2012

Saturday, June 23, 2012


A Alma Encantadora das Ruas

Pequenas Profissões
1904

O cigano aproximou-se do catraieiro (o1). No céu, muito azul, o sol derramava toda a sua luz dourada. Do cais via-se para os lados do mar, cortado de lanchas, de velas brancas, o desenho multiforme das ilhas verdejantes, dos navios, das fortalezas. Pelos boulevards sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuária da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais brutal, mais gritada, naquele trecho do Mercado, naquele pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios. O cigano, de frack e chapéu mole, já falara a dois carroceiros moços e fortes, já se animara a entrar numa taberna de freguesia retumbante. Agora, pelos seus gestos duros, pelo brilho do olhar, bem se percebia que o catraieiro seria a vítima, a vítima definitiva, que ele talvez procurasse desde manhã, como um milhafre (o2) esfomeado. Eduardo e eu caminhamos para a rampa, na aragem fina da tarde que se embebia de todos aqueles cheiros de maresia, de gordura, de aves presas, de verduras. O catraieiro batia negativamente com a cabeça.

— Uma calça, apenas uma, em muito bom estado.

— Mas eu não quero.

— Ninguém lhe vende mais barato, palavra de honra. E a fazenda? Veja a fazenda.

Desenrolou com cuidado um embrulho de jornal. De dentro surgiu um pedaço de calça cor de castanha.

— Para o serviço! Dois mil réis, só dois!...Eu tenho família, mãe, esposa, quatro filhos menores. Ainda não comi hoje! Olhe, tenho aqui uns anéis...não gosta de anéis?

O catraieiro ficara, sem saber como, com o embrulho das calças, e o seu gesto fraco de negativa bem anunciava que iria ficar também com um dos anéis. O cigano desabotoara o frack, cheio de súbito receio.

— É um anel de ouro que eu achei, ouro legítimo. Vendo barato: oito mil réis apenas. Tudo dez mil réis, conta redonda!

O catraieiro sorria, o cigano era presa de uma agitação estranha, agarrando a vítima pelo braço, pela camisa, dando pulos, para lhe cochichar ao ouvido palavras de maior tentação; ninguém naquele perpétuo tumulto, ninguém no rumor do estômago da cidade, olhava sequer para o negócio desesperado de cigano. Eduardo, que nessa tarde passeava comigo, arrastou-me pelo ex-Largo do Paço, costeando o cais até a velha estação das barcas.

— Admiraste aquele negociante ambulante?

— Admirei um refinado “vigarista”...

— Oh! meu amigo, a moral é uma questão de ponto de vista. Aquele cigano faz parte de um exército de infelizes, a que as condições da vida ou do próprio temperamento, a fatalidade, enfim, arrasta muita gente. Lembras-te de La romera de Santiago, de Velez de Guevara? Há lá uns versos que bem exprimem o que são essas criaturas:

Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla
Saliendose a los caminos...

É quanto basta como moral. Não sejamos excessivos para os humildes.

O Rio tem também as suas pequenas profissões exóticas, produto da miséria ligada às fábricas importantes, aos adelos, ao baixo comércio; o Rio, como todas as grandes cidades, esmiúça no próprio monturo a vida dos desgraçados. Aquelas calças do cigano, deram-lhas ou apanhou-as ele no monturo, mas como o cigano não faz outra coisa na sua vida senão vender calçar velhas e anéis de plaquet (o3), aí tens tu uma profissão da miséria, ou se quiseres, da malandrice — que é sempre a pior das misérias. Muito pobre diabo por aí pelas praças parece sem ofício, sem ocupação. Entretanto, coitados! o ofício, as ocupações, não lhes faltam, e honestos, trabalhosos, inglórios, exigindo o faro dos cães e a argúcia dos reporters.

Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver, os inconscientes aplicadores à vida das cidades daquele axioma de Lavoisier: nada se perde na natureza. A polícia não os prende, e, na boêmia das ruas, os desgraçados são ainda explorados pelos adelos (o4), pelos ferros-velhos, pelos proprietários das fábricas...

— As pequenas profissões!... É curioso!

