Sunday, April 21, 2013


Crítica da erótica desbotada

Que delícias um príncipe encantado sádico pode reservar ao público feminino de hoje?

ELIANE ROBERT MORAES


RESUMO Até que ponto Cinquenta Tons, de E.L. James (Intrínseca) pertence à linhagem de obras eróticas capazes de desestabilizar o leitor? Ao contrário dos clássicos que inspiraram o sadismo e o masoquismo, a trilogia só reitera valores sexuais contemporâneos e espelha os nossos impasses amorosos e culturais.


O sucesso da trilogia Cinquenta Tons traz questões de fundo que demandam reflexão. Não se trata de discutir se os livros têm ou não algum valor literário. Para confirmar a baixa qualidade do texto, basta ler um ou dois parágrafos. O curioso, porém, é que tal evidência não reduz o fenômeno a mero problema sociológico, como acontece com a maior parte dos best-sellers. O fato de se concentrar na encenação de fantasias sexuais e, mais ainda, de explorar o delicado limiar entre o prazer e a dor, faz desses livros um caso particular, acrescido da novidade de que seu público é formado quase exclusivamente por mulheres.

Lançado em 2011, o "mummy porn", como foi logo batizado, se tornou um fenômeno editorial no ano passado e, ao que tudo indica, promete atravessar 2013 ostentando novos números de tirar o fôlego. São milhões e milhões de leitores, espalhados pelos quatro cantos do mundo, que sustentam a base de uma pirâmide que movimenta milhões e milhões de dólares. Efetivamente, o domínio aqui é o do excesso.

Engana-se, porém, quem associa o excesso das cifras mercadológicas ao excesso sexual que se reconhece como pedra de toque dos grandes títulos do erotismo literário. Nada a ver, portanto, com um romance como História de O (Ediouro), que causou furor ao ser lançado, em 1954, cativando tanto o público quanto a crítica.

Assinado por Pauline Réage, pseudônimo da misteriosa Dominique Aury, o livro escandalizou ao pôr em cena uma heroína que se abandona ao papel de escrava sexual para se precipitar no absoluto de um êxtase que nem a morte consegue deter. Visto por muitos como um texto místico e não raro comparado aos escritos de Santa Teresa d'Ávila, História de O é um exemplo acabado daquela literatura erótica perturbadora, que produz em nós um imperioso deslocamento sensível e mental. Nada a ver, mesmo, com a tosca trilogia de E.L. James, que não tira nada nem ninguém do lugar.

O conto de fadas da mocinha virgem que se apaixona pelo milionário altivo e bonitão repete uma velha fórmula que responde aos anseios femininos de uma paixão impossível e avassaladora. Sob um discreto "décor" de luxo, a ingênua Anastasia se vê capturada pelos encantos do jovem empresário Christian Grey, que lhe retribui o interesse com demonstrações de amor pouco ortodoxas.

É ele quem decide desde os livros que ela, estudante de letras, deve ler, até as maneiras ousadas de como deve "explorar sua sensualidade e seus limites". É também ele a decidir que as práticas necessárias a tal exploração devem ser seguras e consensuais, como manda o figurino, e que a relação de ambos deve ser pautada pelos termos de um contrato, como manda sua condição social. Com hierarquias e regras das mais convencionais, o enredo chega a ser puritano e, não fossem as tais cenas de sexo, seria de perguntar qual a novidade que ele traz.

Acontece que, até agora, a literatura "adulta" de grande público era destinada exclusivamente ao leitor masculino, a exemplo do que sempre ocorreu com revistas pornográficas e outras edições do gênero. Talvez E.L. James seja a primeira escritora de massa que, sem motivações feministas, tenha destinado ao leitorado feminino uma ficção, narrada por uma mulher, em torno do sexo explícito e até mesmo "hardcore".

