1.
A respeito do trato negreiro, frei Antônio de São Domingos ensinava na Universidade de Coimbra no final do século XVI: "Ou consta que o rei nenhum cuidado tem neste negócio, ou não consta. Se consta, ninguém pode comprar estes negros, salvo quem quiser fazer essa diligência; se não consta, então deve presumir-se que tudo se faz retamente, pois esse múnus só a eles pertence e deve crer-se que eles o cumprem perfeitamente, doutro modo faz-se-lhe uma injúria manifesta. Por consequência, podemos comprar negros, com a consciência tranquila, enquanto as coisas assim estiverem", d. A. de C. X. MONTEIRO, "Como se ensinava o direito das gentes na Universidade de Coimbra no século XVI", Anais, 2ª sér., vol. 33, 1993, Lisboa, pp. 9-36, pg. 26.
2.
Patterson observa que todas as sociedades estratificadas nascem da apropriação violenta de indivíduos por outros indivíduos. Na maioria dos casos, esse ato de "acumulação original" se restringe à pré-história das sociedades e se perde nela. Mas, no sistema escravista, o ato de reificação dos dominados é continuamente renovado. Sobretudo no Brasil, ajunto eu, onde o sistema escravista - unido de 1550 a 1850 ao circuito atlântico negreiro - permaneceu inteiramente baseado na pilhagem das aldeias africanas. Daí a importância de se atinar com os sucessivos argumentos teológicos e jurídicos que, ao longo desses três séculos, legitimam a etapa inicial, africana, do trato negreiro, momento decisivo da fundamentação legal do escravismo.
No quadro de contínua violência que envolvia a escravização dos africanos, os documentos epístolares traem, por vezes, os sentimentos ambíguos suscitados pelas razias. Com tintas vivas, padre Baltazar Afonso descreve uma das entradas de Dias Novais.
Nesse tempo [1580] tinha já o governador 300 portugueses consigo e alguns 200 escravos de portugueses, e havendo falta de mantimentos os começaram de buscar pela ponta de espingarda, onde deram 4 ou 5 assaltos em que faziam grande destruição, queimando e assolando tudo, e trazendo infinidade de mantimento que a todos fartou. Aqui aconteceu que indo um pai com um filho fugindo dos nossos, vendo que não podia salvar seu filho, se virou para os nossos e despediu quantas frechas tinha, até que o mataram sem se querer bulir de um lugar, para o filho se esconder. E o pai acabou e se foi ao inferno".
Vocabulário direto, narrativa realista, operação de rapina explícita e gesto extremado de heroísmo paternal. A emoção vertida quase até o fim do texto pela luta desesperada do pai ambundo é, entretanto, estancada pelo juízo sem remissão: "E o pai acabou e se foi ao inferno". Não para este nosso inferno fuleiro, cujas fornalhas apagadas a Igreja wojtyliana e os pregadores pentecostais tentam debalde reacender. Mas o inferno quinhentista, imaginado pela ruralidade ibérica, pelas labaredas da Inquisição, mortalha dos infiéis, heréticos, idólatras e canibais combatidos pelo mundo afora pelos cabos de esquadra e missionários.
A ânua da província de Portugal de 1588 enfatiza a preeminência da guerra colonial sobre a catequese em Angola: "Convém que o reino todo se sujeite para mais seguramente e de raiz enformar esta gentilidade e arrancar a idolatria". Enformar, plasmar os nativos na sociedade colonial. No mesmo diapasão, o relatório do visitador Pero Rodrigues mandava os missionários não batizarem nenhum nobre do reino do Dongo até que a terra inteira estivesse toda avassalada.
Entretanto, a substituição dos sobas angolanos pelos capitães e padres na tutela dos sobados fora interrompida pela ordem régia de 1592, extinguindo o regime dos amos. O próprio Filipe II, e não só clérigos inconformistas ou moradores invejosos, recusava a posse e o trato de "peças" empreitado pelos jesuítas. A resposta inaciana veio num duplo registro. Por um lado, os missionários desafiam a autoridade régia e promovem o motim dos amos. Por outro lado, os argumentos pró-escravistas dos jesuítas ajustam-se ao pensamento mercantil coevo, como o demonstra um texto emblemático redigido pelos jesuítas de Angola, depois de discussão com seus correligionários do Brasil.
Não há escândalo nenhum em padres de Angola pagarem suas dívidas em escravos. Porque assim como na Europa o dinheiro corrente é o ouro e prata amoedada, e no Brasil o açúcar, assim o são em Angola e reinos vizinhos os escravos. Pelo que, quando os padres do Brasil nos mandam o que lhe de cá pedimos, como é farinha [de mandioca], e madeira para portas e janelas, e quando os donos das fazendas que vêm a esta parte nos vendem biscoito, vinho e outras coisas, não querem receber de nós a paga em outra moeda, senão na que corre pela terra, que são escravos. Dos quais se carregam cada ano para o Brasil e Índias.
3.
"Marca", em quimbundo, se diz karimu. Karimbo era o ferrete oficial de prata ou ferro esquentado na brasa com que se marcavam os negros no momento do embarque, no ato da cobrança dos direitos de exportação. Daí as palavras carimbo e carimbar. Dessa sorte, o substantivo e o verbo - mais usados na língua portuguesa do Brasil - definindo as hierarquias, o escopo da propriedade, a validade dos documentos, a autoridade pública exercida pelo Império e pela República brasileira, derivam do gesto, do instrumento que imprimiria chancela legal ao comércio de humanos. Da palavra que situa o momento preciso da reificação do africano.
4.
Formado em Direito em Coimbra e estabelecido na Bahia, o padre Ribeiro Rocha dedica parte de seu tratado "teológico-jurídico", Ethiope resgatado (1758), cuja edição foi inteiramente vendida no Brasil, aos éditos doutrinários sobre o papel evangelizador reservado aos donos de escravos. Sobretudo quando estes vinham diretamente dos sertões africanos: "Tudo quanto os teólogos dizem da Doutrina Cristã, que os pais devem ensinar a seus filhos, declaram que procede igualmente nos senhores a respeito de seus escravos e, especificamente falando, dos que saíram da infidelidade [na África]". Rebatendo a crença de que os escravos pareciam faltos de entendimento e, por isso, infensos ao cristianismo, o padre Ribeiro Rocha retrocede à doutrina pré-tridentina para afirmar o caráter mágico da oração: um papagaio a quem ensinaram rezas "valeu para livrar milagrosamente a vida, o repetir a ave-maria em ocasião que nas unhas o levava o gavião". Se até as aves americanas recebiam "milagrosamente" a proteção do manto divino ao papaguear orações, os africanos também podiam habilitar-se a tanto, bastando para isso que os senhores empregassem diligência e perseverança. Dessa forma, a teoria negreira jesuíta ajuda a compor o patriarcalismo senhorial luso-brasileiro.
Luiz Felipe de Alencastro - A Teoria Negreira Jesuítica - O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul.