Tuesday, November 19, 2024
Sunday, November 17, 2024
Síndrome de Coringa
Síndrome de Coringa leva homens de vida pacata ao terrorismo de direita
Jessé Souza*
Colaboração para o UOL 16/11/2024
No meu livro, recém-lançado, sobre 'o pobre de direita', fiz uma introdução usando a mesma expressão que está no título deste artigo. A arte muitas vezes ajuda a ciência e prefigura as características essenciais de uma época histórica. Para mim, o Coringa representado pelo grande Joaquin Phoenix, no filme de 2019, não seria, portanto, um ponto fora da curva. Ao contrário, seria a representação perfeita do trabalhador precarizado, empobrecido e humilhado de nossos tempos.
Quando o terrorista bolsonarista em Brasília explodiu uma bomba em si mesmo, embora o alvo fosse o Supremo e Alexandre de Moraes, vestido de coringa, muitos mencionaram uma capacidade mágica e preditiva do texto do livro. Infelizmente não tenho bola de cristal, mas o estudo cuidadoso e o trabalho empírico de adentrar ao mundo do trabalhador humilhado de nossos tempos me fez, quero crer, compreender as estruturas profundas do que está em jogo aqui.
A característica mais essencial para a existência dos coringas contemporâneos é a sua desorientação. No caso brasileiro, é um trabalhador que a partir do golpe de 2016 empobrece visivelmente. O aumento real dos salários em até 70% na era Lula, que garantia uma dieta mais saudável, a possibilidade de mandar o filho a uma escola particular e a construção racional de um futuro possível, voltou a ser apropriado pelo rentismo improdutivo da Faria Lima — aliás, este foi um dos motivos principais do golpe —, empobrecendo a massa de trabalhadores que se torna cada mais precária e explorada. No entanto, ninguém jamais explicou para ele que seu maior inimigo é a sanha do saque financeiro de toda a população por uma meia dúzia de especuladores.
Como essa raiva não pode ser canalizada contra a elite que o saqueia, ele tem então duas alternativas. A primeira é canalizar a raiva contra si mesmo, afinal ele, como todo pobre, acredita na meritocracia, e passa a se ver como fracassado — o que o levará a depressão ou ao alcoolismo, as duas doenças endêmicas do trabalhador de hoje. A segunda, que é para onde tanto a extrema direita quanto a pregação evangélica convergem, é canalizar a raiva contra grupos já previamente estigmatizados e ainda mais frágeis do que ele.
Muitos passam a achar que é o nordestino preguiçoso do Bolsa Família quem roubou seus parcos recursos. Ou ainda o negro construído como bandido. Ou ainda o falso moralismo da corrupção seletiva propagado por todas as mídias que identifica a 'roubalheira do PT' como a causa. Não por acaso, o racismo esta por trás de todas essas opções por meio de máscaras convenientes: o nordestino, cujo povo é 80% mestiço ou preto, o bandido construído como o negro e o suposto povo corrupto eleitor de corruptos, de modo a desmoralizar o voto e a participação popular da maioria mestiça, negra e pobre.
A pregação evangélica e a extrema direita se tornam a boia de salvação moral do 'pobre remediado', àquele que ganha entre dois e cinco salários mínimos e que foi o segmento social suporte do bolsonarismo em todas as eleições. É o terreno social do branco pobre do Sul e de São Paulo e do negro evangélico do resto do país. A pregação evangélica serve para defini-lo como o 'homem de bem' contra o pobre transformado em delinquente. Daí apoio à violência policial contra pretos e pobres. Ao criar a distinção entre o pobre honesto e pobre delinquente — que pode ser o bandido, o gay, e até a mulher —, a pregação evangélica possibilita que ele canalize seu ódio não mais contra si mesmo, mas, agora, contra o segmento mais pobre dos que ganham até dois salários mínimos, além das vítimas do machismo e da homofobia.
Ao garantir autoestima para o trabalhador humilhado, ainda que às custas do maior sofrimento dos grupos estigmatizados, tanto a pregação evangélica quanto a extrema direita passam a controlar a alma desse público. Autoestima e algum respeito e reconhecimento social são, afinal, as necessidades mais prementes de todos os seres humanos.
A extrema direita, no entanto, vai ainda mais além e cria toda a espécie de espantalho para representar o 'sistema', desde que nunca se nomeiem os reais algozes. Esses espantalhos são intercambiáveis. Alexandre de Moraes e o Supremo Tribunal Federal são, no entanto, percebidos como os símbolos da elite de poder que causa a opressão. Do mesmo modo que a pregação evangélica, a extrema direita fornece, desse modo, um propósito na vida e a ilusão de se estar participando da vida política para alguém que sempre se sentiu alijado e sem importância. E isso não é pouco para quem é humilhado.
O nosso Coringa de vida medíocre acreditava ser a vanguarda da luta política. Para quem sempre teve uma vida obscura, transformar a morte em um ato heroico é de uma sedução irresistível. Redime uma vida toda passada nas sombras e na desimportância.
* Jessé Souza é sociólogo, professor da Universidade Federal do ABC e autor dos livros A Elite do Atraso: da Escravidão a Bolsonaro (2019) e O Pobre de Direita: a Vingança dos Bastardos (2024), entre outros.
Friday, November 15, 2024
O Beatle Recalcitrante
Tudo começou em agosto de 1963, tão subitamente como se um gigantesco interruptor tivesse sido acionado (...).
O gatilho foi o quarto compacto dos Beatles, She Loves You (...): essa eles nem precisavam cantar; era só balançar os cabelos, fechar os olhos e entoar o "Uuuuu!" (...) em falsete para alçar o frenesi da plateia a novos patamares.
Aquelas jovens e pré-adolescentes consideravam aqueles quatro veteranos da zona portuária de Hamburgo brinquedos fofinhos que você apertava na barriga e eles cantavam "Uuuuu!". (...)
Certa vez, George, numa divertida coletiva, afirmou gostar das balas de goma Jelly Babies. (...) depois disso, em todos os shows ao vivo dos Beatles, o palco recebia uma chuva de Jelly Babies.
No dia 5 de novembro, no show Royal Variety Performance, na presença da Rainha Elizabeth, John cativou o público pedindo ao povão das galerias que batesse palmas enquanto a plateia baixa "chacoalhava as joias".
(...) Na manhã seguinte, o Daily Mirror, que vendia seis milhões de cópias, publicou um editorial:
Como é "revigorante ver esses jovens e estridentes Beatles em plena Royal Variety Performance pegar a plateia de meia-idade pelo cangote e a contagiar como se fosse composta por adolescentes"...
Daí em diante, os jornais que antes não tinham uma só palavra boa a dizer sobre a música pop, agora não tinham uma só palavra ruim a dizer sobre os Beatles.
Ser um Beatle podia ser divertido. (...)
Mas nem tudo era só diversão, como quando tiveram que apertar a mão dos primeiros 1.000 fãs que compraram ingresso para a convenção do Fã-Clube dos Beatles, Seção Sul, no salão de baile Palais, de Wimbledon. Primeiro fizeram um show, não no palco do salão, mas na plataforma de madeira que os organizadores construíram atrás de uma gaiola de aço. A multidão se comprimiu contra a gaiola com tanta força que John afirmou que "logo passariam por ali em fatias".
No meio do show, George disse: "Não vou fazer isso", juntou as coisas, foi até a porta do palco e tentou pegar um táxi. (...) Daí John apareceu com a guitarra e falou: "Bem, se ele vai embora, eu também vou". Mas terminaram o show e apertaram a mão de todos os fãs... na verdade, umas mil vezes, porque [os fãs] sempre voltavam para o fim da fila.
Para George, a escola costumava parecer uma jaula, com o uniforme, as regras e as ordens intermináveis que precisavam ser obedecidas. Mesmo com o dinheiro, o frenesi das fãs e os inúmeros novos privilégios, ser um Beatle seria assim tão diferente?
9. "Sempre fui muito cruel com o George". George Harrison: o Beatle Relutante, Parte 2. © Philip Norman, 2023. Tradução de Henrique Guerra. Editora Belas Letras, 2024.
Tuesday, November 12, 2024
O Beatle Rejeitado II
Uma pergunta foi se tornando cada vez mais incômoda para George (...): por que não compunha canções originais como John e Paul?
