Wednesday, July 03, 2013

Rancière

O Espectador Emancipado III


[...] Aquilo que chamamos de imagem é um elemento num dispositivo que cria certo senso de realidade, certo senso comum. Um "senso comum" é, acima de tudo, uma comunidade de dados sensíveis: coisas cuja visibilidade considera-se partilhável por todos, modos de percepção dessas coisas e significados também partilháveis que lhe são conferidos. É também a forma de convívio que liga indivíduos ou grupos com base nessa comunidade primeira entre palavras e coisas. O sistema de Informação é um "senso comum" desse tipo: um dispositivo espaço-temporal dentro do qual palavras e formas visíveis são reunidas em dados comuns, em maneiras comuns de perceber, de ser afetado e de dar sentido. O problema não é opor a realidade a suas aparências. É construir outras realidades, outras formas de senso comum, ou seja, outros dispositivos espaço-temporais, outras comunidades de palavras e coisas, formas e significados.

Essa criação é trabalho de ficção, que não consiste em contar histórias, mas em estabelecer relações novas entre as palavras e as formas visíveis, a palavra e a escrita, um aqui e um alhures, um então e um agora. [...] As imagens da arte não fornecem armas de combate. Contribuem para desenhar configurações novas do visível, do dizível e do pensável e, por isso mesmo, uma paisagem nova do possível. Mas o fazem com a condição de não antecipar seu sentido e seu efeito.

[...] As palavras não estão no lugar das imagens. São imagens, ou seja, formas de redistribuição dos elementos da representação. São figuras que substituem uma imagem por outra, formas visuais por palavras, ou palavras por formas visuais. Essas figuras redistribuem ao mesmo tempo as relações entre o único e o múltiplo, o pequeno número e o grande número. Por isso são políticas, se é que a política consiste principalmente em mudar os lugares e a conta dos corpos.

[...] os meios de comunicação dominantes não nos afogam de modo algum sob a torrente de imagens que dão testemunho de massacres, fugas em massa e outros horrores que constituem o presente de nosso planeta. Bem ao contrário, eles reduzem o seu número, tomam bastante cuidado para selecioná-las e ordená-las. Eliminam tudo o que possa exceder a simples ilustração redundante de sua significação. O que vemos, sobretudo nas telas de informação da televisão, é o rosto de governantes, especialistas e jornalistas a comentarem as imagens, a dizerem o que elas mostram e o que devemos pensar a respeito. Se o horror está banalizado, não é porque vemos imagens demais. Não vemos corpos demais a sofrerem na tela. Mas vemos corpos demais sem nome, corpos demais incapazes de nos devolver o olhar que lhes dirigimos, corpos que são objeto de palavra sem terem a palavra. O sistema de Informação não funciona pelo excesso de imagens, funciona selecionando seres que falam e raciocinam, que são capazes de "descriptografar" a vaga de informações referentes às multidões anônimas. A política dessas imagens consiste em nos ensinar que não é qualquer um que é capaz de ver e falar. E essa lição é confirmada de maneira prosaica pelos que pretendem criticar a inundação das imagens pela televisão.

[..] O problema não é opor as palavras às imagens sensíveis. É subverter a lógica dominante que faz do visual o quinhão das multidões e do verbal o privilégio de alguns.

Jacques Rancière - A Imagem Intolerável - O Espectador Emancipado

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