Vale insistir, pois, que o livro nada tem em comum com tentativas passadas de criar uma pornografia, digamos, "libertária", a começar por aquela voga de publicações focadas na conquista da "liberação sexual" que rendeu títulos populares nos anos 1970, como O Relatório Hite, A Mulher Sensual ou The Joy of Sex. Prova disso é que não há nem sequer uma linha que evoque aquela "sexualidade feminina" reclamada pelas herdeiras de Simone de Beauvoir e muito menos aquela "escrita erótica feminina" exaltada pelas seguidoras de Anaïs Nin.

A bem da verdade, esse diferencial não constitui um problema em si, e a iniciativa seria bem-vinda se implicasse a superação de certas palavras de ordem do feminismo, já bastante gastas. Longe disso, porém, a equação que o romance coloca é de outro naipe.

PODER

Se a grande novidade está no combinado de ingredientes picantes e sentimentais que dá às leitoras de hoje acesso à velha "leitura reservada aos homens", as razões de seu sucesso não se esgotam aí. Nas entrelinhas, Cinquenta Tons sugere também um estranho desejo, que parte das mulheres, de refletir sobre os jogos de poder nas relações amorosas.

No centro da trama está a relação entre o macho dominador e a fêmea submissa. Diversamente dos orgasmos, que são frequentes e múltiplos, o "happy ending" prometido a cada página, e a cada volume, é sempre postergado por causa de um grande segredo que viria a explicar as taras do herói e alçaria enfim os pombinhos à felicidade almejada. Enquanto isso não acontece, o par se abandona às incansáveis cenas eróticas que desfilam, uma a uma, diante do leitor e progridem em paralelo à sujeição da heroína.

Seria demasiado simples ver aí apenas a confirmação da desigualdade entre os sexos. Ao colocar a simbólica repressão feminina a serviço do desejo, a trilogia transfere as tradicionais imagens da submissão para o obscuro plano da fantasia, no qual se revela o tempo forte da personagem e de suas leitoras. Talvez se possa pensar numa nostalgia de certa feminilidade que já não tem lugar no mundo atual, ou então numa curiosidade sobre o papel "passivo" que ficou interditado a um grande contingente de mulheres urbanas nos últimos tempos.

Nada garante, porém, que haja aí uma intenção de volta para trás, pois o devaneio erótico sempre pode representar o negativo das experiências sexuais que essas mesmas mulheres vêm vivendo com seus parceiros. Se assim for, ganha particular sentido o fato de que o sadomasoquismo seja completamente romantizado na trama.

Ora, que delícias um príncipe encantado sádico pode reservar ao público feminino contemporâneo?

Antes de tudo, é de se crer que ele possa prometer um mar de sensações ao qual esse público não deve ser insensível. Mais importante, porém, é o fato de que sua persona ostenta todos os requisitos necessários para engendrar a fantasia de uma entrega total, fusional e sem reservas. Como, então, interpretar a improvável virgindade da heroína, senão por sua deliberação de se guardar para uma experiência desse quilate, sonhando com o dia em que forçosamente se abandonaria às mãos de um homem todo-poderoso?

Escusado dizer que, se as leitoras se identificam com a casta Anastasia, não é por compartilharem de sua condição, mas precisamente porque, nessa condição inverossímil, ela pode lhes oferecer a imagem de uma entrega absoluta cada vez menos provável nas relações amorosas. De outro lado, o herói também se propõe como peça-chave desse imaginário, já que sua impassível figura impõe um desafio de grande porte para a mulher moderna: afinal, conseguir dobrá-lo pode ser um troféu e tanto, seja para provar o infalível "poder feminino", seja para provar o infalível "poder do amor".

Há muita ambiguidade aí e, por certo, ela diz respeito às ambiguidades que envolvem as tramas de amor e de poder entre os sexos na sensibilidade contemporânea. Se já não é mais tão fácil saber "quem domina quem" ou "quem se submete a quem", muito menos é adequar o sonho da entrega amorosa às exigências de um individualismo cada vez mais implacável. O problema dos limites revela-se crucial e não há respostas prontas para a interrogação que fica pairando no ar: até onde se pode ir?

