Ódio no corpo
ANNA VERONICA MAUTNER
E o corpo se faz carne, hoje objeto e alvo do mal entre nós. Na medida em que o corpo se torna carne, ele perde o caráter de sagrado. Ninguém respeita a carne. A troco do que afirmo isso?
Quero abordar de uma certa forma, para tentar me fazer entender, o tema da violência, mas violência enquanto desrespeito à estrutura corporal humana.
Cada dia mais vemos notícias sobre lutas nas quais corpos são arrebentados e esquartejados. Ossos são quebrados, músculos são estraçalhados... Há sangue por toda parte.
Esses embates corpo a corpo guardam pouca semelhança com ataques que envolvem instrumentos ou armas. Uma espada corta em linha reta, não estraçalha. Uma bala atravessa, destrói internamente.
A notícia de um jovem que levou com ele um braço arrancado em um desastre e jogou esse pedaço de corpo no rio é avassaladora. Um braço fora do corpo é uma visão draconiana.
Morrer, matar, tirar a vida - arrisco-me a dizer - é diferente de desmanchar milhões de anos da evolução que fez o corpo humano chegar à sua forma atual. Desqualificar a forma é destruir essa transformação.
A luta nas trincheiras na Primeira Guerra Mundial também incluía desfigurações. Desfigurar inimigos um a um, face a face, é a suprema desumanidade. Quando caiu a bomba atômica, o mundo silenciou de susto. Pessoas em todos os continentes pararam. Também a energia nuclear emitida pela bomba, quando não matou, desfigurou.
Durante anos vimos fotografias dos sobreviventes deformados pela bomba atômica, mesmo que eles tivessem estado a muitos quilômetros da explosão.
Atacar a obra da evolução da espécie, estraçalhar, desfigurar, esquartejar não é contra um: é contra todos. Cada corpo é uma obra final, atual, de hoje, produzida pela natureza, passo a passo, de mutação em mutação, através dos tempos.
O ódio deforma.
Já o amor admira, adere, toca, adora a obra. O amor se dá sempre entre corpos que a natureza modelou.
Cuidado, pois, com o outro corpo à sua frente! Que nem todo o ódio do mundo seja suficiente para desmanchar o que os milênios constituíram.
Nos velórios, preservamos inteiro até o homem morto, para que seja visto em sua estrutura normal. Ele não tem mais vida, mas mantém a forma. É um homem - morto.
Porém, um homem.
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de Cotidiano nas Entrelinhas (ed. Ágora) e Educação ou o quê? (Summus)