Tuesday, November 05, 2024

O Beatle Ressentido

Em 1954, aos 11 anos, George ganhou uma bolsa de estudos para o Liverpool Institute High School for Boys (...).

O Instituto mostrava o mesmo requinte de escolas públicas como Eton ou Harrow: uniforme de blazers pretos e verdes, gravatas e chapéus, 'mestres' em vez de professores, sempre em trajes acadêmicos, com licença para administrar, em público, castigos com a palmatória.

(...) Uma ideologia em prol dos serviços públicos refletiu-se no seu rol de ex-alunos ilustres na política, ciência e academia e no seu lema latino "Non nobis solum sed toti mundo nati": "Nascemos não só para nós mesmos, mas para o mundo inteiro". E George — que ajudaria a emprestar um novo significado àquelas palavras — detestou o lugar desde o início.

Iain Taylor, egresso da mesma escola primária de George, foi colocado na turma anterior à dele e logo percebeu uma mudança para pior. "Sempre teve uma personalidade despreocupada, mas agora andava quieto e ressentido".

O fato de ter ganhado a bolsa mostrava sua inteligência e perspicácia, e com sua memória excelente não tinha problema para ser aprovado nos exames. mas não suportava qualquer forma de autoridade ou cerceamento. Quase por uma questão de princípios, tirava notas medíocres em todas as matérias, exceto Artes. Mesmo na época das entrevistas para The Beatles Anthology (1994), com muitos outros velhos ressentimentos já amainados, os comentários dele sobre o Instituto continuavam mordazes: "A escuridão começa aí", revela. [imita ordens do professor] 'Venha cá, levante-se, cale a boca, sente-se'... A pior época de minha vida".

(...) A rebeldia nele nunca foi escancarada, mas sempre era visto de boas com gazeteiros e vagabundos na ala isolada do playground, o 'Cantinho dos Fumantes'. Não tinha a idade mínima para ser um fumante dentro da lei, mas logo começou a fumar cigarros sem filtro, dia após dia, um cigarro atrás do outro, a ponto da nicotina manchar seus dedos de um amarelo brilhante. "Andou fumando de novo, Harrison?", foi o comentário sarcástico de um professor, certo dia, após o recreio. "Seus dedos mais parecem faróis Belisha", referindo-se aos faróis para pedestres e suas inconfundíveis lâmpadas amarelas.

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1. Cuida bem dele porque ele vai ser especial. George Harrison: o Beatle Relutante, Parte 1. © Philip Norman, 2023. Tradução de Henrique Guerra. Editora Belas Letras, 2024.

Imagem: Belisha Beacon, c1951. © Shirley Markham.

Saturday, November 02, 2024

O Beatle Relutante

Harry Kelly & George Harrison

As casas modestas em que Paul McCartney e John Lennon passaram a infância nos subúrbios de Liverpool foram tombadas pelo Patrimônio Histórico da Grã-Bretanha.

"Essa honraria não foi concedida à humilde residência em que George Harrison nasceu, a poucos quilômetros dos lares de Lennon e McCartney. A casa da rua Arnold Grove, número 12, continua sendo uma propriedade privada e, de modo inexplicável, sem sequer uma placa comemorativa. É um monumento sem identificação; um santuário sem um santo com franja à Beatles; apesar disso, multidões de fãs de todo o mundo peregrinam até o local para, ali mesmo na calçada, fazer uma veneração remota".

Começando a ler a biografia George Harrison: o Beatle Relutante escrita pelo especialista em Beatles Philip Norman. A tradução, excelente, é assinada por Henrique Guerra e por um 'revisor técnico', Gilvan Moura.

Os parágrafos iniciais do livro falando sobre o destino daquelas três casas funcionam como um resumo, ou síntese das imagens de George, Paul e John para a posteridade (leia-se 'hoje em dia'). George é sempre o 'terceiro excluído', apesar da veneração que lhe dedicam milhões de pessoas ao redor do mundo.

Here Comes the Sun tem 1.444.358.736 visualizações no Spotify, a música dos Beatles mais tocada nos serviços de streaming globais.

O 'relutante' do título diz respeito a algo que todo mundo sabe sobre George. Ele é o primeiro beatle a se declarar infeliz com a condição de super astro. E, é provável, dos quatro, o cara que mais renegou a história da banda. Segundo se sabe, George esteve de mau humor a maior parte do tempo em que o grupo existiu, variando apenas o grau de mau humor, ou de má vontade.

Na biografia, Norman afirma que a característica irritadiça acompanhou George a vida inteira, piorando, curiosamente, depois que ele passou a praticar meditação. Nada disso o impediu de viver uma vida repleta de amores, interesses, amizades, parcerias, aventuras, diversão e tudo mais que a fama e a fortuna possibilitam aos poucos escolhidos pelo destino para tê-las, sem perdê-las.

Em todo caso, o adjetivo 'relutante' não está no título por acaso.

Estou apenas no começo do livro e já sei que vou avançar devagar, misturando a leitura sobre George com as oitocentas outras coisas a fazer no dia a dia. Tenho minhas próprias hipóteses sobre a pessoa e sobre o músico Harrison. Mas só poderei decidir se elas se confirmam, ou se valem alguma coisa, depois de lido o livro.

Para ilustrar esse post, uma daquelas preciosidades que qualquer biografia sempre traz: Rock Island Line foi o disco que despertou em George a vontade de fazer música. Na versão do norte-americano Lonnie Donegan, Rock Island Line, composta pelo blues man Lead Belly tornou-se um skiffle, estilo que, diz Philip Norman, "oferecia aos adolescentes britânicos tudo o que há de mais romântico nos EUA — trens de carga, gangues, Nova Orleans — com uma batida frenética tão inebriante quanto a do rock'n roll, mas livre de tumulto e vandalismo" (as sessões do filme Rock Around the Clock com Bill Haley e seus Cometas acabavam inevitavelmente em quebra-quebra e os discos de Elvis eram proibidos de tocar na BBC).