Saturday, July 16, 2022

A dor da gente não sai no jornal


Qualquer pessoa que tenha amor pela música popular está familiarizada com a figura do zé-ninguém, o ser humano corriqueiro, quase sempre sem nome, que protagoniza as letras das inúmeras composições que há quase um século e meio povoam o imaginário coletivo mundo afora.

O leitor atento também saberá localizar a presença do 'homem comum' na literatura, de Balzac a Joyce, de Machado a Bandeira e a Nelson Rodrigues. Mais ainda, talvez, no cinema.

A 'Joana-de-Tal' do samba, que "tentou contra a existência num humilde barracão" e cuja dor o jornal não se mostra capaz de dar a público, configura-se, assim, como ícone de um tempo voltado para as chamadas minudências, as insignificâncias e tudo que é mais banal.

O 'jornal', a 'Joana', as notícias que saem e as que deixam de sair, fazem parte também de um período histórico em que o 'desvelamento' desfruta de grande apreço. Um tempo das pesquisas e das metodologias em busca dos segredos 'da matéria'.

Esse espírito de época que dá valor ao comum e à banalidade, foi capturado com clareza pelo filósofo Jacques Rancière, numa pequena passagem de seu A Partilha do Sensível, livrinho publicado originalmente na França na virada do milênio.

Diz ele, na página 50 da edição brasileira, traduzida por Mônica Costa Netto:

(...) "o banal torna-se belo como rastro do verdadeiro. E ele se torna rastro do verdadeiro se o arrancarmos de sua evidência para dele fazer um hieróglifo, uma figura mitológica ou fantasmagórica. Essa dimensão fantasmagórica do verdadeiro (...) teve um papel essencial na constituição do paradigma crítico das ciências humanas e sociais. A teoria marxista do fetichismo é seu testemunho mais fulgurante: é preciso extirpar a mercadoria de sua aparência trivial, transformá-la em objeto fantasmagórico, para que nela seja lida a expressão das contradições de uma sociedade".