Saturday, December 22, 2012

No final do século XVII o Brasil formado a partir de Angola estava prontinho. O mercado atlântico impusera o primado do tráfico negreiro, interpretado pela Igreja como uma obra de caridade cristã e evangelização. O escravismo dominava tudo, a barreira indígena no interior fora destroçada, o território se repovoava dentro do esquadro colonial, o gado se expandia, os mestiços e mulatos furavam o seu lugar. Nas décadas seguintes, a economia do ouro instaura uma divisão inter-regional do trabalho na América portuguesa, engendra um só mercado e faz tudo virar uma coisa só.

A partir de 1550, todos os "ciclos" econômicos brasileiros - o do açúcar, o do ouro e o do café - derivam do ciclo multissecular de trabalho escravo resultante da pilhagem do continente africano. O tráfico negreiro vai irrigar os desdobramentos regionais e setoriais da economia mineira, permitindo o desenvolvimento simultâneo das diferentes zonas produtivas: a indústria açucareira não só se mantém, como acaba rendendo mais que a do ouro no século XVIII.

Mas a emergência do mercado interno oculta o seu apêndice angolano e, numa certa medida, as relações bilaterais que unem a Bahia à Costa da Mina. O brilho do ouro setecentista encobre as cores do século XVII e desfoca o perfil do século XIX. De fato, a Independência traz de novo a evidência do tráfico negreiro e da desterritorialização do mercado de trabalho escravo. Como disse logo no primeiro capítulo, a continuidade da história colonial não coincide com a continuidade do território colonial. A transparência intermitente de uma matriz colonial que é distinta da unidade nacional brasileira inverte a cronologia e sugere uma sequência histórica alternada: o século XIX está mais perto do XVII que do século XVIII. Para interpretar o Império do Brasil, é preciso voltar ao Seiscentos e estudá-lo na perspectiva sul-atlântica. Por isso escrevi esse livro.

Jan van Kessel - Africa
Não procurei resumir para os leitores brasileiros a história da África portuguesa, tampouco "brasilianizar" de qualquer jeito personagens e feitos ultramarinos. Pretendi, isto sim, esboçar as fronteiras e as etapas históricas que constituíram um espaço transcontinental, luso-brasileiro e luso-africano que se assemelha a um  atol do Pacífico. Na maior parte do tempo, a cadeia de montanhas unindo as ilhas fica submersa, invisível. Só quando um terremoto faz tremer o fundo do mar e se levantam tempestades é que o grande anel do atol surge no horizonte. Há, de fato, dois terremotos que expõem o arco transcontinental da zona econômica formada pelo Brasil e por Angola. O primeiro ocorre durante a Guerra dos Trinta Anos, quando a investida holandesa no Atlântico Sul junta Luanda e Recife num só front militar. O segundo período de turbulências acontece após a Independência, na altura em que se rompe a matriz espacial colonial e as canhoneiras da Royal Navy se interpõem entre o Império do Brasil e os portos negreiros africanos. Assim, os terremotos são provocados pela irrupção de rivais estrangeiros - holandeses no século XIX - no espaço econômico luso-brasileiro  no Atlântico Sul.

Fica patente que o sistema colonial é atravessado por uma crise refundadora no Seiscentos: na saída da guerra holandesa se estabelece uma cogestão portuguesa e brasílica no espaço econômico do Atlântico Sul. Por isso, a ruptura de 1808 não será tão radical como se tem dito e escrito: ainda se movia no oceano o braço brasilianizado do sistema colonial: a rede de importação de mão de obra cativa, o tráfico negreiro. Depois de 1850, o mercado de trabalho nacional continua dependente, nos seus setores dinâmicos, do trato de imigrantes europeus, levantinos e asiáticos. Só nos anos 1930-40 a reprodução ampliada de força de trabalho passa a ocorrer inteiramente no interior do território nacional.

Essa é a variável de longue durée que apreende a formação do Brasil nos seus prolongamentos internos e externos: de 1550 a 1930 o mercado de trabalho está desterritorializado: o contingente principal da mão de obra nasce e cresce fora do território colonial e nacional.

A história do mercado brasileiro, amanhado pela pilhagem e pelo comércio, é longa, mas a história da nação brasileira, fundada na violência e no consentimento, é curta.

Jan van Kessel - America

Luiz Felipe de Alencastro - Conclusão: Singularidade do Brasil / A Invenção do Mulato. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul

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