IMPASSES

Até onde ir? - esta é, com efeito, a questão nodal de Cinquenta Tons. Formulada em termos puramente sexuais no desenrolar do enredo, a pergunta torna-se uma metáfora potente dos impasses da vida amorosa nos dias de hoje. Daí que a inquietação da personagem ecoe tão profundamente no espaço da leitura. E isso talvez seja o que há de mais interessante neste livro tão pouco interessante, rendido aos clichês mais óbvios do romantismo pop.

Tome-se, a título de exemplo, uma das cenas finais do primeiro volume, quando a heroína é amarrada a uma cama de quatro colunas e vendada com uma máscara. "Ah, seu toque provoca um estremecimento delicioso. [...] nossa... já estou a ponto de explodir. Por que isso é tão erótico?"

Já algemada, a jovem tem seu corpo percorrido por uma luva de pele à qual se seguem as tiras do açoite, que lhe rendem "uma agonia doce", num crescendo que progride conforme a música ambiente: "O coro recomeça... mais forte, mais forte, e ele me dá uma saraivada de golpes... e gemo e me contorço. Mais uma vez, o coro cessa e tudo fica em silêncio... a não ser minha respiração descontrolada... e meu desejo descontrolado. Por... ah... o que está acontecendo? O que ele vai fazer agora?"

Mais uns parágrafos nessa lenga-lenga e "ele recomeça a se movimentar... saindo e entrando..." e "vai aumentando o ritmo. Acompanhando a intensidade da peça coral com uma precisão infinitesimal - é muito controlado... está totalmente no compasso da música. E eu não consigo suportar mais".

A passagem, aqui bem resumida, ocupa seis páginas do erotismo romântico mais chinfrim, nas quais o frenesi exclamatório só perde para a volúpia das reticências, num festival de repetições e de gerúndios que, por si só, denunciam o valor do novo folhetim.

Em que pese a nota erudita do jovem sádico - ao ensinar sua discípula que a música é "um moteto para quarenta vozes de Thomas Tallis" -, sua escolha de acessórios SM faz jus ao texto, recaindo sobre os produtos mais batidos do mercado sexual, como algemas, máscaras, luvas e chicotes. Tudo trabalha para acomodar Eros aos mais estreitos limites do realismo.

Estranha, pois, que o livro seja às vezes comparado aos clássicos literários do sadismo e do masoquismo - que, diga-se de passagem, jamais se juntam numa só palavra. Ao inconcebível teatro das paixões que a literatura de Sade oferece aos seus leitores, expondo diante deles um erotismo sem freios nem fronteiras, se opõem as desbotadas fantasias desses "tons de cinza", que se rendem não só aos signos mais óbvios do consumismo como também às bagatelas da ideologia do "politicamente correto".

Testemunho disso dá o contrato que o milionário "negocia" com a universitária, cujas cláusulas supõem tanto a frequentação de salões de beleza, a contratação de um personal trainer e a compra de roupas quanto a observação de "procedimentos de segurança" que protegem a jovem contra danos "físicos, mentais, emocionais, espirituais ou outros" (sic). Aqui até mesmo as perversões se submetem a uma orientação "correta", reiterada nas pautas higiênicas (como a interdição de manipular excrementos) e mesmo ecológicas (como a proibição do sexo com animais) que os libertinos sadianos tanto gostam de subverter.

Não pense o leitor que a impossibilidade de aproximar E.L. James a Sade vá conduzi-la diretamente aos braços de Léopold von Sacher-Masoch, também invocado como um dos inspiradores do best-seller. Convém recordar que, se o livro do escritor austríaco se vale igualmente de um contrato entre algoz e vítima, não é jamais para restringir as atividades da dominadora para com seu fiel servo, mas antes para ampliá-las ao infinito.

