Friday, November 04, 2011

O ano que não terminou

Então, Stenzel, há perigo de as coisas melhorarem?
DEPUTADO RAIMUNDO PADILHA

A brincadeira de Padilha com seu colega Clóvis Stenzel, porta-voz da linha-dura, dava o clima dos momentos que ficaram conhecidos como a crise dos 100 dias. Durante aquela primavera crítica, só em uma ocasião o país pareceu esquecer os seus problemas: nos dez dias em que a rainha Elizabeth II, da Inglaterra, e seu marido, o príncipe Philip, visitaram o Brasil. "A coroa inglesa está nos protegendo nesta crise", dizia o deputado Último de Carvalho, velho pessedista mineiro então hospedado na Arena.

Na verdade, uma espécie de acordo estabeleceu que as acusações e ameaças seriam adiadas post-Queen. A chamada "trégua da Rainha" fez emergir entre nós uma certa nostalgia da realeza há tempos perdida. "Não ter uma rainha", escreveu Nelson Rodrigues, "tem sido um dos complexos mais amargos do brasileiro. Nós não temos nem uma Madame Pompadour."

A visita e suas abundantes gafes, de parte a parte, devolveram o riso à cena política. Sua Alteza deu "buenas tardes" em fluente português, a nossa primeira-dama chamou o príncipe de "pão", criando um sério problema para o íntérprete, e o presidente cumprimentou a rainha, em novembro, pelo seu aniversário, ocorrido em abril.

Para remendar, saudou-a num inglês de fazer inveja ao português da rainha. Ao levantar um brinde na recepção do Itamarati à Sua Alteza, Costa e Silva, de taça erguida, disse: "God... God... the Queen". Não houve meio de o verbo sair. Estávamos quites.

Ainda bem que era um verbo do qual, mais do que a rainha, ele estava precisando. Naquela altura, só Deus salvaria a nossa cambaleante democracia e quem, como Costa e Silva, se dizia seu pilar.

Mais do que nunca, tornava-se visível a dualidade do poder, e previsíveis as consequências dessa fratura. No Congresso, havia dois comandos, o comando da paz, no gabinete do senador Daniel Krieger, e o comando da guerra, no gabinete do deputado Geraldo Freire. Mesmo no interior do que se poderia chamar de coração do governo, encontravam-se representantes dessa divisão.

O chefe da Casa Civil, Rondon Pacheco, por suas origens parlamentares e por sua vocação liberal, trabalhava naturalmente pela normalização democrática do país. Já o chefe da Casa Militar, general Jayme Portella, era o que Castelinho chamou de "consciência revolucionária do marechal", ou "uma ponta de lança do poder militar plantada no coração do governo."

O próprio Costa e Silva encarnava essa ambivalência. Como chefe de um governo, bem ou mal constitucional, ele era a mais alta autoridade civil do país; por outro lado, o seu mandato não emanava do povo, nem das forças políticas, mas das Forças Armadas, a quem devia gratidão e de cujo apoio dependia sua sobrevivência política.

Como dizia Castelinho, "ele era ao mesmo tempo o mais alto dos paisanos e o mais alto dos milicos". Se tivesse que fazer uma escolha, não era difícil prever para que lado o seu coração penderia. E a hora dessa opção estava chegando.

Zuenir Ventura - 1968: o ano que não terminou. Menos a Honra - Parte IV

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