... o que se precisa dizer?
— Todos em Cabul estão fazendo isso.
Laila retrucou que não tinha nada a ver com o que os outros faziam.
— Vou ficar de olho nela — prosseguiu Rashid, já mais impaciente.
— É um lugar seguro. Tem uma mesquita bem defronte.
— Não vou deixar você transformar minha filha numa mendiga! — esbravejou Laila.
O tapa estalou bem alto, pois aquela mão de dedos grossos acertou em cheio o rosto da moça.
Com o impacto, sua cabeça virou para o lado. Na cozinha, os ruídos cessaram. Por um momento, o silêncio na casa foi total. Depois, ouviram-se passos apressados pelo corredor e Mariam e as crianças apareceram na sala. Seus olhos iam de Laila para Rashid, e vice-versa.
Então, ela o acertou com um soco.
Foi a primeira vez que bateu em alguém na vida, sem contar, é claro, com os socos de brincadeira que Tariq e ela davam um no outro. Mas esses eram mais uns tabefes, dados com a mão aberta e sem qualquer intenção de machucar; eram antes a expressão de ansiedades a um só tempo surpreendentes e excitantes. E visavam sempre o músculo que Tariq, em tom professoral, chamava de deltóide.
Laila viu o próprio punho fechado cortando o ar, sentiu as pontinhas da barba por fazer, o contato da pele áspera com os nós dos dedos.
Pelo barulho, parecia que um saco de arroz tinha caído no chão. Ela o atingiu em cheio, e com tanta força que Rashid chegou a recuar uns dois passos.
No outro lado da sala, alguém perdeu o fôlego, alguém soltou uma exclamação de espanto, alguém gritou. Mas Laila não conseguiu distinguir quem fez o quê. Naquela hora, estava atônita demais para perceber o que quer que fosse, ou até para se preocupar; esperava apenas que a sua mente registrasse o que a sua mão tinha feito. Quando isto aconteceu, deve ter sorrido, ao menos era a impressão que tinha. Deve ter rido de orelha a orelha, pois, para sua surpresa, Rashid se virou, com toda calma, e saiu da sala.
De repente, lhe pareceu que todos os sofrimentos da vida daquelas três criaturas, ela mesma, Aziza e Mariam, tinham simplesmente se evaporado, sumido como as marcas das mãos de Zalmai na tela da TV. Por mais absurdo que fosse, tinha a sensação de que valera a pena aguentar tudo o que tinham aguentado, só para viver aquele momento, aquele ato de desafio que poria fim a todos aqueles ultrajes.
Laila não notou que Rashid estava de volta até sentir a mão dele em sua garganta, até ser erguida do chão e imprensada de encontro à parede.
Assim, tão de perto, o rosto debochado daquele homem parecia incrivelmente grande. Laila percebeu como ele estava ficando mais rechonchudo com a idade, como os vasinhos em seu nariz tinham se multiplicado. Rashid não disse absolutamente nada. Aliás, o que se pode dizer, o que se precisa dizer quando se tem o cano do revólver enfiado na boca da própria mulher?
A Cidade do Sol (A Thousand Splendid Suns) - Khaled Hosseini



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