Tuesday, June 14, 2022

O Tempo da Obviedade

JULIÁN FUKS

O tempo da obviedade: já não cabe confusão diante da nossa realidade

11/06/2022 - UOL

Peço que hoje perdoem minha obviedade: ela não é minha, é da realidade circundante. Lembro de um tempo em que ecoava por toda parte uma mesma frase, corruptela de Millôr Fernandes: quem não está confuso, está mal informado. Foi há poucos anos, era o início da nossa debacle, o caos que nos levaria a uma situação muito mais clara, à evidência do desastre. Hoje o tempo parece se reger por alguma simplicidade; nunca foi tão fácil pensar o Brasil quanto agora, nunca tão cristalina a posição necessária a tomar. Proponho uma reformulação: quem está confuso, está mal intencionado, ou prefere fechar os olhos para o óbvio.

A simplicidade não goza de grande estima no saber contemporâneo, embora encontre sempre uma infinidade de usos cotidianos. Simplificar é empobrecer, é ignorar nuances, é falsear inevitavelmente a história. Simplificar é produzir caricaturas de baixa qualidade, desenhos primários que obscurecem o objeto retratado, que o afastam de sua verdade. Para Edgar Morin, célebre defensor do pensamento complexo, o que acontece é que tentamos nos livrar da desordem própria do mundo em nome de uma inteligibilidade, e para isso aderimos a certezas falsas, a uma forma de cegueira que vem da recusa à complexidade.

E, no entanto, o Brasil atual parece corresponder à risca ao seu retrato mais básico, e nenhum rosto é mais parecido com sua caricatura do que o de Jair Bolsonaro. Não é preciso convocar a complexidade para compreendê-lo: pelo contrário, a complexidade é que faria obscurecer seu caráter vil, sua monstruosidade. Bastante incompatível com o pensamento crítico é o maniqueísmo, e ainda assim hoje, apenas nestes anos, o maniqueísmo tem se revelado a leitura mais precisa do Brasil. Ante uma realidade dessas, acerta a linguagem infantil: temos no cargo máximo do país um homem mau. Em cada detalhe ele se mostra mau: é tosco, autoritário, insensível, cruel, cerca-se de sujeitos tão violentos quanto ele próprio, e faz da própria violência seu projeto de poder.

Por que uma minoria ruidosa ainda está disposta a apoiá-lo, eis a pergunta que não encontra resposta tão simples. Nem mesmo a lógica da preservação de privilégios históricos se aplica agora. Neste grau de destruição sistemática a que tem sido submetido o país, a cada dia todos perdemos, sem exceção, até quem lucra com a degradação — a diferença é que alguns ainda não o enxergam ou não o querem admitir. Muito já se disse sobre as relações inextricáveis entre o pessoal e o político: pois bem, o exercício tão nocivo da política tem sido uma afronta pessoal a cada indivíduo desta nação, mesmo àqueles que aceitam ser afrontados, aqueles que concordam com sua própria destruição. Num país acometido por este grau de aniquilação, sordidez, desfaçatez, abandono, sempre perderemos todos.

Por isso tantas opiniões se parecem, por isso você tem a sensação de já ter lido este texto uma centena de vezes. Não é a tal perseguição a um presidente que nunca angariou nenhuma simpatia da imprensa, como ele insiste em tom choroso, tantas vezes. É apenas o quase consenso alcançado por uma miríade de mentes pensantes, mentes que prefeririam explorar profundidades, minúcias, nuances, mas que acabam por se render à indigência do presente, tão simples e tão semelhante a si mesmo. Não há muito mais a dizer: a realidade é que é feita dessa penúria triste, dessa esqualidez de sentidos.

Tão famélico está o povo brasileiro quanto o nosso pensamento. Queremos algo de mais vivo e mais vasto a discutir, queremos de volta a ambiguidade, a multiplicidade de visões razoáveis, queremos de volta a possibilidade da incerteza, da sutileza. Anseio por um dia mais confuso do que este: quando ele enfim chegar, estaremos imersos numa realidade menos miserável. Anseio pelo dia em que retornaremos à complexidade, o dia em que não deverei pedir perdão e logo escrever uma obviedade, anseio muito, como anseio.

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