Saturday, July 02, 2011

Mencionei o colapso total dos padrões morais e religiosos entre pessoas que, segundo todas as aparências, sempre tinham acreditado firmemente nesses padrões, e também mencionei o fato inegável de que os poucos que conseguiram não ser tragados pelo redemoinho não foram de modo algum os "moralistas", pessoas que sempre apoiaram as regras da conduta certa, mas, ao contrário, foram muito frequentemente aqueles que tinham sido convencidos, mesmo antes da débâcle, da não-validade objetiva desses padrões per se. Assim, teoricamente, nós nos descobrimos hoje na mesma situação em que o século XVIII se descobriu com respeito aos meros julgamentos de gosto. Kant se indignava que a questão da beleza fosse decidida arbitrariamente, sem possibilidade de discussão e acordo mútuo, no espírito do  de gustibus non disputandum est. De maneira bastante frequente, mesmo em circunstâncias que estão muito longe de qualquer indicação catastrófica, nos descobrimos hoje exatamente na mesma posição no que diz respeito às discussões de questões morais. Assim, vamos retornar a Kant.

1.

O senso comum para Kant não significava um sentido comum para todos nós, mas, estritamente, aquele sentido que nos ajusta a uma comunidade formada com os outros, que nos torna seus membros e capacita-nos a comunicar as coisas dadas pelos nossos cinco sentidos. Ele cumpre essa tarefa com a ajuda de outra faculdade, a faculdade da imaginação (para Kant a faculdade mais misteriosa). A imaginação ou representação designa a minha capacidade de ter no espírito a imagem de algo que não está presente. A representação torna presente o que está ausente - por exemplo, a ponte George Washington. Mas embora eu possa evocar a ponte que está distante do olho de meu espírito, tenho realmente duas imaginações ou representações no espírito: primeiro, essa ponte particular que já vi muitas vezes, e segundo, uma imagem esquemática de ponte pela qual posso reconhecer e identificar qualquer ponte, inclusive a mencionada, como sendo uma ponte. Essa segunda ponte esquemática nunca aparece diante de meus olhos corpóreos; no momento em que a coloco no papel torna-se uma ponte particular, deixa de ser um mero esquema. Ora, a mesma capacidade representativa sem a qual nenhum conhecimento seria possível estende-se às outras pessoas, e os esquemas que aparecem no conhecimento se tornam exemplos no julgamento. O senso comum, em virtude de sua capacidade imaginativa, pode ter presente em si mesmo todos aqueles que de fato estão ausentes. Pode pensar, como diz Kant, no lugar de todos os outros, de modo que quando alguém faz um julgamento - isto é belo - ele não quer dizer meramente que isso me agrada (como se, por exemplo, sopa de galinha pudesse ser do meu gosto, mas não ser do gosto de outros), mas ele reivindica a aprovação dos outros porque no ato de julgar já os levou em consideração e, por isso, espera que seus julgamentos venham conter uma certa validade geral, ainda que talvez não universal. A validade vai se estender a toda a comunidade da qual o meu senso comum se torna membro - Kant, que se julgava um cidadão do mundo, esperava que se estendesse à comunidade de toda a humanidade. Kant dá a isso o nome de "mentalidade alargada", querendo dizer que sem esse acordo o homem não está preparado para a interação civilizada. O aspecto importante da questão é que meu julgamento de um caso particular não depende meramente da minha percepção, mas de representar para mim mesmo algo que não percebo. Deixem-me ilustrar esse ponto: vamos supor que eu veja uma moradia específica na favela e perceba nessa construção particular a noção geral que ela não exibe diretamente, a noção de pobreza e miséria. Chego a essa noção ao representar para mim mesmo como me sentiria se tivesse de viver ali, isto é, tento pensar no lugar do morador da favela. O julgamento a que vou chegar não será necessariamente igual ao dos habitantes, a quem o tempo e a falta de esperança podem ter embotado qualquer sensibilidade à afronta de sua condição, mas vai se tornar um exemplo marcante para os meus julgamentos posteriores dessas questões. Além disso, embora ao julgar eu leve em consideração os outros, isso não significa que me adapte em meu julgamento ao julgamentos dos outros. Ainda falo com a minha própria voz e não conto votos para chegar ao que penso ser certo. Mas o meu julgamento já não é subjetivo, no sentido de que chegaria às minhas conclusões levando apenas a mim mesma em consideração.

Hannah Arendt - Algumas questões de filosofia moral (1965 - 6) - Responsabilidade e Julgamento

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