A conversão da segunda alma do PT ao lulismo e seu correspondente ideológico, o desenvolvimento de um capitalismo popular, deixou vazio o lugar do anticapitalismo, hoje disputado por pequenas siglas como o PSOL e o PSTU, já que a esquerda do PT tem impacto dentro do partido, mas pouco fora dele. Essa situação carrega um paradoxo: o de que a esquerda no Brasil ganhou e perdeu, ao mesmo tempo, com a ascensão do lulismo. No momento em que um projeto reformista, mesmo fraco, avança na redução da sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente, aumentando o contingente proletário, a luta ideológica parece recuar para um estágio anterior ao conflito capital/trabalho.
Certa hegemonia capitalista que o lulismo consolida no país se combina com o panorama geral vivido pela esquerda neste início do século XXI. A mudança eleitoral mundial, que começa no Reino Unido em 1979 e depois se espalhará pelas democracias avançadas, em ritmos e combinações diferentes, determinou o recuo contínuo da esquerda até deixá-la reduzida a pequenos grupos, com baixa capacidade decisória. Nesse período, que já dura cerca de trinta anos, surfando sobre a maré montante de maiorias eleitorais, o capital impôs as condições da luta de classes e conquistou uma liberdade que resultou na desregulamentação dos fluxos financeiros e na transferência de enormes porções da atividade econômica para lugares do planeta onde a mão de obra pode ser superexplorada.
O consenso neoliberal foi simbolizado pela autonomia dos bancos centrais, que funcionam como um governo paralelo sob orientação do mercado e fora do controle democrático da sociedade. No Brasil, como na Índia, na China e na África do Sul, forma-se um novo proletariado, enquanto na Europa e nos EUA ele se desintegra. Embora o capitalismo possa ser pós-industrial no centro, na periferia ainda gira ao redor da indústria. Os conflitos “fordistas” que começam a aparecer em países emergentes como a China são reflexo disso.
Aplicando-se em outro contexto, a observação de Tocqueville segundo a qual as revoluções tendem a ocorrer quando as coisas “estão melhores”, e não quando “vão muito mal”, deve-se imaginar que o novo proletariado brasileiro, beneficiado pela ascensão lulista, passe a fazer reivindicações. Mas quais serão as formas e o conteúdo dessas demandas?
Com a esquerda em retrocesso e as religiões evangélicas em avanço, há muito para pesquisar a respeito.
Algumas indicações dão conta de que os grupos ascendentes chegam a patamar social superior imbuídos de religiosidade distinta da que envolvia o “antigo proletariado”. Enquanto este era majoritariamente católico, com uma interessante presença das Comunidades Eclesiais de Base, o atual é influenciado por diversas denominações evangélicas pentecostais e neopentecostais. Para descrevê-los, Rudá Ricci recorre à noção de Richard Sennett sobre a ideologia da intimidade para falar de grupos que tendem a restringir “sua participação em eventos da própria organização confessional”.
Igualmente Jessé Souza afirma que Mangabeira Unger foi dos primeiros a perceber “a importância das novas formas de religiosidade popular na conformação” da classe emergente.
As características ambíguas do proletariado recém-surgido abrem terreno de disputa partidária interessante, pois em cima da despolarização entre direita e esquerda aparece outra polarização. Ancorado na classe média, o PSDB procurará mostrar-se como o partido que tem os melhores quadros para estimular o mercado a atender aos desejos de consumo do proletariado emergente*. Enraizada entre os pobres, a segunda alma do PT levará o partido a se apresentar como aquele que põe o Estado ao lado do “batalhador brasileiro”. Se, em face do que foi o combate entre esquerda e direita nos anos 1980 e 1990, o embate soa como uma polaridade débil é porque são tempos de reformismo fraco. Mas, ainda que tênue, ele poderá colocar, se tiver a durabilidade prevista neste livro, as contradições brasileiras em degrau superior àquele que conteve a história do país até o início do século XXI.
André Singer - Os Sentidos do Lulismo: Reforma Gradual e Pacto Conservador
*Note-se que Singer não fala em "Nova Classe Média" e sim em "Novo Proletariado".
Para saber mais sobre segunda alma do PT, sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente, e o batalhador brasileiro, leia o e-book disponível neste blog.