Na verdade, era normal se sentir inibido diante da vasta produção que os dois criavam em quartos de hotel, ou no fundo do ônibus nas turnês. Cada canção raramente demorava mais do que alguns minutos para tomar forma. (...)
Embora fosse capaz de compor canções próprias, George sentia que lhe faltava aquela mesma facilidade com as palavras. Por isso, refutou a sugestão para tentar compor músicas em parceria com Ringo.
Em agosto de 1963, os Beatles faziam uma turnê pelos resorts à beira-mar do litoral sul com Billy J. Kramer and the Dakotas e a mais nova contratação de Brian Epstein, Tommy Quickly. Durante uma temporada de cinco noites no cinema Gaumont, em Burnemouth, George se queixou de fadiga crônica. Um médico veio examiná-lo, receitou um tônico e repouso no hotel.
Sozinho no quarto, sentiu-se deprimido pelo assunto da composição e recorreu a uma das poucas pessoas com quem costumava se abrir. Numa extensa carta a Astrid Kirchherr em Hamburgo, frisou que "em breve, John e Paul ficarão ricos, ao receberem o merecido pagamento pela composição de todas essas canções". E contou a ideia de ele próprio obter rendimentos extras, publicando junto com ela um livro ilustrado com as fotografias de Astrid, "porque não creio que você queira me ver pobre e faminto".
Confessou que o tônico que lhe haviam receitado parecia um "Preludin líquido" e acrescentou, talvez com excesso de informação: "e as minhas bolas também andam doloridas e dependuradas quando estou no palco".
No fim das contas, motivado pelo tédio e como proteção contra o fracasso, arriscou fazer "um exercício" de composição de letra e música. O título servia como resposta deveras irritadiça a todos aqueles que o pressionavam para fazer isso: Don't Bother Me.
9. Sempre fui muito cruel com o George. George Harrison: o Beatle Relutante, Parte 2. © Philip Norman, 2023. Tradução de Henrique Guerra. Editora Belas Letras, 2024.
Imagem: © 1963 Terry O'Neill.
Saturday, November 09, 2024
O Beatle Rejeitado
Com seu primeiro LP, os Beatles alcançaram o topo da parada da Record Retailer, posição onde permaneceriam por trinta semanas. Nessa época, os LPs eram apenas uma forma de lucrar mais em cima de um compacto de sucesso, nesse caso, Please Please Me, relançando a canção em meio a um medley de faixas sem brilho que poucos compradores ouviam mais de uma vez. Esse LP em específico se beneficiou da experiência de George Martin como produtor de discos de shows ao vivo: em uma sessão única de treze horas, ele replicou a apresentação dos Beatles no palco do Cavern, com as covers ainda superando em número as canções originais de Lennon & McCartney.
(...) Nesse momento, Martin detinha o controle absoluto sobre o material que os Beatles gravavam. Com a atenção sisuda de um professor, inclusive usando uma gravata das antigas, ele ouvia Paul e John tocarem a mais recente composição deles acompanhados de violões e, quase sempre, mudava o andamento ou invertia as estrofes e o refrão...
No estúdio, os dois compositores exigiam 95% do tempo do produtor. Em algum outro momento, com interesse cada vez menor, Martin pedia para ouvir o solo que George havia trabalhado em sua novíssima guitarra, igualzinha à Gretsch 'Country Gentleman' preta usada por Carl Perkins. Se não gostasse, sentava-se ao piano e de improviso oferecia uma alternativa obrigatória. Anos mais tarde, com grande remorso, ele admitiria: "Sempre fui muito cruel com o George".
9. Sempre fui muito cruel com o George. George Harrison: o Beatle Relutante, Parte 2. © Philip Norman, 2023. Tradução de Henrique Guerra. Editora Belas Letras, 2024.
Friday, November 08, 2024
Quem são os evangélicos brancos, os 'lindos cristãos' que impulsionaram vitória de Donald Trump?
por: Anna Virginia Balloussier
"Como Jesus votaria?" A duas semanas da eleição que decidiria o 47º presidente dos Estados Unidos, o pastor Charles Stock levantou essa questão na Life Center, igreja que fundou na Pensilvânia. Melhor seria, segundo ele, optar por "um líder imperfeito que faz coisas boas" do que "sofrer sob o comando dos perversos Acabe e Jezabel".