As profissões ignoradas. Decerto não conheces os trapeiros sabidos, os apanha-rótulos, os selistas, os caçadores, as ledoras de buena dicha. Se não fossem o nosso horror, a Diretoria de Higiene e as blagues das revistas de ano, nem os ratoeiros seriam conhecidos.

— Mas, senhor Deus! é uma infinidade, uma infinidade de profissões sem academia! Até parece que não estamos no Rio de Janeiro...

— Coitados! Andam todos na dolorosa academia da miséria, e, vê tu, até nisso há vocações! Os trapeiros, por exemplo, dividem-se em duas especialidades — a dos trapos limpos e a de todos os trapos. Ainda há os cursos suplementares dos apanhadores de papéis, de cavacos e de chumbo. Alguns envergonham-se de contar a existência esforçada. Outros abundam em pormenores e são um mundo de velhos desiludidos, de mulheres gastas, de garotos e de crianças, filhos de família, que saem, por ordem dos pais, com um saco às costas, para cavar a vida nas horas da limpeza das ruas.

De todas essas pequenas profissões a mais rara e a mais parisiense é a dos caçadores, que formam o sindicato das goteiras e dos jardins. São os apanhadores de gatos para matar e levar aos restaurants, já sem pele, onde passam por coelho. Cada gato vale dez tostões no máximo.

Uma só das costelas que os fregueses rendosos trincam, à noite, nas salas iluminadas dos hotéis, vale muito mais. As outras profissões são comuns. Os trapeiros existem desde que nós possuímos fábricas de papel e fábricas de móveis. Os primeiros apanham trapos, todos os trapos encontrados na rua, remexem o lixo, arrancam da poeira e do esterco os pedaços de pano, que serão em pouco alvo papel; os outros têm o serviço mais especial de procurar panos limpos, trapos em perfeito estado, para vender aos lustradores das fábricas de móveis. As grandes casas desse gênero compram em porção a traparia limpa. A uns não prejudica a intempérie, aos segundos a chuva causa prejuízos enormes. Imagina essa pobre gente, quando chove, quando não há sol, com o céu aberto em cataratas e, em cada rua, uma inundação!

— Falaste, entretanto, dos sabidos?

— Ah! os sabidos dedicam-se a pesquisar nos montes de cisco as botas e os sapatos velhos, e batem-se por duas botas iguais com fúria, porque em geral só se encontra uma desirmanada. Esses infelizes têm preço fixo para o trabalho, uma tarifa geral combinada entre os compradores, os italianos remendões. Um par de botas, por exemplo, custa 400 réis, um par de sapatos 200 réis. As classes pobres preferem as botas aos sapatos. Uma bota só, porém, não se vende por mais de 100 réis.

— Mas é bem pago!

— Bem pago? Os italianos vendem as botas, depois de consertadas, por seis e sete mil réis! E o mesmo que acontece aos molambeiros ambulantes como o cigano que acabamos de ver — os belchiores compram as roupas para vendê-las com quatrocentos por cento de lucro. Há ainda os selistas e os ratoeiros. Os selistas não são os mais esquadrinhadores, os agentes sem lucro do desfalque para o cofre público e da falsificação para o burguês incauto. Passam o dia perto das charutarias pesquisando as sarjetas e as calçadas à cata de selos de maços de cigarros e selos com anéis e os rótulos de charutos. Um cento de selos em perfeito estado vende-se por 200 réis. Os das carteiras de cigarros têm mais um tostão. Os anéis dos charutos servem para vender uma marca por outra nas charutarias e são pagos cem por 200 réis. Imagina uns cem selistas à cata de selos intactos das carteirinhas e dos charutos; avalia em 5% os selos perfeitos de todos os maços de cigarros e de todos os charutos comprados neste país de fumantes; e calcula, após este pequeno trabalho de estatística, em quanto é defraudada a fazenda nacional diariamente só por uma das pequenas profissões ignoradas.

— Gente pobre a morrer de fome, coitados...

— Oh! não. O pessoal que se dedica ao ofício não se compõe apenas do doloroso bando de pés descalços, da agonia risonha dos pequenos mendigos. Trabalham também na profissão os malandros de gravata e roupa alheia, cuja vida passa em parte nos botequins e à porta das charutarias.

— E é rendoso?

