Sunday, September 30, 2012


A conversão da segunda alma do PT ao lulismo e seu correspondente ideológico, o desenvolvimento de um capitalismo popular, deixou vazio o lugar do anticapitalismo, hoje disputado por pequenas siglas como o PSOL e o PSTU, já que a esquerda do PT tem impacto dentro do partido, mas pouco fora dele. Essa situação carrega um paradoxo: o de que a esquerda no Brasil ganhou e perdeu, ao mesmo tempo, com a ascensão do lulismo. No momento em que um projeto reformista, mesmo fraco, avança na redução da sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente, aumentando o contingente proletário, a luta ideológica parece recuar para um estágio anterior ao conflito capital/trabalho.

Certa hegemonia capitalista que o lulismo consolida no país se combina com o panorama geral vivido pela esquerda neste início do século XXI. A mudança eleitoral mundial, que começa no Reino Unido em 1979 e depois se espalhará pelas democracias avançadas, em ritmos e combinações diferentes, determinou o recuo contínuo da esquerda até deixá-la reduzida a pequenos grupos, com baixa capacidade decisória. Nesse período, que já dura cerca de trinta anos, surfando sobre a maré montante de maiorias eleitorais, o capital impôs as condições da luta de classes e conquistou uma liberdade que resultou na desregulamentação dos fluxos financeiros e na transferência de enormes porções da atividade econômica para lugares do planeta onde a mão de obra pode ser superexplorada.

O consenso neoliberal foi simbolizado pela autonomia dos bancos centrais, que funcionam como um governo paralelo sob orientação do mercado e fora do controle democrático da sociedade. No Brasil, como na Índia, na China e na África do Sul, forma-se um novo proletariado, enquanto na Europa e nos EUA ele se desintegra. Embora o capitalismo possa ser pós-industrial no centro, na periferia ainda gira ao redor da indústria. Os conflitos “fordistas” que começam a aparecer em países emergentes como a China são reflexo disso.

Aplicando-se em outro contexto, a observação de Tocqueville segundo a qual as revoluções tendem a ocorrer quando as coisas “estão melhores”, e não quando “vão muito mal”, deve-se imaginar que o novo proletariado brasileiro, beneficiado pela ascensão lulista, passe a fazer reivindicações. Mas quais serão as formas e o conteúdo dessas demandas?

Com a esquerda em retrocesso e as religiões evangélicas em avanço, há muito para pesquisar a respeito. 

Algumas indicações dão conta de que os grupos ascendentes chegam a patamar social superior imbuídos de religiosidade distinta da que envolvia o “antigo proletariado”. Enquanto este era majoritariamente católico, com uma interessante presença das Comunidades Eclesiais de Base, o atual é influenciado por diversas denominações evangélicas pentecostais e neopentecostais. Para descrevê-los, Rudá Ricci recorre à noção de Richard Sennett sobre a ideologia da intimidade para falar de grupos que tendem a restringir “sua participação em eventos da própria organização confessional”.

Igualmente Jessé Souza afirma que Mangabeira Unger foi dos primeiros a perceber “a importância das novas formas de religiosidade popular na conformação” da classe emergente.

As características ambíguas do proletariado recém-surgido abrem terreno de disputa partidária interessante, pois em cima da despolarização entre direita e esquerda aparece outra polarização. Ancorado na classe média, o PSDB procurará mostrar-se como o partido que tem os melhores quadros para estimular o mercado a atender aos desejos de consumo do proletariado emergente*. Enraizada entre os pobres, a segunda alma do PT levará o partido a se apresentar como aquele que põe o Estado ao lado do “batalhador brasileiro”. Se, em face do que foi o combate entre esquerda e direita nos anos 1980 e 1990, o embate soa como uma polaridade débil é porque são tempos de reformismo fraco. Mas, ainda que tênue, ele poderá colocar, se tiver a durabilidade prevista neste livro, as contradições brasileiras em degrau superior àquele que conteve a história do país até o início do século XXI.

André Singer - Os Sentidos do Lulismo: Reforma Gradual e Pacto Conservador

*Note-se que Singer não fala em "Nova Classe Média" e sim em "Novo Proletariado".

Para saber mais sobre segunda alma do PT, sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permanente, e o batalhador brasileiro, leia o e-book disponível neste blog.

Sunday, September 23, 2012


Marcus Preto, crítico da Folha, resenhou o disco novo do Djavan assim:

[...] O álbum tem, de cara, meia dúzia de faixas com todos os elementos que reconhecemos como o "estilo Djavan": a batida sincopada do violão, o alongamento no final das frases melódicas, as letras que valorizam tanto o sentido das palavras quanto seu som.
Djavan está em sua zona de conforto, é o que parece.
Mas é tudo mentira. São muitos os temas menos "djavaneanos" no trabalho. Ares Sutis, Quinze Anos e Rua dos Amores, por exemplo, fogem completamente disso.
O problema é que eles só surgem lá para o final da audição, depois de a impressão de "mais do mesmo" ter se cristalizado nos ouvidos. [...]

Mas é mentira.

Ares Sutis, na verdade, é um retorno a temas e contornos melódicos de fases antigas, do disco Alumbramento, por exemplo, ou Álibi, ou A Ilha, ou Morena de Endoidecer. Essas sonoridades são recessivas ao longo da carreira do Djavan. Mas são encontráveis ao longo dela toda.