Ao se dirigir à sua senhora, o protagonista de A Vênus das Peles (Hedra), de 1870 se oferece como o mais servil dos escravos: "Sem qualquer limite, tua propriedade, sem vontade, para que disponhas de mim a teu bel-prazer, e que disso não tenhas o menor arrependimento. Enquanto saboreias a vida em todas as suas nervuras, enquanto desfrutas em opulento luxo da serena felicidade, do amor do Olimpo, eu gostaria de calçar e descalçar seus sapatos". Sem limites nem "procedimentos de segurança", o contrato não exclui nem mesmo a morte do submisso.

De fato, tais comparações nos colocam diante de continentes distintos, um completamente estranho ao outro. Entre o desejo de absoluto que preside a erótica de um Sade ou de um Sacher-Masoch e o desejo de inclusão que orienta o imaginário da tola trilogia não há um só ponto em comum.

Bem adequados à sensibilidade contemporânea, os romances da autora inglesa e seus congêneres jamais criam um mundo sexual autônomo, onde prevalecem os desregramentos da imaginação, mas antes preferem conformar suas fantasias ao que está na ordem do dia. Daí que seu apelo "sadomasoquista" faça eco tanto à parafernália dos "sex shops" quanto ao erotismo radical e previsível dos clubes SM, que são frutos da mesma demanda de inclusão evidenciada no best-seller.

Tudo leva a crer, portanto, que o sucesso dos "soft porn" também responde aos anseios de uma época em que certa ideia de marginalidade perdeu seu poder de fogo e igualmente seu glamour. Cultivado por muitos escritores que se dedicaram à erótica literária - de Jean Genet a Henry Miller, de Bukowski a Roberto Piva -, o desejo de estar à margem da sociedade, de ficar fora do "sistema", parece reunir cada vez menos adeptos.

O marginal, vestido de bom moço, vem cedendo lugar ao excluído e, em vez da transgressão, o que ele reivindica agora é sua inclusão. Desnecessário dizer que, uma vez "incluído", o sexo fica esvaziado da sua capacidade de perturbação, do seu poder de desvio e, sobretudo, da sua vocação subversiva.

O que sobra é pouco: uma sexualidade conformada às exigências da ordem social; um erotismo reduzido às demandas da utilidade. Impossibilitados de recorrer ao absoluto de seus imaginários, sádicos e masoquistas devem se dar as mãos para formar um par e, de quebra, serem felizes para sempre.

Eis a promessa do casal Grey e Anastasia: perfeitamente adaptados ao jogo dos papéis sociais, eles enfim brindam o "sadomasoquismo" com seus porta-vozes ideais. Não por acaso, isso ocorre num momento em que a prática da transgressão vem sendo cada vez mais normalizada pelo mercado.

Nessa economia, como se vê, muita coisa se perde. Para começar, perde-se a possibilidade de contemplar o vazio que fundamenta todo excesso erótico genuíno. A saber, o vazio primordial que está na origem da nossa existência, da nossa imaginação e das nossas fantasias mais singulares, já que não há criação que prescinda de um espaço em branco inaugural.

Nesse sentido, a trilogia de E.L. James pode ser alinhada a um empenho obstinado da indústria cultural para saturar, até a exaustão, esse vazio, alienando-nos do contato com seus perigos, seus horrores e também suas maravilhas. Ao reiterar os apelos sexuais que não cessam de nos assediar, condenando o erotismo à plena visibilidade, a tralha midiática oferece um repertório fechado e pronto de imagens, que funciona como um fast food do sexo. Mas isso ainda não esgota a questão.

Se livros como os de Sade ou de Sacher-Masoch tendem a gerar resistências - e, não raro, desistências -, isso acontece porque, aos olhos de quem os lê, eles parecem insuportáveis. Parecem e efetivamente o são - e por isso mesmo, quando lidos, produzem um deslocamento fundamental em seus leitores. Afinal, só consegue vencer a resistência quem aceita sair da zona de conforto. E isso beira o insuportável quando se trata dessa literatura, que nada tem de palatável e muito menos de "soft".