O casal aparece na Bíblia como modelo anticristão, farto em idolatria, fraqueza e crueldade. Jezabel, a pior dos dois, morreria tal qual preconizado pelo profeta Elias, com seu cadáver devorado por cachorros.
Não é difícil inferir de quem Stock estava falando. O líder com defeitos seria o republicano Donald Trump, com acusações judiciais que incluem pagar para silenciar uma estrela pornô com quem teve um caso extraconjugal. Já a democrata Kamala Harris encarnaria a Jezabel do século 21, alguém que poria em risco valores caros ao conservador americano, como aborto e casamento homoafetivo.
Kamala perdeu, Trump ganhou, e o resto é história para um bloco eleitoral que se alinha ao empresário por três pleitos consecutivos. São os chamados evangélicos brancos. Stock e sua Life Center fazem parte desse grupo, que mostra um engajamento eleitoral maior do que a média. Isso é ouro num país onde o voto não é obrigatório, e vencer uma eleição passa também por convencer alguém a sair de casa para votar.
Segundo o Public Religion Research Institute, esse quinhão evangélico não chega a 15% da população, mas pode representar um em cada quatro eleitores. Cerca de 80% dessa turma votam em Trump.
Raimundo César Barreto Jr., professor de cristianismo global no Seminário Teológico de Princeton, lembra que a divisão evangélica nos EUA não espelha a brasileira. Na América Latina, o termo evangélico é tomado como sinônimo de protestante. Na terra de Trump, o evangelicalismo é entendido como um ramo do movimento religioso iniciado em 1517 com a Reforma Protestante.
As igrejas brancas operam numa frequência própria dentro do grupo, predispostas "às questões raciais [pró-branco] e patriarcais, a ideia de uma família tradicional com o homem sendo chefe da família, com uma posição subalterna da mulher", afirma Barreto Júnior.
O apoio a Trump em outros galhos protestantes, como denominações de maioria negra ou latina, é bem mais bambo, embora haja terreno para ser conquistado ali. "Entram questões que ultrapassam o debate racial. Ele é o strongman, o líder forte, macho, que tenta projetar o domínio dessa masculinidade que tem apelo para homens negros, hispânicos e brancos nos EUA."
O republicano não desperdiçou oportunidades para tonificar laços afetivos com a direita cristã. Em julho, convocou seus "lindos cristãos" a saírem para votar "só desta vez".
"Quer saber? Mais quatro anos e tudo será resolvido, tudo ficará bem. Vocês não terão mais que votar, meus lindos cristãos", disse, sem explicar o que quis dizer com não haver mais necessidade de ir às urnas no futuro. A fala foi mal digerida por quem o vê como uma ameaça à democracia, sobretudo após seus entusiastas liderarem o atentado golpista do 6 de janeiro de 2021.
Em The Kingdom, the Power and the Glory (o reino, o poder e a glória), Tim Alberta, um jornalista que cresceu em lar evangélico, analisa a aliança entre esses religiosos e o trumpismo. Cita o incômodo de pastores com o "conservadorismo sem dentes", sem coragem de partir para cima, e o pendor para abraçar fake news como um culto satânico democrata que canibaliza crianças.
Alberta também fala num medo difuso que contamina muitos desses evangélicos, como se sua identidade religiosa estivesse a perigo num país cada vez mais plural e secularizado.
Em 2017, primeiro ano de Trump na Presidência, americanos responderam ao Public Religion Research Institute sobre qual religião enfrentava mais discriminação. "O público em geral era duas vezes mais propenso a mencionar muçulmanos", diz o autor. "Apenas um grupo discordou dessa visão: os evangélicos brancos." Cristãos, para esses dissidentes, eram o alvo mais visado.
Um pastor ex-trumpista lhe soprou então a reflexão: "Quando uma pessoa se convence de que está sitiada, que os inimigos estão vindo atrás dela e querem destruir seu modo de vida, o que a impedirá de se radicalizar?".
O presidente eleito alimenta essa atmosfera de pânico. Em 2023, chegou a propor uma força-tarefa para combater a "perseguição contra cristãos na América".
