Tuesday, June 26, 2012



Cada um a seu modo, mas de modo semelhante, Safatle e Schwartsman defendem um certo pragmatismo crítico na análise do afastamento do presidente paraguaio.

VLADIMIR SAFATLE

As leis

Egito e Paraguai não têm muita coisa em comum, a não ser a fragilidade de suas democracias. Eis países que gostariam de se ver caminhando em direção à consolidação democrática, mas que descobrem como tal caminho pode ser atrapalhado, vejam só, pelas leis.

Certamente, uma afirmação dessa natureza será rapidamente contraposta pelos ditos defensores do Estado democrático de Direito.

Na verdade, tais defensores querem nos fazer acreditar que as leis que temos devem sempre ser respeitadas, sob o risco de entrarmos em situações de puro arbítrio nas quais o mais forte impõe sua vontade. Eles esquecem como, muitas vezes, criamos leis que visam permitir que grupos interfiram e fragilizem os processos democráticos. Ou seja, leis que são, na verdade, a mera expressão da vontade dos grupos sociais mais fortes.

Isso explica porque a democracia, muitas vezes, avança por meio da quebra das leis. Ela reconhece que ações hoje vistas como criminosas possam ser, na verdade, portadoras de exigências mais amplas de justiça. Foi assim, por exemplo, com as greves - compreendidas durante muito tempo como crimes, e aceitas hoje como direito de todo trabalhador. Vale a pena lembrar desse ponto porque vimos no Egito e no Paraguai situações exemplares do uso da lei contra a democracia.

No Egito, um tribunal constitucional dissolveu o primeiro Parlamento democraticamente eleito da sua história por julgar inconstitucional uma lei parlamentar que proibia membros do regime ditatorial de Mubarak de participar de eleições. Não só a lei aprovada pelo Parlamento era justa, como o ato de dissolvê-lo por julgar inconstitucional uma de suas ações é claramente uma aberração. Mas tal golpe foi feito na mais clara "legalidade" e sem nenhuma manifestação da comunidade internacional.

Já no Paraguai, o Congresso votou o impeachment do presidente em um processo sumário, que durou algumas horas e sob a acusação nebulosa de incompetência (há de perguntar qual parlamentar escaparia de uma acusação dessa natureza). Tal lei serve apenas para tornar o presidente refém de um Congresso que, há mais de cem anos, representa as mesmas oligarquias. Um processo sério de impeachment exigiria amplos direitos de defesa e esclarecimento. Mas tudo foi feito "legalmente".

Diga-se, de passagem: até o golpe de Estado brasileiro (1964) foi feito "legalmente", já que o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou vacante a Presidência por Goulart ter "abandonado" o governo ao procurar abrigo no RS, tomando posse o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli. O que demonstra como nem sempre estamos protegidos pelas leis.

HÉLIO SCHWARTSMAN

Golpe ou impopularidade?

A pergunta cabível não é se houve um golpe no Paraguai, mas, sim, qual a natureza do impeachment. Este, como outras relíquias institucionais, se apresenta de modo ambíguo o bastante para comportar diferentes interpretações.

O mecanismo surgiu na Inglaterra medieval como uma forma de processar e condenar autoridades que, por serem amigas do rei, estavam acima da lei. Em vez de seguir os trâmites normais, o julgamento de impeachment ocorria no Parlamento, que era o que de mais perto havia de um poder independente ao da Coroa.

Assim, se reduzirmos o impeachment a um procedimento penal, os entusiastas de Lugo têm razão em queixar-se do açodamento com que o caso foi julgado, o que constituiria violação ao direito de ampla defesa.

O problema é que o homem, já dizia Aristóteles, é um animal político. Desde os primórdios o impeachment foi usado não só para julgar crimes de autoridades, mas também para livrar-se de políticos impopulares. A tendência foi reforçada com os avanços institucionais pós-Iluminismo: ao menos em teoria, todos, independentemente de condição social ou ligações, seriam processados na Justiça pelos crimes que cometessem.

Não é coincidência que, na Inglaterra parlamentarista, o instituto tenha se tornado obsoleto, sendo substituído pela moção de desconfiança, capaz de depor um governo em minutos sem que ninguém evoque nenhum suposto direito de defesa.

Nessa interpretação mais política do impeachment, Lugo caiu porque perdeu apoio popular -a economia despencou de 15% de crescimento em 2010 para 1,5% de retração neste ano - e se isolou dos partidos -tentou trazer os colorados para o governo, mas falhou e, com isso, afastou os liberais, que o apoiavam. Resultado: 39 votos a 4 pelo afastamento.

Cada um pode ficar com a interpretação que preferir, mas é importante deixar os paraguaios decidirem sem interferências seu destino.

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