De fato, os artífices do excesso não douram a pílula: insistem em mostrar o horror como horror, não importa a qualidade de prazer que seus personagens possam tirar dele. Em suma, por mais absurdas que sejam as paixões descritas nesses textos, por mais que elas se associem ao sofrimento, seus autores nunca a esvaziam de uma gravidade essencial.

É precisamente essa gravidade que se perde na pornografia leviana de Cinquenta Tons. E é ela, obviamente, que nunca comparece na platitude dos discursos de seus protagonistas, como a seguinte fala do professoral Mr. Grey: "Há uma linha muito tênue entre prazer e dor, Anastasia. São os dois lados da mesma moeda, e não há um sem o outro. Posso lhe mostrar quão prazerosa pode ser a dor".

Poupemos o leitor do restante da passagem: não é difícil perceber que os lugares-comuns operam aí no sentido de neutralizar a gravidade do enunciado, trivializando-o ao máximo. A alusão aos "dois lados da mesma moeda" confere certa naturalidade aos intercâmbios entre o prazer e a dor, enquanto a "linha tênue" sugere uma leveza no mínimo suspeita. Tudo concorre para simplificar o que não pode, nem deve, ser simplificado.

Nunca é demais lembrar, pois, que a ideia do sofrimento como fonte de prazer sempre pode sensibilizar espíritos menos bem-intencionados que o mocinho sádico e a ingênua masoquista do best-seller. É de temer, inclusive, que a simplificação desse discurso acabe caindo em mãos erradas e sirva a interesses escusos, ainda mais num mundo em que mulheres são espancadas em casa, e gays nas ruas. Afinal, o que deixa de inquietar já está a meio caminho de se tornar "natural". E o que deixa de ter gravidade está apenas a um passo de se banalizar.

Serão esses os efeitos colaterais da inofensiva leitura da nova pornografia romântica? Talvez. E talvez, no fundo, a expressão "mummy porn" queira realmente dizer que os perversos da hora estão pedindo o colo da mamãe, mas sem jamais colocar em questão o jugo do papai. Resta saber o que tudo isso tem a ver com aquela erótica militarizada que, poucos anos atrás, fez a festa de um bando de rapazes e mocinhas que se entediava nos sombrios corredores de Abu Ghraib.

Tuesday, April 16, 2013

Tristeza não tem fim, Feliciano também não.

http://www.caetanoveloso.com.br/blog_post.php?post_id=1397

Caetano começa seu artigo com

"nem estou acreditando que volto ao assunto do pastor/deputado/presidente da CDHM".

Parece que temos aí um problema, esse de não querer acreditar na existência do Marcos Feliciano. Querer transformá-lo num erro epistemológico que, tão logo submetido aos rigores da crítica, da dialética, da lógica,  dissipar-se-á, finalmente esclarecido.

Marcos Feliciano que 'não nos representa' foi eleito com 211 mil votos. O partido ao qual está ligado prevê que sua votação triplique na próxima eleição. Ele é real. Representa pessoas reais. Que ao contrário da classe média letrada dispõem de uma representação de si mesmas atualizada. Representação no sentido de imagem de si. A classe média letrada tenta "pensar" o pastor na chave da invisibilidade reservada aos garis. Pretende manter o diferente no lugar daquele que não tem existência. O pastor e seus representados estão se negando a permanecer na invisibilidade. "O que não se vê tá aí como tudo que há" dizia a letra do Djavan. Obscurantista? Fanático? Pero que las hay, las hay. E o truque do Diabo sempre foi o de fazer a gente pensar que ele não existe. Quer brigar? Conhece bem teu inimigo.

Sunday, April 14, 2013



OMBUDSMAN

SUZANA SINGER - ombudsman@uol.com.br

A caixa-preta das prisões

21 anos depois do massacre, acesso da imprensa aos detentos ficou mais difícil; hoje não se sabe o que acontece nas cadeias

Era um sábado, dia de eleição. Estava de plantão no jornal, mas sem estresse. Editora de Cotidiano, eu acompanhava de longe a movimentação em política, que cobria a escolha do novo prefeito de São Paulo (vai dar Maluf e Suplicy no segundo turno?). Eram tempos agitados: em Brasília, Itamar Franco assumia a Presidência depois do impeachment de Collor.