Trump, um presbiteriano que nunca deu sinais de praticar intensamente sua fé, ganhou pontos ao indicar juízes benquistos pela direita religiosa na Suprema Corte americana. Só assim para Roevs. Wade, decisão de 1973 que garantia o direito constitucional ao aborto, cair dois anos atrás. Espera-se que mais coelhos saiam dessa cartola conservadora.
Também soube explorar o atentado que por pouco não lhe custou a vida, em julho. Passou a dizer que Deus o poupou por um motivo. A narrativa do escolhido deu certo.
Democratas saem em desvantagem nesse eleitorado porque, em geral, "sentem-se desconfortáveis ao falar sobre questões de fé", afirma o historiador da religião Randall Balmer, da Dartmouth College. "Kamala discorreu sobre sua educação multirreligiosa, e Tim Walz [seu vice], sobre a filiação luterana, mas não fez muita diferença. O abismo religioso entre os dois partidos é real."
Balmer diz se perguntar como pode "uma direita cristã que se vangloria de defender valores familiares" endossar "um predador sexual confesso, casado três vezes, alguém que não consegue nem fingir alfabetização religiosa".
"A melhor explicação que posso oferecer é que os evangélicos brancos veem essa relação como transacional: apoiarão Trump, que por sua vez lhes dará o que querem em termos de nomeações de novos juízes." As batalhas no Judiciário, afinal, são cruciais para fazer valer a agenda conservadora.
Já há inclusive quem proponha uma adaptação do Maga (sigla em inglês para "faça a América grandiosa novamente"). O slogan trumpista por excelência viraria Maca: Make America Christian Again. Faça a América ser cristã de novo.
Copyright Folha de S.Paulo. Todos os direitos reservados.
Resenha da Semana
8 de novembro de 2018
A tendência da semana é afirmar que o deputado Jair cria cortinas de fumaça para desviar a atenção das verdadeiras negociações que estão sendo realizadas nas alcovas do poder. Faz sentido, precisamos estar atentos, mas, ao mesmo tempo, é forte a impressão de que o país está diante de personagens chapados, unidimensionais, que não têm nada a esconder porque não têm sequer milímetros de profundidade. O saque, ou para usar outra expressão que percorreu as redes essa semana, o 'governo de ocupação', desprovido de qualquer plano ainda que a curto prazo, está escancarado. Tudo vai sendo feito de modo explícito. Como num filme estrelado por Alexandre Frota.
Marcadores: Facebook 10 anos
Tuesday, November 05, 2024
O Beatle Ressentido
Em 1954, aos 11 anos, George ganhou uma bolsa de estudos para o Liverpool Institute High School for Boys (...).
O Instituto mostrava o mesmo requinte de escolas públicas como Eton ou Harrow: uniforme de blazers pretos e verdes, gravatas e chapéus, 'mestres' em vez de professores, sempre em trajes acadêmicos, com licença para administrar, em público, castigos com a palmatória.
(...) Uma ideologia em prol dos serviços públicos refletiu-se no seu rol de ex-alunos ilustres na política, ciência e academia e no seu lema latino "Non nobis solum sed toti mundo nati": "Nascemos não só para nós mesmos, mas para o mundo inteiro". E George — que ajudaria a emprestar um novo significado àquelas palavras — detestou o lugar desde o início.
Iain Taylor, egresso da mesma escola primária de George, foi colocado na turma anterior à dele e logo percebeu uma mudança para pior. "Sempre teve uma personalidade despreocupada, mas agora andava quieto e ressentido".
O fato de ter ganhado a bolsa mostrava sua inteligência e perspicácia, e com sua memória excelente não tinha problema para ser aprovado nos exames. mas não suportava qualquer forma de autoridade ou cerceamento. Quase por uma questão de princípios, tirava notas medíocres em todas as matérias, exceto Artes. Mesmo na época das entrevistas para The Beatles Anthology (1994), com muitos outros velhos ressentimentos já amainados, os comentários dele sobre o Instituto continuavam mordazes: "A escuridão começa aí", revela. [imita ordens do professor] 'Venha cá, levante-se, cale a boca, sente-se'... A pior época de minha vida".
