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16 de fevereiro de 2019

ABSOLUTO ESTRANHO

Com certo esforço, a revolta pelo asfixiamento do rapaz durante o horário comercial de um supermercado vai ganhando força na bolha branca de classe média letrada do Facebook. Há o caso de uma menina de 11 anos morta com um tiro no peito que passa quase despercebido. E fica cada vez mais apagada da memória 'em rede' a chacina do Fallet.

Os 9 jovens encurralados na casa da ladeira Eliseu Visconti em Santa Tereza tiveram seus corpos, nessa ordem, atingidos nas pernas, dilacerados com facas e coronhadas, antes de receberem 'rajadas de misericórdia' e serem transportados na caçamba de uma picape até o hospital mais próximo, onde oficialmente foram dados como mortos.

60 mil pessoas são assassinadas anualmente no Brasil. 93% das vítimas são homens; 76% são negros, jovens, moradores das periferias urbanas e trabalham nos postos mais baixos dos mercados criminais.

Como os 15 do Fallet Fogueteiro e do Morro dos Prazeres.

É esse, e não outro, o genocídio da juventude periférica a que se refere o Movimento Negro. Essas são as vidas ceifadas que as estatísticas escondem e o 'silêncio sorridente' de que falavam Gil e Caetano faz desvanecer, mas parte - pequena - da sociedade insiste em prantear.

A grande maioria deles não morre pelas mãos do Bope, da ROTA, ROTAM, etc. embora tenhamos as mais altas taxas de letalidade policial do planeta. Matam-se por conta própria, numa estranha guerra entre 'fraternidades' do crime.

A intuição genocida da Direita não deixa por menos: são bandidos. E bandido bom é bandido morto. Que se matem!

Mas como classificar como 'bandidos', ou 'traficantes', um cara de 15, um de 17 e outro de 18 anos, os três primeiros corpos identificados na chacina do Fallet?

Como negar a eles seus nomes, Vitor, Roger e Enzo?

Como explicar às mães dos três que eles não pertencem, segundo as regras sociais brasileiras, à categoria 'passível de luto'?

Como impedi-las de sofrer?

Enquanto o Brasil se negar a dar atenção às causas profundas que levam milhões de jovens ao crime, à morte e ao encarceramento, estaremos dando um salvo-conduto velado ao 'guarda de esquina', aos vigias sem controle do supermercado, aos milicianos, aos justiceiros e, por extensão, a toda sorte de violência doméstica, de crime de ódio, no limite, a toda e qualquer perversidade dos 'homens de bem'.

Uma sociedade que vê morrer mais de 50 mil jovens por ano e 'deixa por isso mesmo', está comunicando que a 'vulnerabilidade' inerente à vida, aquilo que faz com que qualquer animal de rebanho, como nós, se mantenha unido em busca de proteção, é problema dos 'outros'.

"Todas as formas de racismo, intolerância étnica, religiosa ou nacional fundam-se na tentativa de fazer do semelhante um igual, ao preço de fazer do diferente um absoluto estranho", disse Maria Rita Kehl em seu 'Sobre Ética e Psicanálise'.

O 'absoluto estranho' expurgado da vida coletiva tem o dom de retornar. Tem o poder dos espectros. O feitio das sombras.

É a própria sociedade, silenciosa ou sorridente, quem paga, no 'acerto de contas', a fiança dos matadores.

https://ponte.org/artigo-isso-se-chama-genocidio/?fbclid=IwAR2UkYpcweGEVsaT1VxZFg8i7jgGarvoRFSsi1lMqdNokYgG2uoVvVQunBA

imagem: Natasha Neri para ponte.org

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