Sunday, November 11, 2012



Nascimento no meio do oceano

Roberto Pompeu de Toledo - 05 de Julho de 2000 - VEJA

Prepare-se o leitor interessado em História do Brasil para um festim. O Trato dos Viventes, de Luiz Felipe de Alencastro (Companhia das Letras; 525 páginas; 36 reais) oferece uma exibição de inteligência, erudição, visão e domínio seguro do assunto em níveis de virtuose. O tempo do livro são os séculos XVI e XVII, os dois primeiros do país que começava a ser o Brasil. O espaço vai além do que hoje configura o Brasil: é o Atlântico Sul como um todo, África e América somados. O Trato dos Viventes é fruto de 25 anos de pesquisa e meditação sobre o tema. Alencastro, que se graduou na França e ali se doutorou, já expunha algumas de suas idéias básicas em artigos que publicou em Paris no final da década de 70. Hoje professor de História do Brasil na Universidade de Paris (Sorbonne), além de colunista de VEJA, ele afirma que se sentirá recompensado se "a imensidade de anos" que dedicou ao trabalho vier mostrar a jovens historiadores que "dá para costurar um livro devagarinho, sem perder as estribeiras, as universitárias e outras".

Como todo livro com uma proposta clara, O Trato dos Viventes é fácil de descrever. Esqueça o mapa do Brasil, eis a primeira providência que se sugere ao leitor. Tomar o mapa atual e transpô-lo às origens, privilegiando-o como o espaço em que se formou o país, é, diz o autor, um anacronismo. Lembremo-nos de que, antes de descobrir o Brasil, Portugal andou descobrindo (no sentido que se dava à palavra na época) a África. E ali não tardou a descobrir (no sentido atual) as maravilhas de uma mercadoria que viria a se inscrever no cerne de suas atividades ultramarinas: os seres humanos. Comprar seres humanos de um lado e vendê-los do outro, manter um lado (a África) como reserva de mão-de-obra e o outro (o Brasil) como a fazendona onde empregá-la: eis o modo como Portugal integrou as duas margens do Atlântico e o viabilizou como espaço econômico. Daí nasce o Brasil. Não no seu mapa atual, mas no mar.

Ou, por outra: nasce do tráfico. O empreendimento escravagista, no qual Portugal foi pioneiro, na era moderna, e do qual desde logo assumiu a liderança, iria revelar-se um dos melhores negócios do mundo, capaz de atrair grandes capitais, públicos e privados. E a via que se firmaria como a mais movimentada, entre as percorridas pelo tráfico, mais do que a que escoava para o Caribe, a América do Norte ou o Prata, era a que ligava a África – particularmente Angola – ao Brasil. Doze mil viagens, segundo cálculos do livro, foram realizadas, ao longo dos três séculos de escravidão, entre uma costa e outra, trazendo 4 milhões de negros ao país. Tão vultoso se revelou o negócio escravagista, em si, que é difícil dizer se o Brasil importou escravos porque suas culturas precisavam deles – a da cana-de-açúcar, em primeiro lugar – ou se, ao contrário, implantou culturas para abrir mercados ao negócio dos escravos. Tão abundante e ativo se apresentava o tráfico que era mais negócio comprar escravos novos do que contar com a reprodução dos antigos. Ou, como escreve Alencastro: "Convinha mais fazer açúcar para vender na Europa e obter meios de compra de (...) africanos adultos do que investir na produção de alimentos, estimular uniões entre os cativos, preservar as mulheres grávidas e as crianças nos engenhos e nas fazendas na expectativa de recolher, a médio prazo, novos trabalhadores cativos nascidos e criados no local".

Engana-se, porém, quem pensa que o tráfico era só o tráfico. Ou, melhor dizendo, que era só um negócio. Era também uma estratégia. Era a maneira de Portugal segurar as pontas de seu império atlântico, e aqui se dá à expressão um sentido literal – segurar as duas pontas, a americana e a africana, do espaço sob seu controle. Do abraço entre as duas costas da bacia sul-atlântica, por mais que seja esse um abraço tétrico, baseado, como diz o título do livro, no trato dos viventes, vale dizer, no comércio de seres humanos, surgem as condições nas quais seria criado o Brasil. "De conseqüências decisivas na formação histórica brasileira, o tráfico extrapola o registro das operações de compra, transporte e venda de africanos para moldar o conjunto da economia, da demografia, da sociedade e da política da América portuguesa", escreve o autor.

A complementaridade entre África e Brasil não escapava aos contemporâneos. "Sem ela (Angola) não tem Vossa Majestade o Brasil", avisava o governador-geral no Brasil Telles da Silva ao rei português dom João IV em 1643. E não escapava igualmente às potências rivais. A Holanda, depois de se apoderar do Nordeste brasileiro, cruza o oceano e toma Angola. Maurício de Nassau, humanista convertido ao escravismo, cedo compreendeu o alcance da frase tão repetida de que "sem Angola, não há Brasil". Sem o braço negro, nada feito. O domínio holandês da colônia africana dura pouco. A reação luso-brasileira contra o domínio holandês dá-se simultaneamente – e vence – em Pernambuco e em Angola. Não é que o Atlântico Sul fosse um Mare Nostrum, como o Mediterrâneo foi para os romanos, tanto que se abria para as lasquinhas deste e de outros rivais europeus, mas o império comandado por Lisboa conseguiu dar as cartas por longo período.