(...) A rebeldia nele nunca foi escancarada, mas sempre era visto de boas com gazeteiros e vagabundos na ala isolada do playground, o 'Cantinho dos Fumantes'. Não tinha a idade mínima para ser um fumante dentro da lei, mas logo começou a fumar cigarros sem filtro, dia após dia, um cigarro atrás do outro, a ponto da nicotina manchar seus dedos de um amarelo brilhante. "Andou fumando de novo, Harrison?", foi o comentário sarcástico de um professor, certo dia, após o recreio. "Seus dedos mais parecem faróis Belisha", referindo-se aos faróis para pedestres e suas inconfundíveis lâmpadas amarelas.
💧
1. Cuida bem dele porque ele vai ser especial. George Harrison: o Beatle Relutante, Parte 1. © Philip Norman, 2023. Tradução de Henrique Guerra. Editora Belas Letras, 2024.
Imagem: Belisha Beacon, c1951. © Shirley Markham.
Saturday, November 02, 2024
O Beatle Relutante
Arthur Kelly & George Harrison |
As casas modestas em que Paul McCartney e John Lennon passaram a infância nos subúrbios de Liverpool foram tombadas pelo Patrimônio Histórico da Grã-Bretanha.
"Essa honraria não foi concedida à humilde residência em que George Harrison nasceu, a poucos quilômetros dos lares de Lennon e McCartney. A casa da rua Arnold Grove, número 12, continua sendo uma propriedade privada e, de modo inexplicável, sem sequer uma placa comemorativa. É um monumento sem identificação; um santuário sem um santo com franja à Beatles; apesar disso, multidões de fãs de todo o mundo peregrinam até o local para, ali mesmo na calçada, fazer uma veneração remota".
Começando a ler a biografia George Harrison: o Beatle Relutante escrita pelo especialista em Beatles Philip Norman. A tradução, excelente, é assinada por Henrique Guerra e por um 'revisor técnico', Gilvan Moura.
Os parágrafos iniciais do livro falando sobre o destino daquelas três casas funcionam como um resumo, ou síntese das imagens de George, Paul e John para a posteridade (leia-se 'hoje em dia'). George é sempre o 'terceiro excluído', apesar da veneração que lhe dedicam milhões de pessoas ao redor do mundo.
Here Comes the Sun tem 1.444.358.736 visualizações no Spotify, a música dos Beatles mais tocada nos serviços de streaming globais.
O 'relutante' do título diz respeito a algo que todo mundo sabe sobre George. Ele é o primeiro beatle a se declarar infeliz com a condição de super astro. E, é provável, dos quatro, o cara que mais renegou a história da banda. Segundo se sabe, George esteve de mau humor a maior parte do tempo em que o grupo existiu, variando apenas o grau de mau humor, ou de má vontade.
Na biografia, Norman afirma que a característica irritadiça acompanhou George a vida inteira, piorando, curiosamente, depois que ele passou a praticar meditação. Nada disso o impediu de viver uma vida repleta de amores, interesses, amizades, parcerias, aventuras, diversão e tudo mais que a fama e a fortuna possibilitam aos poucos escolhidos pelo destino para tê-las, sem perdê-las.
Em todo caso, o adjetivo 'relutante' não está no título por acaso.
Estou apenas no começo do livro e já sei que vou avançar devagar, misturando a leitura sobre George com as oitocentas outras coisas a fazer no dia a dia. Tenho minhas próprias hipóteses sobre a pessoa e sobre o músico Harrison. Mas só poderei decidir se elas se confirmam, ou se valem alguma coisa, depois de lido o livro.
Para ilustrar esse post, uma daquelas preciosidades que qualquer biografia sempre traz: Rock Island Line foi o disco que despertou em George a vontade de fazer música. Na versão do norte-americano Lonnie Donegan, Rock Island Line, composta pelo blues man Lead Belly tornou-se um skiffle, estilo que, diz Philip Norman, "oferecia aos adolescentes britânicos tudo o que há de mais romântico nos EUA — trens de carga, gangues, Nova Orleans — com uma batida frenética tão inebriante quanto a do rock'n roll, mas livre de tumulto e vandalismo" (as sessões do filme Rock Around the Clock com Bill Haley e seus Cometas acabavam inevitavelmente em quebra-quebra e os discos de Elvis eram proibidos de tocar na BBC).
Marcadores: Autorais