Mais do mesmo é a maneira de distorcer a obra do artista para deixar mais palatável aos olhos do leitor (pretensamente jovem). Que só conhece o Djavan "Jorge Avercillado" dos funks picantes e baladas apaixonadas de duas décadas pra cá. O crítico poderia ser aquele que localiza o antigo no novo, o novo no antigo. Se não estivesse tão desinformado quanto seu público.



Sunday, September 16, 2012



Ares Sutis

Quanto mais eu sei
Menos eu sei quem sou.
Será que eu vivi
Tudo por que passei...
E quem será que eu sou?
Mesmo podendo imaginar
O que eu quiser,
Eu não sei se sou tanto!

Quanto mais eu sou
Menos sou o que sei.
E pra o que nasci,
Será que cumprirei?
O que será que eu sei
Num corpo a mendigar,
Qual é a lei
No desvão do amar?

Me consumi
Pra ter um pouco de ti,
Clamei por atenção!
Jamais usei
Sapatos tão peculiares,
Andei vestida por colares mis,
Violentei até meus ares sutis!

E o que não tem fim
Começa outra vez:
Quanto mais eu sou
Acho que mais eu sei
O que vai ser, enfim
Sedada de afeição
Eu vou viver
Pra esquecer de mim

Saturday, September 08, 2012


DRAUZIO VARELLA

Microbioma humano

A visão de que os germes são inimigos, num mundo cada vez mais higiênico e estéril, pertence ao passado

Em nossa cosmovisão antropocêntrica, somos o resultado dos genes que se juntaram num óvulo fertilizado. A condição humana, no entanto, é muito mais complexa.

Recebemos de nossos pais cerca de 23 mil genes, número insignificante comparado aos 3,3 milhões de genes pertencentes às bactérias alojadas em nosso corpo.

Não imagine que elas são parasitas reles à espera de uma oportunidade para invadir o organismo. Entre outras funções nobres, as bactérias liberam micronutrientes essenciais, energia para o consumo diário, regulam o sistema imunológico e nos protegem contra germes virulentos.

Na visão moderna, o corpo humano é um ecossistema no qual as células descendentes do óvulo fertilizado constituem apenas um dos componentes. O outro é o microbioma, muito mais numeroso: para cada célula herdada existem dez bactérias.

Enquanto um homem de 70 quilos é formado por 70 trilhões de células, em seu intestino existem 100 trilhões de bactérias. Os outros 600 trilhões são encontradas na pele (10 mil em cada cm²), boca, cavidade nasal, seios da face e aparelho geniturinário.

Durante a gravidez, o bebê é mantido em ambiente estéril. Se ele assim permanecesse ao vir à luz, teria poucos dias de vida, devorado por germes agressivos e incapaz de obter no seio materno a energia necessária para sobreviver.

Ao passar pelo canal do parto, o bebê se infecta com as bactérias presentes na vagina e no aparelho urinário da mãe, ricas em Lactobacillus. Nos partos cesarianos, o microbioma é adquirido principalmente pelo contato com as bactérias da pele materna das pessoas que convivem com ela. A diferença na composição dos microbiomas entre os nascidos por via vaginal ou cesariana persiste por meses e deve ter implicações na saúde dos nenês.

A transição do leite materno para a dieta sólida está associada à aquisição de um microbioma mais semelhante ao da vida adulta, mas as doenças infecciosas, o uso de antibióticos e as características da dieta podem interferir com sua composição.

Daí em diante, os germes com quem dividimos o corpo serão adquiridos por meio do contato com os familiares e com os que nos cercam, de modo que o microbioma adquirirá características únicas que nos distinguirão dos demais seres humanos, tanto quanto nossa aparência física.

Em 2006, um estudo mostrou que a mucosa intestinal de indivíduos obesos era rica em bactérias do phylum Firmicutes, enquanto as dos magros pertenciam predominantemente ao phylum Bacteroidetes. Quando os obesos perdiam peso, a composição da flora adquiria as características dos magros.

Experimentos subsequentes demonstraram que o emagrecimento está associado à ação dos Bacteroidetes na inibição da síntese de um hormônio que facilita o armazenamento de gordura. Essa mudança da flora explicaria por que doses baixas de antibióticos ajudam o gado a engordar.

Da mesma forma, seria possível combater a subnutrição por meios de manipulações da flora intestinal.

Nos últimos cinco anos, tem sido demonstrado que o microbioma exerce papel importante em doenças cardiovasculares, esclerose múltipla, diabetes, infecções por germes patogênicos, doenças inflamatórias, como a doença de Crohn, que acomete os intestinos, processos autoimunes, como a asma, e até no autismo.

O caso do diabetes é especialmente ilustrativo. Pessoas com obesidade grave e diabetes submetidas a uma cirurgia conhecida como Y de Roux, na qual o intestino sofre um curto-circuito para reduzir a capacidade de absorção de nutrientes, perdem de 20 a 30% do peso corpóreo. O mais impressionante, entretanto, é que em cerca de 80% delas o diabetes desaparece em dias.

Diversas evidências sugerem que o Y de Roux facilita o aparecimento de bactérias que liberam fatores capazes de interferir com o controle da sensibilidade à insulina, mecanismo defeituoso nos que sofrem da doença.

A visão de que os germes são inimigos a ser combatidos, num mundo cada vez mais higiênico e estéril, pertence ao passado. Precisamos deles para sobreviver tanto quanto eles dependem de nós.

No futuro, manipularemos o compartimento bacteriano de nosso ecossistema, para tratar de enfermidades de forma personalizada. Infelizmente, os iogurtes disponíveis nos supermercados estão longe de cumprir essa tarefa.

Sunday, September 02, 2012