— Rendoso, propriamente, não; mas os selistas contam com o natural sentimento de todos os seres que, em vez de romper, preferem retirar o selo do charuto e rasgar a parte selada das carteirinhas sem estragar o selo.

— Mas os anéis dos charutos?

— Oh! isso então é de primeiríssima. Os selistas têm lugar certo para vender os rótulos dos charutos Bismarck — em Niterói, na Travessa do Senado. Há casas que passam caixas e caixas de charutos que nunca foram dessa marca. A mais nova, porém, dessas profissões, que saltam dos ralos, dos buracos, do cisco da grande cidade, é a dos ratoeiros, o agente de ratos, o entreposto entre as ratoeiras das estalagens e a Diretoria de Saúde. Ratoeiro não é um cavador — é um negociante. Passeia pela Gamboa, pelas estalagens da Cidade Nova, pelos cortiços e bibocas da parte velha da urbs, vai até ao subúrbio, tocando um cornetinha com a lata na mão.

Quando está muito cansado, senta-se na calçada e espera tranqüilamente a freguesia, soprando de espaço a espaço no cornetim.

Não espera muito. Das rótulas há quem os chame; à porta das estalagens afluem mulheres e crianças.

— Ó ratoeiro, aqui tem dez ratos!

— Quanto quer?

— Meia pataca.

— Até logo!

— Mas, ô diabo, olhe que você recebe mais do que isso por um só lá na Higiene.

— E o meu trabalho?

— Uma figa! Eu cá não vou na história de micróbio no pêlo do rato.

— Nem eu. Dou dez tostões por tudo. Serve?

— Heim?

— Serve?

— Rua!

— Mais fica!

E quando o ratoeiro volta, traz o seu dia fartamente ganho...

Tínhamos parado à esquina da Rua Fresca. A vida redobrava aí de intensidade, não de trabalho, mas de deboche.

Nos botequins, fonógrafos roufenhos esganiçavam canções picarescas; numa taberna escura com turcos e fuzileiros navais, dois violões e um cavaquinho repinicavam. Pelas calçadas, paradas às esquinas, à beira do quiosque, meretrizes de galho de arruda atrás da orelha e chinelinho na ponta do pé, carregadores espapaçados (o5), rapazes de camisa de meia e calça branca bombacha com o corpo flexível dos birbantes (o6), marinheiros, bombeiros, túnicas vermelhas e fuzileiros — uma confusão, uma mistura de cores, de tipos, de vozes, onde a luxúria crescia.

De repente o meu amigo estacou. Alguns metros adiante, na Rua Fresca, um rapaz doceiro arriara a caixa, e sentado num portal, entregava o braço aos exercícios de um petiz da altura de um metro. Junto ao grupo, o cigano, com outro embrulho, falava.

— Vês? Aquele pequeno é marcador, faz tatuagens, ganha a sua vida com três agulhas e um pouco de graxa, metendo coroas, nomes e corações nos braços dos vendedores ociosos. O cigano molambeiro aproveita o estado de semi-dor e semi-inércia do rapaz para lhe impingir qualquer um dos seus trapos...um psicólogo, como todos os da sua raça, psicólogo como as suas irmãs que lêem a buena dicha por um tostão e amam por dez com consentimento deles.

Oh! essas pequenas profissões ignoradas, que são partes integrantes do mecanismo das grandes cidades! O Rio pode conhecer muito bem a vida do burguês de Londres, as peças de Paris, a geografia da Manchúria e o patriotismo japonês. A apostar, porém, que não conhece nem a sua própria planta, nem a vida de toda essa sociedade, de todos esses meios estranhos e exóticos, de todas as profissões que constituem o progresso, a dor, a miséria da vasta Babel que se transforma. E entretanto, meu caro, quanto soluço, quanta ambição, quanto horror e também quanta compensação na vida humilde que estamos a ver.

Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla
Saliendose a los caminos...

Mas o meu amigo não continuou o fio luminoso de sua filosofia. O catraieiro apareceu rubro de cólera, e sutilmente cosia-se com as paredes, ao aproximar-se do cigano.

De repente deu um pulo e caiu-lhe em cima de chofre.

— Apanhei-te, gatuno!

O cigano voltara-se lívido. Ao grito do catraieiro acudiam, numa sarabanda de chinelas, fúfias, rufiões, soldados, ociosos, vendedores ambulantes.

