Hannah Arendt - o filme
No programa Roda Viva, o filósofo e psicanalista Slavoj Zizek, que expele palavras como de uma espécie de metralhadora giratória, referiu-se três vezes ao filósofo Martin Heidegger. Na primeira, a legenda saiu "Hildegard"; nas outras duas, variações um pouco mais próximas do original não foram suficientes para esconder o fato de que o responsável pela tradução, muito provavelmente, não sabia de quem se falava.
Mas, sendo honesto, quem sabe quem foi Martin Heidegger? Quem seria capaz de reconhecê-lo numa foto?
Em caso de resposta negativa, é preciso cuidado com o filme mais recente de Margarethe Von Trotta, em que a bela Barbara Sukowa interpreta uma Hannah Arendt adentrando a meia idade, envolta em permanente fumaça de cigarro, madura como pensadora e cheia de afetos.
O filme usa como fio condutor o julgamento do criminoso de guerra Adolf Eichmann pelo recém fundado Estado de Israel e a escrita e publicação da série de reportagens para a revista New Yorker que posteriormente Arendt transformou em livro, Eichmann em Jerusalém, saído em 1964.
Heidegger surge três ou quatro vezes no roteiro em mais de um momento de sua vida, portanto, com mais de uma aparência. A quem não conheça o histórico do filósofo no partido nazista, o que temos é um professor e sua aluna aparentemente apaixonados que se encontram anos depois (no "presente" do filme) e se referem a um obscuro "Discurso da Reitoria". A maneira como a encenação se dá indica que "Discurso da Reitoria" é uma senha para algo revelador. Impossível de se entender, infelizmente.
Em princípio, as ideias fundamentais de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal, que o livro Eichmann em Jerusalém celebrizou, o filme sabe, sim, tocar. O problema está em que é indispensável ser, no mínimo, familiarizado com vida e obra da escritora para que tais ideias façam sentido. Sem dúvida um desacerto cinematográfico que veda boa parte do entendimento dos diálogos a quem não tenha feito a "lição de casa".
De bom, o filme oferece um reconhecimento do instante em que Arendt formula, para si própria, o conceito de banalidade do mal. Esse verdadeiro susto (também registrado no Eichmann, assim como no ensaio Verdade e Política escrito como resposta pública ao que ela chamou ironicamente de "controvérsia" em torno do livro e, ainda, nas biografias), o filme consegue captar: a urgência de ter que admitir que se estava diante de algo que não havia sido vislumbrado. É isso e não (como quiseram vários dos que a atacaram) qualquer arrogância ou "trauma" antigo que a leva a enfrentar, ao preço de ser politicamente estigmatizada por seus próximos, o repúdio público e o ódio judeu que se manifestam de imediato e com toda a clareza, dos anfitriões em Jerusalém aos editores da New Yorker.
O que fica é que roteiro e direção demonstram fluência nos conceitos básicos da obra da autora, acrescentam detalhes interessantes a sua vida afetiva, mas a quem não a conheça, resta preencher com temáticas pessoais as várias gavetas deixadas abertas ao longo do filme, "adivinhando" certos sentidos.
Uma dessas gavetas poderia ser, diagnosticar o carrasco nazista como portador de um distúrbio de caráter, hipótese menos "complicada". Despreza-se, no entanto, assim, parte importante da descoberta: não se encontra traço de desequilíbrio psíquico em Eichmann. O que há é um vazio moral tão fundo que obriga a uma viravolta do eixo que norteara o exame do fenômeno totalitário formulado por Arendt até ali. Pois, pior que um evento, ainda que gigantesco, circunscrito a uma patologia singular e, no limite, intransferível, Adolf Eichmann revelava a possibilidade do mal mais extremo ser praticado por qualquer um. Daí, o adjetivo "banal". Não para perdoar ou minimizar os horrores cometidos e sim para circunscrever os campos de extermínio entre as consequências possíveis das ações humanas, não as raras, mas as mais ordinárias ações humanas.