Sunday, April 10, 2011


O ser humano é o ser para o qual o mundo, tal como está, não basta. Isto decorre do fato de que ele nasce prematurado e, portanto, incompleto e, em consequência, incompatível com o meio-em-torno que o rodeia. O ser humano, ao nascer, em virtude da prematuração, sofre um corte para cujo preenchimento ele não tem equipamentos. O animal, ao nascer, traz consigo uma trama de instintos capazes de costurá-lo ao meio que o rodeia. Ele não vive a experiência de aguda insuficiência biológico-ontológica na qual o nascimento precipita o ser humano. O animal tem ganchos de abordagem aptos a costurá-lo à realidade. Tendo vindo de casa - do útero - ele continua em casa, já que o Cosmo é a sua casa. Ele marcha para o real e se conecta a ele, sem precisar simbolizá-lo. Ao animal, não lhe falta nada. A leitura que faz do mundo corresponde, simetricamente, à estrutura de suas necessidades. O mundo é a concha que o envolve e na qual ele se perde, extático. O animal faz, desde o nascimento, uma experiência de pertinência cósmica que o torna parte do real, íntimo do coração da matéria, filho dileto - e inocente de Deus.

[...] Por não ter nascido - ou partejado - pelo Cosmo, por não ter dado o salto da natureza para a cultura, por não carregar em seu centro a liberdade - essa fraqueza no coração do ser, como a define Merleau-Ponty -, o animal não precisa dar testemunho da sua passagem no mundo, não precisa falar porque é falado pelo acontecer cósmico, é parte do real, do oceano incomensurável, em movimento, que abarca as constelações mais remotas, e a erva mais modesta - e mais próxima. O animal digere o Cosmo, que o atravessa todo, sem precisar imaginarizá-lo - ou simbolizá-lo.

Hélio Pellegrino - Édipo e a Paixão - Os Sentidos da Paixão / Funarte 1998

No comments: