Sunday, November 24, 2024

Poema da Gare de Astapovo

Mário Quintana

O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua…
Sentou-se… e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo tão sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta…)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu…
Ele fugiu de casa…
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade…
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!

Gare de Astapovo, atual estação Leon Tolstoi, em 2010


Sunday, November 17, 2024

Síndrome de Coringa

Síndrome de Coringa leva homens de vida pacata ao terrorismo de direita

Jessé Souza*

Colaboração para o UOL 16/11/2024

No meu livro, recém-lançado, sobre 'o pobre de direita', fiz uma introdução usando a mesma expressão que está no título deste artigo. A arte muitas vezes ajuda a ciência e prefigura as características essenciais de uma época histórica. Para mim, o Coringa representado pelo grande Joaquin Phoenix, no filme de 2019, não seria, portanto, um ponto fora da curva. Ao contrário, seria a representação perfeita do trabalhador precarizado, empobrecido e humilhado de nossos tempos.

Quando o terrorista bolsonarista em Brasília explodiu uma bomba em si mesmo, embora o alvo fosse o Supremo e Alexandre de Moraes, vestido de coringa, muitos mencionaram uma capacidade mágica e preditiva do texto do livro. Infelizmente não tenho bola de cristal, mas o estudo cuidadoso e o trabalho empírico de adentrar ao mundo do trabalhador humilhado de nossos tempos me fez, quero crer, compreender as estruturas profundas do que está em jogo aqui.

A característica mais essencial para a existência dos coringas contemporâneos é a sua desorientação. No caso brasileiro, é um trabalhador que a partir do golpe de 2016 empobrece visivelmente. O aumento real dos salários em até 70% na era Lula, que garantia uma dieta mais saudável, a possibilidade de mandar o filho a uma escola particular e a construção racional de um futuro possível, voltou a ser apropriado pelo rentismo improdutivo da Faria Lima — aliás, este foi um dos motivos principais do golpe —, empobrecendo a massa de trabalhadores que se torna cada mais precária e explorada. No entanto, ninguém jamais explicou para ele que seu maior inimigo é a sanha do saque financeiro de toda a população por uma meia dúzia de especuladores.

Como essa raiva não pode ser canalizada contra a elite que o saqueia, ele tem então duas alternativas. A primeira é canalizar a raiva contra si mesmo, afinal ele, como todo pobre, acredita na meritocracia, e passa a se ver como fracassado — o que o levará a depressão ou ao alcoolismo, as duas doenças endêmicas do trabalhador de hoje. A segunda, que é para onde tanto a extrema direita quanto a pregação evangélica convergem, é canalizar a raiva contra grupos já previamente estigmatizados e ainda mais frágeis do que ele.

Muitos passam a achar que é o nordestino preguiçoso do Bolsa Família quem roubou seus parcos recursos. Ou ainda o negro construído como bandido. Ou ainda o falso moralismo da corrupção seletiva propagado por todas as mídias que identifica a 'roubalheira do PT' como a causa. Não por acaso, o racismo esta por trás de todas essas opções por meio de máscaras convenientes: o nordestino, cujo povo é 80% mestiço ou preto, o bandido construído como o negro e o suposto povo corrupto eleitor de corruptos, de modo a desmoralizar o voto e a participação popular da maioria mestiça, negra e pobre.

A pregação evangélica e a extrema direita se tornam a boia de salvação moral do 'pobre remediado', àquele que ganha entre dois e cinco salários mínimos e que foi o segmento social suporte do bolsonarismo em todas as eleições. É o terreno social do branco pobre do Sul e de São Paulo e do negro evangélico do resto do país. A pregação evangélica serve para defini-lo como o 'homem de bem' contra o pobre transformado em delinquente. Daí apoio à violência policial contra pretos e pobres. Ao criar a distinção entre o pobre honesto e pobre delinquente — que pode ser o bandido, o gay, e até a mulher —, a pregação evangélica possibilita que ele canalize seu ódio não mais contra si mesmo, mas, agora, contra o segmento mais pobre dos que ganham até dois salários mínimos, além das vítimas do machismo e da homofobia.

Ao garantir autoestima para o trabalhador humilhado, ainda que às custas do maior sofrimento dos grupos estigmatizados, tanto a pregação evangélica quanto a extrema direita passam a controlar a alma desse público. Autoestima e algum respeito e reconhecimento social são, afinal, as necessidades mais prementes de todos os seres humanos.

A extrema direita, no entanto, vai ainda mais além e cria toda a espécie de espantalho para representar o 'sistema', desde que nunca se nomeiem os reais algozes. Esses espantalhos são intercambiáveis. Alexandre de Moraes e o Supremo Tribunal Federal são, no entanto, percebidos como os símbolos da elite de poder que causa a opressão. Do mesmo modo que a pregação evangélica, a extrema direita fornece, desse modo, um propósito na vida e a ilusão de se estar participando da vida política para alguém que sempre se sentiu alijado e sem importância. E isso não é pouco para quem é humilhado.