— Gatuno! Então vendes como ouro um anel de plaquet? Espera que te vou quebrar os queixos. Sacudiu-o, atirou-o no ar para apanhá-lo com uma bofetada. O cigano porém caiu num bolo, distendeu-se e partiu como um raio por entre a aglomeração da gentalha, que ria. O catraieiro, mais corpulento, mais pesado, precipitou-se também.

Os vagabundos, com o selvagem instinto da caça, que persiste no homem — acompanharam-no. E pelos boulevards, onde se acendiam os primeiros revérberos, à disparada entre os squares sucessivos, a ralé dos botequins, aos gritos, deitou na perseguição do pobre cigano molambeiro, da pobre profissão ignorada, que, como todas as profissões, tem também malandros.

Então Eduardo sentenciou.

— Tu não conhecias as pequenas profissões do Rio. A vida de um pobre sujeito deu-te todos esses úteis conhecimentos. Mas, se esse pobre sujeito não fosse um malandro, não conhecerias da profissão até mesmo os birbantes.

A moral é uma questão de ponto de vista. Para julgar os homens basta a gente defini-los segundo os seus sucessivos estados. Se te aprouver definir os profissionais humildes pela tuaúltima impressão, emprega os mesmos versos de Guevara com uma pequena modificação:

Estos son algunos hombres
De obligaciones, que pasan
Necesidad, y procuran
De esta suerte remediarla

o1 Barqueiro de catraia (bote de um só lugar).
o2 Ave de rapina.
o3 Imitação de ouro.
o4 Quem compra e vende objetos usados; brechó.
o5 Desengonçados.
o6 Patife, malandro.

João do Rio - A Alma Encantadora das Ruas

Sunday, June 17, 2012



Calhou de eu estar lendo o Nelson Rodrigues enquanto repercute o caso Elize Matsunaga.

Essas horas de horror, a imprensa dá espaço aos seus explicadores do mundo profissionais. E eles se põem a tentar explicar. Já falei disso uma outra vez: difícil é explicar o, por definição, inexplicável. Por isso o Nelson Rodrigues vale a pena ser mencionado. Entendeu?

Renato Janine Ribeiro, uma vez, arrastaram um menino de seus oito anos de idade, ou menor, não lembro, preso do lado de fora de um carro em fuga, até o menino morrer despedaçado. O Janine disse: nessas horas eu sinto vontade de ver aplicada a pena capital. Falou "nessa hora", não era uma campanha pela aprovação da pena de morte. Era um desabafo. Mas, como o Janine, justamente, faz carreira como explicador do mundo, outros colegas dele de ofício, caíram de pau. Decepcionados com a passionalidade.

Agora o Contardo Calligaris escreve coluna sobre o Matsunaga e a Elize. Tenta explicar. Entendeu? E meio que bota a culpa no Matsunaga, na linha do "quem mandou mexer no vespeiro". Uma pérola de reacionarismo, daquelas que fazem a gente pensar, como o Nelson Rodrigues, que o psicanalista é uma comadre bem paga.

E depois vem a Danuza Leão. Em geral ela escreve obviedades. E escreve um pouco sem domínio da palavra escrita, meio sem estilo, tipo meia boca. Mas, na sua sinceridade de se saber não ser reconhecida como explicadora, acerta em cheio. Só na conclusão, na última frase, é que dá uma filosofada e aí, filosoficamente falando, produz um sofisma e só. Perdoável pela regra do jogo de escrever em jornal e pela já citada falta de domínio estilístico. Pior o Calligaris que toma os termos da "confissão" de Elize como verdadeiros. Se a mulher é fria a ponto de cortar alguém em pedaços, não seria o caso de desconfiar do que ela diz na hora de relatar o que aconteceu? Ainda mais porque, do ponto de vista do estilo, são só lugares comuns. Mas sobre isso a Danuza já conseguiu explicar com bastante riqueza de detalhes.

Eu agora deveria fechar essa abertura com alguma coisa que levasse ao Nelson Rodrigues. Mas não vou, não. E também não vou repetir o "entendeu?".