O jornal daquele dia, 3 de outubro de 1992, trazia um título pequeno na Primeira Página informando que, na véspera, "pelo menos" oito tinham morrido em uma rebelião na Casa de Detenção. A estimativa vinha dos hospitais, já que não havia dados oficiais. A única fotografia era a de um policial ferido.

No fim da tarde, quando as urnas estavam praticamente fechadas, o saldo verdadeiro daquilo que ficou conhecido como o "massacre do Carandiru" apareceu: 111 mortos.

De repente, a notícia do dia estava na minha editoria, a eleição municipal e a troca de governo perdiam importância diante do tamanho da matança. Com pouco tempo para a apuração, o que foi possível publicar no domingo foi um relato da ação da Polícia Militar, a carta de um preso que negava que eles tivessem arma de fogo e um destaque para o fato de o Estado ter omitido o número de vítimas para não prejudicar o candidato do PMDB.

Mesmo sob uma saraivada de críticas, o governo estadual continuou retendo as informações, o que dava força aos boatos. Três dias depois da invasão, a manchete da Folha dizia que o saldo de vítimas poderia ser ainda maior. Os presos falavam em 280 corpos. Resposta do secretário da Segurança: "O aumento no número de mortos é plausível".

Foi uma cobertura difícil, mas que, aos poucos, desconstruiu a versão oficial, de que os policiais tinham revidado os tiros dos detentos. Fotografias obtidas por Marcelo Godoy, na época repórter da Folha da Tarde, mostravam corpos nus amontoados, indício de que os presos tinham sido mortos depois de rendidos. Nas imagens feitas por um policial, aparecem também sobreviventes sendo obrigados a carregar corpos de companheiros - com medo da Aids, a polícia não tocava nos mortos.

A fotógrafa Marlene Bergamo, que estava no Notícias Populares, fingiu ser parente de preso e entrou com uma câmera escondida no IML, registrando a fileira interminável de caixões. Aos poucos, foram surgindo relatos de presos contando histórias de fuzilamentos a sangue-frio e de ataques de cães a feridos.

A imprensa e os intelectuais criticavam duramente a ação, enquanto a população se dividia. Mais da metade (53%) condenava o massacre, mas 29% apoiavam a polícia, o que era muito diante da tragédia recente. Segundo o Datafolha, esse percentual subiu hoje para 36%.

Como resposta ao massacre, o governo estadual criou uma secretaria especial para assuntos penitenciários e parecia que a vida atrás das grades entraria de vez na pauta da imprensa.

Vinte anos depois, os presídios, dominados agora pelo PCC (Primeiro Comando da Capital), viraram uma caixa-preta. O acesso é dificílimo. Antes da ação no Carandiru, era possível obter rapidamente, com o diretor da unidade prisional, autorização para conversar com um criminoso. Hoje, é preciso passar por um juiz, pelo diretor da cadeia e a resposta é quase sempre "não". A justificativa é resguardar a segurança do próprio jornalista.

A imprensa, por sua vez, se acomodou e se desinteressou. Hoje não se sabe o que acontece nas prisões de São Paulo, onde vivem mais de 200 mil pessoas.

Como o crime organizado se impõe e como espalha sua influência para fora dos muros? Qual o poder real do Estado nas cadeias? O que os presos aprendem ali? Não há respostas no noticiário, que se atém às rebeliões (mais raras nos últimos anos), às discussões sobre como coibir o uso de celulares e às denúncias de más condições, que partem quase sempre de advogados, ONGs ou do Ministério Público.

A conclusão da Veja em 1992 é, infelizmente, muito atual. "Cadeia é assim mesmo: só desperta a sensibilidade dos cidadãos honestos quando a animalidade que nela existe ganha uma dimensão formidável."



