O Preconceito Contra a Política
Qualquer discurso sobre a política em nossa época deve começar pelos preconceitos que todos nós, que não somos políticos profissionais, temos contra a política. Nossos preconceitos comuns são, eles próprios, políticos em sentido amplo. Eles não provêm da arrogância dos ilustrados nem do cinismo dos que viram demais e compreenderam de menos. Uma vez que brotam no nosso próprio pensamento, não podemos ignorá-los; e, dado que se referem a realidades inegáveis e refletem fielmente a nossa situação presente precisamente em seus aspectos políticos, não podemos silenciá-los com argumentos. Tais preconceitos não são, porém, juízos. Eles indicam que nos deparamos com uma situação na qual não sabemos, pelo menos não ainda, conduzir-nos politicamente. O perigo é a política vir a desaparecer inteiramente do mundo. Os preconceitos invadem nosso pensamento: jogam o bebê fora junto com a água do banho, confundem a política com aquilo que levaria ao seu próprio fim e apresentam essa catástrofe como algo que é inerente à natureza das coisas e, portanto, inevitável.
Por trás dos nossos preconceitos atuais contra a política estão a esperança e o medo: o medo de que a humanidade se auto-destrua por meio da política e dos meios de força que tem hoje à sua disposição; e a esperança, ligada a esse medo, de que a humanidade recobre a razão e livre o mundo não de si própria, mas da política. Um meio de fazê-lo seria a criação de um governo mundial que transformasse o Estado numa máquina administrativa, resolvesse burocraticamente os conflitos políticos e substituísse os exércitos por forças policiais. Essa esperança é, evidentemente, pura utopia enquanto a política for definida no sentido usual, ou seja, como relação entre dominadores e dominados. Tal ponto de vista levaria não à abolição da política, mas a um despotismo de proporções colossais no qual o abismo que separa os governantes dos governados seria gigantesco a ponto de tornar impossível qualquer espécie de rebelião, para não dizer qualquer forma de controle dos governados pelos governantes. O fato de nenhum indivíduo - nenhum déspota, per se - poder ser identificado nesse governo mundial não mudaria de forma alguma o seu caráter despótico. O governo burocrático, o governo anônimo do burocrata, não é menos despótico porque "ninguém" o exerce. Ao contrário, é ainda mais assustador porque não se pode dirigir a palavra a esse "ninguém" nem reivindicar o que quer que seja.
Mas, se a política significa um domínio global em que as pessoas aparecem antes de tudo como seres atuantes que conferem aos assuntos humanos uma permanência que de outra forma não teriam, então essa esperança não é nem um pouco utópica. Há inúmeras situações na história, embora jamais numa escala global, em que a participação ativa das pessoas foi alijada - na forma de tiranias hoje aparentemente obsoletas que soltam as rédeas da vontade de um único homem, ou do totalitarismo moderno, em que os seres humanos são escravizados a serviço de pretensas "forças históricas" e processos superiores e impessoais. A natureza dessa forma de dominação, que num sentido profundo é verdadeiramente apolítica, evidencia-se precisamente na dinâmica que ela mesma gera e que lhe é peculiar; uma dinâmica em que tudo e todos que ontem eram considerados "grandes" podem e devem - para que o movimento conserve o seu impulso - ser hoje relegados ao esquecimento. Não é alívio suficiente para as nossas preocupações sermos compelidos a observar como, nas democracias de massa, por um lado, uma impotência similar se espalha por assim dizer espontaneamente e sem necessidade de terror e, por outro, um processo análogo, auto-alimentado, de consumo e esquecimento cria raízes, ainda que no mundo livre, onde não há terror, tais fenômenos se limitem às esferas da economia e da política no sentido restrito da palavra.
Mas os preconceitos contra a política - a ideia de que a política interna é uma teia de mentiras e ardis tecida por interesses escusos e a política externa um pêndulo a oscilar entre a propaganda insulsa e o exercício da força bruta - remonta a uma época muito anterior à invenção dos artefatos capazes de destruir toda a vida orgânica do planeta. No que tange à política interna, esses preconceitos são pelo menos tão antigos quanto a democracia partidária - isto é, pouco mais de um século -, que pela primeira vez na história moderna pretendeu representar o povo, algo em que o próprio povo nunca acreditou. A origem da política externa pode ser situada nas primeiras décadas da expansão imperialista da virada do século, quando o Estado nacional começou, não em prol da nação, mas dos interesses econômicos nacionais, a estender o domínio europeu por todo o globo. Mas aquilo que hoje dá ao amplo preconceito contra a política a sua força real - a fuga na impotência, o desejo desesperado de exonerar-se da capacidade de agir - era naqueles dias preconceito e privilégio de uma pequena classe que acreditava, nas palavras de Lorde Acton, que "o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente". Ninguém, talvez, mais do que Nietzsche - em sua tentativa de reabilitar o poder - reconheceu mais claramente que essa condenação do poder refletia claramente os anseios ainda inarticulados das massas, embora também ele, bem ao espírito da época, identificasse, ou confundisse, o poder - que indivíduo algum é capaz de possuir, dado que só pode surgir da ação cooperativa de muitos - com o uso da força, cujos meios um indivíduo pode tomar e controlar.
Hannah Arendt - II - O Preconceito Contra a Política e O Que É, de Fato, a Política Hoje. Introdução na Política - A Promessa da Política