Saturday, August 13, 2022

Descontínuo Volátil Efêmero


Eu não sou trabalhador do campo, nunca ateei fogo em pneus para bloquear estradas, não dormi em barracas de plástico preto sob a mira de escopetas de grileiros, tampouco enfrentei os fuzis da Polícia Militar me interditando nalguma marcha. Quem sou eu pra dizer o que o MST deve ou não fazer? Não sou sem-teto, não ocupo prédios, não construo em mutirão, não acampei na porta do Mixéu, nem no gabinete da Presidência na Avenida Paulista. Por que eu me sentiria no direito de ditar ao Boulos o que ele fala ou deixa de falar? Eu não tenho nada a ver com a UNE. Vou criticar a Carina Vitral? Do berçário à Universidade paguei escola pras minhas meninas: que palpite posso ter sobre as preferências eleitorais dos secundaristas das escolas públicas do país? Não sou filiado ao PT e já cheguei à meia idade. Que diabos eu vou reclamar do Levante Popular da Juventude? Nem celetista sou, nunca fui! Vou deitar falação pra cima da CUT?

Pertenço, e disso não tenho dúvida, à pequena burguesia. Segundo a professora Marilena Chauí, "Marx falava em pequena burguesia para indicar uma classe que não se situava nos dois polos da divisão social constituinte do modo de produção capitalista, bem como para apontar sua proximidade social e ideológica com a burguesia e não com os trabalhadores".

Adotando-se, ou não, a noção dos sociólogos americanos de 'classe média' a partir de critérios de renda, escolaridade, profissão e consumo e levando-se ainda em consideração o desaparecimento do modelo fordista, o surgimento da tecnociência e a passagem das antigas profissões liberais autônomas à condição assalariada, o fato é que, no panorama contemporâneo, a pequena burguesia, ou classe média, permanece estando fora do núcleo econômico definidor do capitalismo, assim como fora do núcleo de poder político: ela não detém o poder do Estado (que pertence à classe dominante) nem o poder social da classe trabalhadora organizada. "Isso a coloca numa posição que a define não somente por sua posição econômico-política, mas também e sobretudo por seu 'lugar ideológico' - e este tende a ser contraditório".

Segundo Chauí, "por sua posição no sistema social, a classe média tende a ser fragmentada, raramente encontrando um interesse comum que a unifique. Todavia, certos setores - como é o caso de estudantes, professores, setores do funcionalismo público, intelectuais, lideranças religiosas - tendem a se organizar e a se opor à classe dominante em nome da justiça social, colocando-se na defesa dos interesses dos excluídos, dos espoliados, dos oprimidos; numa palavra, tendem para a esquerda e, via de regra, para a extrema esquerda e o voluntarismo, isto é, por uma relação com o tempo como descontínuo e volátil que exige ações imediatas. No entanto, essa configuração é contrabalançada por outra, exatamente oposta. Fragmentada, perpassada pelo individualismo competitivo, desprovida de um referencial social e econômico sólido e claro, a classe média tende a suprir a existência de um tempo descontínuo e efêmero com o imaginário da ordem e da segurança, que introduziria permanência temporal e espacial. [...] Isso torna a classe média ideologicamente conservadora e reacionária, e seu papel social e político é assegurar a hegemonia ideológica da classe dominante".

Cabe ainda, segundo a professora, "particularizar a classe média, que, além dos traços anteriores, é também determinada pela estrutura autoritária da sociedade brasileira, marcada pelo predomínio do espaço privado sobre o público e fortemente hierarquizada em todos os seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece; as diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência, e as desigualdades são naturalizadas. As relações entre os que se julgam iguais são de 'parentesco', isto é, de cumplicidade; e com os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação; quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão, de sorte que a divisão social das classes é sobredeterminada pela polarização entre a carência (das classes populares) e o privilégio (da classe dominante). A classe média não só incorpora e propaga ideologicamente as formas autoritárias das relações sociais, como também incorpora e propaga a naturalização e valorização positiva da fragmentação e dispersão socioeconômica [...] para operar com os procedimentos do mercado".

E é exatamente por isso também que a classe média nos coloca uma questão política de enorme relevância, como atesta a participação de parcelas majoritárias de seus componentes nas manifestações de 2016 em favor do golpe de Estado.

A crescente sensação de isolamento das frações da classe média identificadas com o libertarismo democrático tem encontrado canal de expressão na crítica dirigida aos movimentos institucionalizados. Crítica que acaba funcionando como uma constatação, inadvertida, da incapacidade de iniciar ações e criar alternativas próprias. Da impotência. A tentativa de 'teorizar' a respeito das causas da crise, procurando por 'responsáveis' pela suposta letargia no enfrentamento ao golpe parece confirmar a dificuldade de 'se situar' desse grupo social que a professora Chauí define justamente pela fragmentação.

"Uma classe social", continua Marilena Chauí, "não é um 'dado fixo', definido apenas pelas determinações econômicas, mas um 'sujeito' social, político, moral e cultural que age, se constitui, interpreta a si mesma e se transforma por meio da luta de classes. Ela é uma 'praxis', um fazer histórico".

É particularmente difícil 'interpretar-se' para quem só percebe sua imagem por comparação a um 'outro', seja este outro o mais pobre ou o mais rico que ele mesmo. Despreparada para a autocrítica a classe média de tendência esquerdista tende ao desalento. Almeja por alguém que demonstre 'saber fazer a hora', mas, na prática, 'espera acontecer'.

fonte: Marilena Chauí - 'A Nova Classe Trabalhadora e a Ascensão do Conservadorismo'. Por Que Gritamos Golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Organização: Ivana Jinkings, Kim Doria e Murilo Cleto. Boitempo Editorial. 2016.

imagem: 'La Reproduction interdite', René Magritte, Museu Boijmans Van Beuningen, Rotterdam.

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