O livro de Alencastro, ao mesmo tempo que percorre seu leito central, desdobra-se em subveios que desvendam aspectos pouco conhecidos do leitor brasileiro. Há uma História de Angola nele embutida. Portugal não teria tido o sucesso que teve, no comércio escravista, se tal prática já não estivesse estabelecida na África. O trato dos viventes existia, ali, antes dos europeus. O politicamente correto, hoje, como escreve Alencastro, é imaginar uma África unida contra o agressor. Engano. Africanos guerreavam africanos para cativá-los. Antes dos europeus, os mouros do norte da África foram bons fregueses das feiras de seres humanos do interior do continente. Portugal se apodera das redes de tráfico com uma política que misturava a força bruta e a sedução. Os guerreiros jagas, temidos em toda a África Central, dividiram-se. Uma parte resistia aos portugueses, outra colaborava.

História emblemática é a da rainha Jinga, do Reino de Matamba. Enquanto resistiu aos portugueses, com os jagas que lhe eram fiéis, era pintada como uma das mais perversas figuras do continente, encarnação dos poderes do demônio sobre os povos pagãos. Segundo o primeiro historiador de Angola, Antônio de Oliveira Cadornega (século XVII), Jinga mantinha um harém de homens transformados em mulheres, "até em o seu vestir", como se "eles fossem fêmeas e ela, varão". Seria antropófaga, além disso, e infanticida. Convertida ao cristianismo pelo capuchinho italiano Antônio de Gaeta, passa a ser tratada como beneficiária de um milagre. Morreu aos 81 anos, e foi enterrada com o hábito dos capuchinhos, além de coroa de ouro e jóias, e escoltada por doze irmãos do Rosário. Nem seria preciso dizer, mas, vá lá, diga-se, que, ao converter-se ao cristianismo, a rainha, numa outra obra de maravilha, converteu-se ao tráfico. Isso não impede, lembra Alencastro, que Jinga seja hoje identificada, tanto nas congadas brasileiras quanto nas celebrações dos negros dos Estados Unidos e do Caribe, em raps e reggaes, como símbolo da resistência da cultura africana.

O livro de Alencastro não pretende ter personagens centrais – seu centro é o oceano e o que se traficava por cima dele –, mas, se fosse para ter, dois ressaltam como evidentes candidatos ao posto de artífices maiores do império luso sul-atlântico, ambos, não por acaso, luso-brasileiros. O primeiro é o Padre Antônio Vieira, dono de uma das maiores inteligências do tempo, cuja influência alcançava cortes e dioceses ao redor do mundo, e cujo domínio do idioma e elegância de expressão fez Fernando Pessoa honrá-lo com o título de "imperador da língua portuguesa". Se a Igreja forneceu uma ideologia ao escravismo e ao tráfico, ao apresentá-los como fatores de evangelização, e se os jesuítas, dentro da Igreja, foram os que mais propagaram tal conceito, entre os jesuítas foi Vieira quem o apresentou com mais audácia. Ele aparece no livro um pouco por toda parte, mas com mais destaque quando Alencastro cita o sermão XIV, em que, dirigindo-se aos africanos, defende que foi Nossa Senhora quem os trouxe ao Brasil, para que encontrassem a verdadeira fé. "Oh", diz Vieira, "se a gente preta tirada das brenhas de sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e Sua Santíssima Mãe, por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre!"

O outro personagem é Salvador de Sá e Benevides, governador do Rio de Janeiro e mais poderoso membro da dinastia dos Sá, que por longo período dominou a capitania fluminense. Sua fortuna era tão grande que fez construir para si, na ilha onde hoje se encontra o Aeroporto do Galeão, assim chamado exatamente por isso, o galeão Padre Eterno, navio portentoso – "o maior que há hoje, nem se sabe que houvesse nos mares", segundo nota na imprensa lisboeta. Salvador de Sá, cuja fortuna – é preciso dizer? – vinha do tráfico, foi quem comandou, em 1648, a expedição de retomada de Angola das mãos dos holandeses. Consolidou-se, com essa ação, um dos mais curiosos fenômenos da era colonial, sobre o qual os historiadores se têm debruçado ultimamente com insistência: uma espécie de subcolonialismo brasileiro. Na verdade, os brasileiros, ou, antes, portugueses do Brasil, eram os principais agentes do tráfico. O trato com Angola era bilateral, Rio–Luanda, Salvador–Luanda ou Recife–Luanda. Só por exceção compunha um triângulo, passando também por Lisboa. Angola era mais colônia do Brasil do que de Portugal, se se pode assim dizer, e se se pode tomar a liberdade de dar por existente uma entidade chamada "Brasil". O livro de Alencastro, ao ampliar as fronteiras da História do Brasil, abre a cabeça do leitor. Uma face oculta da formação brasileira lhe é desvendada.

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