CONTARDO CALLIGARIS

Uma linda mulher

Se você ama uma mulher por ela ser prostituta, tente entender a fantasia que está atrás de seu amor

Numa cobertura da Vila Leopoldina, em São Paulo, na noite de 19 de maio, Elize Araújo Matsunaga, 30, assassinou o marido, Marcos Matsunaga, 42, com um tiro na cabeça. Na manhã seguinte, com uma faca de cozinha, Elize esquartejou o cadáver, de modo a poder transportar os pedaços em três malas. Logo, ela foi se desfazer das malas e da faca.

Esse fato de crônica tem tudo para se tornar literatura de cordel. Há o sangue frio de Elize depois do crime. Há a diferença social entre Marcos, empresário e herdeiro da Yoki, que acaba de ser vendida por R$ 1,7 bilhão, e Elize, enfermeira e bacharel em direito, mas de origem bem humilde.

Além disso, o ciúme foi um dos motivos: na noite do crime, Marcos acabava de ser confrontado por Elize, que conseguira a prova da infidelidade do marido. Mais: o horror aconteceu depois de seis ou sete anos do que foi, ao que tudo indica, uma genuína paixão; a filha, de um ano, estava no apartamento, dormindo, durante o crime; foi Marcos que transmitiu a Elize o interesse pelo tiro e pelas armas (havia 30, todas registradas, no apartamento).

Mas, acima de tudo, o que transforma a história do casal em matéria de cordel é o fato de que Marcos encontrou Elize, em 2004, num site de garotas de programa.

A informação parece ser repetida pela imprensa como uma mensagem aos homens: olhe o risco que você corre, se você amar uma prostituta e casar com ela.

Ora, quero corrigir esse lembrete. Se você se apaixonar por uma prostituta (ex ou não, tanto faz) e quiser se casar com ela, recomendo apenas uma cautela, que não tem nada a ver com sua futura mulher e tudo a ver com você.

Claro, a culpa do crime de 19 de maio é só de Elize, mas o lembrete preventivo é para os homens, embora chegue tarde para Marcos.

Se você ama uma mulher que por acaso é prostituta, aí, tudo bem; mas, se você ama essa mulher POR ELA SER prostituta, atenção: nesse caso, seria sábio você se familiarizar com a fantasia que sustenta seu amor. Qual é, em geral, a fantasia em questão?

Todo mundo se lembra de Uma Linda Mulher, filme adorável de Garry Marshall, em que o rico Edward (Richard Gere) se apaixona por Vivian (Julia Roberts), uma prostituta que ele "levantou" na rua. Será que a história de Marcos e Elize é Uma Linda Mulher sem o final feliz? De fato, sempre pensei que, depois dos sorrisos do fim do filme, Edward e Vivian acabariam mal - talvez não tão mal quanto Marcos e Elize, mas mal. Por quê?

Logo quando Edward decide trazer Vivian para o seu mundo, ele "acha graça" confessar a um amigo que aquela linda mulher que está com ele é uma prostituta de rua.

Prognóstico inelutável. Um dia, Edward não resistirá à fantasia que lhe fez escolher Vivian: ele a humilhará (e se humilhará), lembrando, eventualmente diante de amigos e parentes, que Vivian vem da sarjeta e que ele poderia jogá-la de volta para lá.

Na noite do dia 19, segundo a confissão de Elize, Marcos a ameaçou: "Vou te mandar de volta para o lixo de onde você veio". Ele também declarou que, se a mulher quisesse se separar, a filha ficaria com ele, pois será que um juiz daria a guarda da menina a uma prostituta? (Eu aposto que sim, mas sou otimista...).

Em regra, o desejo de um homem que se apaixona por prostitutas (e planeja "redimi-las") é sustentado por uma fantasia (inconsciente) de vingança - contra a mulher e contra ele mesmo, por ter se deixado seduzir. Explico.

A sexualidade de muitos homens é patologicamente neurótica: eles olham para o sexo pelo buraco da fechadura do quarto dos pais. Nessa ótica infantil, não se salva ninguém: é "puta" qualquer mulher que vai com os outros, ou seja, todas as mulheres são "putas", inclusive a mãe (surpreendentemente), porque ela vai com pai, padrasto e companhia - enquanto, para a gente, ela só tem carinho contido.

Para o homem de calça curta, ajoelhado diante da fechadura, a "puta" é um paradoxo: vergonhosamente acessível a todos, salvo a ele.

É nessa infantilidade que nascem a misoginia básica, o gosto da violência contra as prostitutas, a ideia de que todas as mulheres, se não são prostitutas, sonham com isso e uma preferência amorosa quase exclusiva por meretrizes.

Quando um desses homens ama uma prostituta e se casa com ela, seu ressentimento pode se calar em nome do amor, mas só por um tempo: ainda ele vai puni-la por ter sido e ser para sempre a "puta" que vai com os outros.

DANUZA LEÃO

Sobre o assassinato

Na vida real, muitas mulheres que se sabem traídas têm vontade de matar. Algumas até matam

A imprensa tem sido amável e discreta, com Elize Matsunaga; reproduziu o diálogo entre ela e seu (ex?) marido do jeito que ela contou, claro, já que não havia ninguém presente, além dos dois. Ok, jornais e revistas devem ser imparciais, mas existe limite para tudo; em certos casos, até para a imparcialidade.

Marcos Matsunaga estava traindo Elize? Estava, e se todas as mulheres tivessem o direito de matar os maridos que as traem, sobrariam poucos para contar a história.

Ele ameaçou tirar a guarda da filha dela? Todos dizem isso na hora da separação. Foi encontrar a nova namorada no carro (dado por ele) de Elize? Razão para uma certa simpatia pela mulher traída: um absurdo ele usar o carro da própria mulher para sair com a outra. Ela estava visitando a família no Paraná, com a filha e a babá, enquanto ele a traía? Mais digna de simpatia ainda. Seu marido presenteou a nova namorada com um carro? Repetiu o que havia feito com Elize quando a conheceu, ainda casado.

Na hora da briga ele a chamou de prostituta? É melhor mesmo que ninguém se lembre nem do que ouviu, nem do que falou nessa hora, tudo faz parte. Não costumam ser coisas amáveis, mas há muitos que esquecem e até fazem as pazes depois.

Ele a agrediu fisicamente? Nenhuma novidade, também costuma acontecer.

Na vida real, muitas mulheres que se sabem traídas - e sobretudo as que têm uma prova, como o vídeo feito pelo celular - têm vontade de matar. Algumas até matam, a maioria não, mas que muitas têm vontade, isso têm. As que matam costumam ser rápidas; mulher não gosta de ver sangue.

Segundo os jornais, Elize vai ser acusada de assassinato e ocultação de cadáver; não por esquartejamento - esse detalhe não deve existir no Código Penal, como também não deve existir a antropofagia, coisas inadmissíveis na cabeça dos que fazem as leis.

A morte de uma pessoa querida é sempre dolorosa; se for uma morte violenta, mais dolorosa ainda. Se seguida de esquartejamento, nem dá para imaginar o que deve ter sentindo a família de Marcos Matsunaga na hora do enterro. Não existem palavras para avaliar essa dor.

A frieza de Elize é monstruosa. Eu teria medo de deixá-la sozinha com a própria filha, pois ela parece capaz de tudo, e não sei se existe um nome para definir uma doença tão, tão - nem sei o quê. Crimes como esse, confessados e comprovados, não merecem nem julgamento. Não gosto de pensar no que seus advogados vão dizer, na tentativa de absolvê-la; nessa hora, advogados são capazes de tudo. E choca ver que as pessoas não estão dando muita importância ao caso, e que estão tratando Elize como uma pessoa quase normal, com o respeito que se deve dar a qualquer ser humano; só que ela não é um ser humano, é um monstro, e monstros devem ser tratados como tal.

Em outros tempos, certos crimes davam manchetes, e até nomes aos assassinos; quem já era nascido deve lembrar da "fera da Penha".

Nem lembro mais quem ela matou, mas de como ela era chamada não esqueci. Por que será que um crime tão hediondo como o de Elize quase não mobiliza ninguém, nem numa conversa entre amigos?

Está faltando a capacidade de se indignar, e isso é preocupante.

