Os Limites do Politicamente Correto
[..] uma análise social não é uma exortação moral nem pode ser medida pelos mesmos critérios. Num caso, o valor em jogo é a verdade, ou seja, a possibilidade de explicar como o mundo é o que ele é, em toda sua arbitrariedade e contingência. No outro caso, o valor é o da justiça e mede a menor ou maior aproximação de uma concepção de vida coletiva a partir de dado parâmetro (religioso) de conduta ideal. O mundo da ciência é o aqui e agora que todos (nós, os ainda vivos) compartilhamos. O mundo da religião cristã é o "outro mundo", daí que o cristianismo institucionalizado na Igreja Católica tenha podido, ao longo de toda a sua história, adotar práticas de compromisso e de conciliação com todo tipo de de dominação política secular.
Para entender e mudar o mundo do aqui e agora é necessário, portanto, ultrapassar a mera "piedade cristã" e compreender os mecanismos sociais que produzem e reproduzem formas permanentes de miséria existencial, política e material. As causas da desigualdade e da ausência de reconhecimento social são, por definição, invisíveis a olho nu. Ainda que a pobreza e a miséria material sejam facilmente perceptíveis e reconhecíveis, as causas e precondições que as tornam possíveis e socialmente legitimadas não o são. Esta é a razão última do fato historicamente invariante de que toda desigualdade existencial, política e material tenha que ser acompanhada por mecanismos simbólicos que mascaram e tornam opacas suas causas sociais. A reprodução da desigualdade material em todas as suas dimensões - econômica, cultural e política - pressupõe o sistemático desconhecimento/encobrimento, produzido e reproduzido simbolicamente, de suas causas efetivas. Isso é válido tanto para as chamadas sociedades tradicionais quanto para as sociedades modernas.
Nesse sentido, a atitude "politicamente correta" pode ter um resultado prático até pior que a perspectiva abertamente conservadora e liberal. É que ela aparenta e se traveste de crítica sem o ser. Na verdade, a "piedade cristã" deve, aqui, compensar a falta de "trabalho teórico" em reconstruir categorias que possam mostrar a lógica da competição social de uma "perspectiva crítica". Não é fácil desconstruir o discurso "politicamente correto" precisamente porque esse tipo de discurso "cientificamente preguiçoso" é, por outro lado, numa perspectiva "moralmente superficial" extraordinariamente sedutor. Sua sedução, como tudo, tem uma gênese e pode ser explicada por essa gênese. Quando Jesus Cristo diz que a pobreza é uma virtude em si e símbolo de boa ventura, ele está radicalizando e universalizando uma concepção moral do mundo já com raízes na sua socialização judaica. A "teodiceia do oprimido" vem substituir a antes dominante "teodiceia da riqueza", destinada a legitimar os privilégios dos mais ricos e felizes.
Como existem muitos mais pobres e infelizes no mundo que ricos e felizes, a teodiceia do oprimido abre, com essa revolução moral, um espaço muito maior para a ação do trabalho e da esfera religiosa. Como a penetração de valores religiosos é imensa por se realizar de modo afetivo e dizer respeito aos nossos medos e anseios mais fundamentais, toda a cultura aparentemente apenas secular é, pelo menos no Ocidente, fortemente influenciada pela moralidade religiosa. Assim, quando os "politicamente corretos" idealizam os oprimidos como a imagem da virtude, eles estão, na verdade, se aproveitando, parasitariamente, do enorme prestígio da imagem religiosa dominante que define a "bondade" e a "caridade" cristã. O pesquisador "politicamente correto" não só se utiliza do prestígio de valores religiosos para seus próprios fins como também pode, para si e para os outros, posar de "virtuoso" ele mesmo. Ele acaba, desse modo, por reproduzir os paradoxos da "ética da convicção" na esfera da ciência, ao trocar uma análise objetiva e rigorosa - o que significa nenhuma espécie de compromisso na busca da "verdade" - por uma "boa consciência" aparente. Isso significa não ter que prestar contas das consequências práticas de sua tão preciosa (para quem imagina possuir) " boa consciência" para a efetiva superação de uma vida de miséria e opressão por parte dos infelizes e miseráveis. Para Weber é precisamente a atenção em relação às consequências práticas de toda ação no mundo que permite a passagem de uma ética da convicção - que diz "eu estou certo e dane-se o mundo" - para uma ética da responsabilidade.
Na verdade, esse tipo de abordagem é tão frequente na esfera científica quanto a abordagem liberal-conservadora, ainda que esta última seja decididamente dominante no espaço público e na grande mídia. A perspectiva "politicamente correta" também é inofensiva "politicamente", apesar da aparência crítica, dado que "se está tudo bem do lado de baixo da sociedade", na medida em que todos já são virtuosos ou "escolheram" a vida que levam (a abordagem liberal-conservadora), por que mudar alguma coisa nessa maravilha de sociedade em que vivemos?
Jessé Souza - A Ralé Brasileira: Quem É e Como Vive
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