O nosso Coringa de vida medíocre acreditava ser a vanguarda da luta política. Para quem sempre teve uma vida obscura, transformar a morte em um ato heroico é de uma sedução irresistível. Redime uma vida toda passada nas sombras e na desimportância.

* Jessé Souza é sociólogo, professor da Universidade Federal do ABC e autor dos livros A Elite do Atraso: da Escravidão a Bolsonaro (2019) e O Pobre de Direita: a Vingança dos Bastardos (2024), entre outros.

Friday, November 08, 2024

Quem são os evangélicos brancos, os 'lindos cristãos' que impulsionaram vitória de Donald Trump?

por: Anna Virginia Balloussier

"Como Jesus votaria?" A duas semanas da eleição que decidiria o 47º presidente dos Estados Unidos, o pastor Charles Stock levantou essa questão na Life Center, igreja que fundou na Pensilvânia. Melhor seria, segundo ele, optar por "um líder imperfeito que faz coisas boas" do que "sofrer sob o comando dos perversos Acabe e Jezabel".

O casal aparece na Bíblia como modelo anticristão, farto em idolatria, fraqueza e crueldade. Jezabel, a pior dos dois, morreria tal qual preconizado pelo profeta Elias, com seu cadáver devorado por cachorros.

Não é difícil inferir de quem Stock estava falando. O líder com defeitos seria o republicano Donald Trump, com acusações judiciais que incluem pagar para silenciar uma estrela pornô com quem teve um caso extraconjugal. Já a democrata Kamala Harris encarnaria a Jezabel do século 21, alguém que poria em risco valores caros ao conservador americano, como aborto e casamento homoafetivo.

Kamala perdeu, Trump ganhou, e o resto é história para um bloco eleitoral que se alinha ao empresário por três pleitos consecutivos. São os chamados evangélicos brancos. Stock e sua Life Center fazem parte desse grupo, que mostra um engajamento eleitoral maior do que a média. Isso é ouro num país onde o voto não é obrigatório, e vencer uma eleição passa também por convencer alguém a sair de casa para votar.

Segundo o Public Religion Research Institute, esse quinhão evangélico não chega a 15% da população, mas pode representar um em cada quatro eleitores. Cerca de 80% dessa turma votam em Trump.

Raimundo César Barreto Jr., professor de cristianismo global no Seminário Teológico de Princeton, lembra que a divisão evangélica nos EUA não espelha a brasileira. Na América Latina, o termo evangélico é tomado como sinônimo de protestante. Na terra de Trump, o evangelicalismo é entendido como um ramo do movimento religioso iniciado em 1517 com a Reforma Protestante.

As igrejas brancas operam numa frequência própria dentro do grupo, predispostas "às questões raciais [pró-branco] e patriarcais, a ideia de uma família tradicional com o homem sendo chefe da família, com uma posição subalterna da mulher", afirma Barreto Júnior.

O apoio a Trump em outros galhos protestantes, como denominações de maioria negra ou latina, é bem mais bambo, embora haja terreno para ser conquistado ali. "Entram questões que ultrapassam o debate racial. Ele é o strongman, o líder forte, macho, que tenta projetar o domínio dessa masculinidade que tem apelo para homens negros, hispânicos e brancos nos EUA."

O republicano não desperdiçou oportunidades para tonificar laços afetivos com a direita cristã. Em julho, convocou seus "lindos cristãos" a saírem para votar "só desta vez".

"Quer saber? Mais quatro anos e tudo será resolvido, tudo ficará bem. Vocês não terão mais que votar, meus lindos cristãos", disse, sem explicar o que quis dizer com não haver mais necessidade de ir às urnas no futuro. A fala foi mal digerida por quem o vê como uma ameaça à democracia, sobretudo após seus entusiastas liderarem o atentado golpista do 6 de janeiro de 2021.

Em The Kingdom, the Power and the Glory (o reino, o poder e a glória), Tim Alberta, um jornalista que cresceu em lar evangélico, analisa a aliança entre esses religiosos e o trumpismo. Cita o incômodo de pastores com o "conservadorismo sem dentes", sem coragem de partir para cima, e o pendor para abraçar fake news como um culto satânico democrata que canibaliza crianças.

Alberta também fala num medo difuso que contamina muitos desses evangélicos, como se sua identidade religiosa estivesse a perigo num país cada vez mais plural e secularizado.

Em 2017, primeiro ano de Trump na Presidência, americanos responderam ao Public Religion Research Institute sobre qual religião enfrentava mais discriminação. "O público em geral era duas vezes mais propenso a mencionar muçulmanos", diz o autor. "Apenas um grupo discordou dessa visão: os evangélicos brancos." Cristãos, para esses dissidentes, eram o alvo mais visado.

Um pastor ex-trumpista lhe soprou então a reflexão: "Quando uma pessoa se convence de que está sitiada, que os inimigos estão vindo atrás dela e querem destruir seu modo de vida, o que a impedirá de se radicalizar?".

O presidente eleito alimenta essa atmosfera de pânico. Em 2023, chegou a propor uma força-tarefa para combater a "perseguição contra cristãos na América".