Tuesday, June 12, 2012


O ocaso do maior escritor do século 20

Demência senil impede Gabriel García Márquez de reconhecer familiares e amigos íntimos

Por Marco Lacerda*

O escritor Gabriel García Márquez perdeu definitivamente a memória. Pelo menos esta é a conclusão a que chegaram os meios de comunicação colombianos depois de uma entrevista do autor, terça-feira passada, ao jornalista Plinio Apuleyo, seu amigo íntimo. Depois de duas horas com Gabo, o jornalista revelou que a demência senil já não permite ao escritor escrever e sequer reconhecer familiares e amigos próximos.

“Nas últimas vezes que conversamos pessoalmente, na Cidade do México, ele repetiu várias vezes: ‘Como anda você? O que tem feito? Quando volta de Paris’? Muitos amigos comuns com quem falei sobre o assunto disseram que com eles aconteceu a mesma coisa. Gabo fez as mesmas perguntas. Existe a suspeita de ele tenha algumas fórmulas. Se não reconhece alguém, não pergunta ‘quem é você’?. Prefere fazer perguntas genéricas. Dói muito vê-lo assim. Gabo sempre foi um grande amigo”, disse Plinio Apuleyo.

Há pelo menos cinco anos a deterioração da saúde de García Márquez tornou-se pública. Os primeiros sinais foram dados quando ele renunciou a continuar escrevendo suas memórias (Viver Para Contar, primeiro volume de uma trilogia frustrada) e enfrentou a morte de um irmão. Pouco antes o escritor tinha sido vítima de um linfoma do qual saiu intacto.


Em 2007, quando o Congresso do Idioma celebrou em Cartagena de Índias, na Colômbia, os 40 anos da publicação de Cem Anos de Solidão, García Márquez, pai do cineasta Rodrigo García, se deixou ver sorridente e feliz, vestindo um terno de linho branco. Em nenhum momento, porém, falou em público nem concedeu entrevistas. Nesta época surgiram os primeiros rumores sobre os lapsos de memória do Prêmio Nobel de Literatura de 1982.

No mesmo ano, o escritor britânico Gerald Martin escreveu a biografia oficial de Gabo, Uma Vida, na qual se pode ler, nas entrelinhas, a notícia velada da enfermidade do autor: “Ele era capaz de recordar a maioria das coisas do passado distante, embora tivesse dificuldade em recordar os títulos de seus livros. Mas mantivemos uma conversa normal, até divertida”, diz Martin.

Há um ano, alguns meios de comunicação chegaram a anunciar que Márquez estaria em vias de morrer em Paris. Sua mulher, Mercedes, e sua agente literária, Carmen Balcells, desmentiram a notícia. Gabo não estava em apuros nem estava em Paris. Permanecia em sua casa no México. Há poucos meses a família divulgou uma foto tirada na festa dos 85 anos do autor.

Nos tempos de sua pródiga produção literária Gabriel García Márquez brindou o mundo com uma coleção de obras primas, que o tornaram, na opinião de muitos o maior escritor do século 20. Entre elas se incluem Ninguém Escreve ao Coronel, Crônica de Uma Morte Anunciada, O Outono do Patriarca, O Amor nos Tempos do Cólera, Cheiro de Goiaba, O General em Seu Labirinto, Do Amor e Outros Demônios, além de uma vasta obra como jornalista e cronista.

Dez frases

“Um único minuto de reconciliação vale mais do que toda uma vida de amizade”.

“O segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão”.

“A sabedoria é algo que, quando nos bate à porta, já não serve para nada”.

“O sexo é o consolo que a gente tem quando o amor não nos alcança”.

“Aprendi que um homem só tem o direito de olhar um outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se”.

“Não passes o tempo com alguém que não esteja disposto a passá-lo contigo”.

“Te amo não por quem tu és, mas por quem sou quando estou contigo”.

“Nunca deixes de sorrir, nem mesmo quando estiver triste, porque nunca se sabe quem pode se apaixonar por teu sorriso”.

“Dou valor as coisas, não por aquilo que valem, mas por aquilo que significam”.

“O problema do casamento é que se acaba todas as noites depois de se fazer o amor, e é preciso tornar a reconstruí-lo todas as manhãs, antes do café”.

*Marco Lacerda é jornalista e escritor. Artigo escrito com base em informações do jornal espanhol El Mundo e de agências de notícias.

Friday, June 08, 2012