NILTON BONDER

Autoviolência

A palavra automóvel, uma viatura com mobilidade própria, pode ser enganosa. Tem autonomia de potência, mas não tem, pelo menos até hoje, autonomia de condução.

Quem conduz um automóvel é uma consciência. O que talvez seja mais reflexivo nesse prefixo (auto) seja justamente a característica maior da consciência: tudo que por ela é gerido regressa a ela mesma, num efeito bumerangue, impactando e determinando quem ela é.

O carro engana fazendo parecer que é uma entidade independente, detentora de uma placa própria, quando sua identidade sou eu e meu nome. Descobrimos isso quando a multa vem personalizada, momento de susto e de breve recusa em assumir-se a autoria.

O carro faz parecer que existia outro personagem que não o próprio condutor. Porém a lataria não pode ocultar o personagem e o Renavam não pode esconder a habilitação. O insulfilm não tem como mascarar o rosto e o deslocamento não tem como deixar para trás o que foi feito.

Porque fechar outro carro é como empurrar alguém no meio da rua. Porque buzinar é como chegar e gritar no ouvido do outro. Porque acelerar em direção a um pedestre é como levantar a mão em ameaça ao próximo. Porque estacionar trancando o outro é produzir um cárcere privado. Porque ultrapassar perigosamente é como sair armado.

Porque matar no trânsito, não nos enganemos, para a consciência que conhece as nossas imprudências, é sempre doloso, sempre com a intenção de matar. O auto de automóvel nos engana a todos e a maioria é pior como motorista do que como cidadão. Tem mais pecados registrados nas fiscalizações eletrônicas, e mais ainda quando elas não estão por perto, do que na vida de pedestre.

Sinal de que no carro somos outra pessoa, mais perigosa. Sinal de que nossa consciência assume que tem menos responsabilidade dentro do que fora dessa entidade.

O condutor é uma consciência e uma consciência é um bicho vestido. As sensações de anonimato e de que o pequeno espaço de nossa carroceria é privado fazem o bicho se despir como ele não faz do lado de fora. E o que vemos pela cidade são respeitáveis senhores e senhoras como bichos atrelados a um volante.

Dão vazão a violências que fora, vestidos, não dariam. Além das agressões e abusos que produzem, saem dos seus carros piores pessoas diante de suas próprias consciências. Seguem a rotina como se nada tivesse acontecido, mas trouxeram para dentro de sua casa, de sua alma, marcas de pneus.

Certa vez, um rabino estava numa carroça quando começou a subida de uma ladeira. Ele não hesitou em saltar da carroça e se pôs a andar ao lado do cavalo. O cocheiro questionou sua atitude, ao que ele explicou que na subida ficava difícil para o animal. O cocheiro reagiu: "Mas é apenas um animal... Então o senhor, um ser humano, é quem tem que fazer força e ficar cansado?". O rabino respondeu: "Justamente por isso, como sou um ser humano, não quero me ver no futuro num litígio com um cavalo!".

O condutor é aquele que enxerga as interações e cuida não só para fazer o seu percurso, mas também para não se ver no futuro em litígios com animais, seja na vida real ou em sua própria consciência.

NILTON BONDER, 54, rabino da Congregação Judaica do Brasil no Rio de Janeiro, é autor de A Alma Imoral, entre outros

Friday, April 12, 2013


"O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam: “Se eu fosse você”. A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta que ele termina. Não aprendi isso nos livros. Aprendi prestando atenção". *

Rubem Alves é um picareta. Ele se apresenta como psicanalista, educador, teólogo e escritor. Escreve é livros de auto-ajuda. Auto-ajuda é a versão limpinha do conceito "eu dou o que elas gostam" que a pornochanchada brasileira eternizou em título de longa metragem. Aliás, a expressão de calma - calculadamente sedutora - na foto que circula pelas redes sociais me causa uma inevitável impressão... pornográfica, como diria o James Joyce.

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