Trump, um presbiteriano que nunca deu sinais de praticar intensamente sua fé, ganhou pontos ao indicar juízes benquistos pela direita religiosa na Suprema Corte americana. Só assim para Roevs. Wade, decisão de 1973 que garantia o direito constitucional ao aborto, cair dois anos atrás. Espera-se que mais coelhos saiam dessa cartola conservadora.

Também soube explorar o atentado que por pouco não lhe custou a vida, em julho. Passou a dizer que Deus o poupou por um motivo. A narrativa do escolhido deu certo.

Democratas saem em desvantagem nesse eleitorado porque, em geral, "sentem-se desconfortáveis ao falar sobre questões de fé", afirma o historiador da religião Randall Balmer, da Dartmouth College. "Kamala discorreu sobre sua educação multirreligiosa, e Tim Walz [seu vice], sobre a filiação luterana, mas não fez muita diferença. O abismo religioso entre os dois partidos é real."

Balmer diz se perguntar como pode "uma direita cristã que se vangloria de defender valores familiares" endossar "um predador sexual confesso, casado três vezes, alguém que não consegue nem fingir alfabetização religiosa".

"A melhor explicação que posso oferecer é que os evangélicos brancos veem essa relação como transacional: apoiarão Trump, que por sua vez lhes dará o que querem em termos de nomeações de novos juízes." As batalhas no Judiciário, afinal, são cruciais para fazer valer a agenda conservadora.

Já há inclusive quem proponha uma adaptação do Maga (sigla em inglês para "faça a América grandiosa novamente"). O slogan trumpista por excelência viraria Maca: Make America Christian Again. Faça a América ser cristã de novo.

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Resenha da Semana

Uma História do Samba: Volume 1 (As Origens)
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Em primeiro lugar, o autor: Lira Neto tem como obra mais conhecida a biografia em três volumes de Getúlio Vargas.

Getúlio é nome constante nas 'histórias do samba': os anos que viram acontecer a Revolução de 30 e a vigência do Estado Novo (1937 — 1945) coincidem com a chamada Era de Ouro do Rádio no Brasil.

Provavelmente, a pesquisa de um livro surgiu de dentro da pesquisa para o outro.

Em determinado momento, Lira Neto chama a História de "empreitada bibliográfica" e parece uma boa descrição: trata-se de um relato de leituras. Aparentando ter consultado tudo o que foi escrito sobre o samba ao longo do século XX e princípios do XXI, o autor escolhe a dedo o que inclui e o que deixa de fora. Na Academia chamam esse tipo de pesquisa panorâmica de 'estado da arte'.

O resultado é uma obra de referência da mais alta qualidade. Para quem deseja se iniciar no assunto, tudo que há de essencial aparece nas duzentas e poucas páginas de texto propriamente dito, seguido de outras mais de 100 reservadas às notas, bibliografia e índice remissivo. O material iconográfico, fotos clássicas, mas digitalizadas e impressas no maior capricho, completam o quadro de excelência.

AS PARTES

Neto começa do começo: a indefectível presença das tias baianas, a Pequena África, Hilário Jovino e o bloco Dois de Ouro, no tempo em que não se sabendo se os blocos de rancho eram parte dos festejos natalinos ou do Carnaval, desfilava-se nos dois.

Fala da grande reforma urbanística levada a cabo pelo prefeito Pereira Passos, fala de Donga, Sinhô e João da Baiana. De Pixinguinha. Do Pelo Telefone, composto em improvisos coletivos nas rodas da casa da Tia Ciata e registrado, como se fosse de sua autoria, por Donga.

Fala dos Oito Batutas — no Rio, pelo Brasil, em Paris, na Argentina. De Chico Alves, de Mário Reis e do negócio de compra e venda de sambas.

Fala do aparecimento do pessoal do Estácio e registra a chegada de Noel. Fala de Cartola e da Mangueira, de Paulo da Portela no tempo do Conjunto Oswaldo Cruz.

Lira Neto escreveu um livro para consulta, se você é um especialista, ou iniciado, no tema. O rigor da pesquisa é alto e histórias que vieram sendo passadas de geração em geração são devidamente conferidas na vasta bibliografia estudada e em arquivos oficiais.

Se você não manja dos paranauê da tradição do samba brasileiro, Uma História do Samba é uma belíssima porta de entrada. Escrito com fluência, com a tarimba de quem vem do jornalismo e sabe se comunicar.

Eu recomendo!

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Na Amazon essa semana tava 86,00 a versão impressa e 40,00 o e-book.

A editora é a Companhia das Letras.



8 de novembro de 2018

A tendência da semana é afirmar que o deputado Jair cria cortinas de fumaça para desviar a atenção das verdadeiras negociações que estão sendo realizadas nas alcovas do poder. Faz sentido, precisamos estar atentos, mas, ao mesmo tempo, é forte a impressão de que o país está diante de personagens chapados, unidimensionais, que não têm nada a esconder porque não têm sequer milímetros de profundidade. O saque, ou para usar outra expressão que percorreu as redes essa semana, o 'governo de ocupação', desprovido de qualquer plano ainda que a curto prazo, está escancarado. Tudo vai sendo feito de modo explícito. Como num filme estrelado por Alexandre Frota.