Tuesday, June 11, 2024

11 de junho de 2016


AO MESTRE SEM CARINHO

Alguém já leu algum livro do Renato Janine Ribeiro? Eu não lembro de nenhum. Não tenho notícia: ele escreveu alguma obra das chamadas "de referência"? Não, né? Em princípio, e espero estar enganado, Janine é mais um professor da USP. Eu, que não sou de muitos amigos, conheço pelo menos uns 15 professores da USP. A produção de nenhum deles fica a dever pro ex-ministro. Vários dão de 10. Janine, como intelectual, nunca ultrapassou a média. Mas, de longe, é o professor da USP mais famoso do Facebook.

O Facebook é um grande corredor de vitrines. Olha-se o que está exposto nas diferentes lojas, mas, na maior parte do tempo, o que a gente enxerga é o próprio reflexo.

O segredo do sucesso do professor é o mesmo de todas as celebridades do Livro de Caras: jogar pra torcida.

Janine, quase invariavelmente, deixa pra se manifestar quando o senso comum já cristalizou uma ideia. Some-se ao procedimento a habilidade de permanecer equilibrado no alto do muro e o alcance do discurso se alarga até muito longe. Atua na média da curva. Por isso atinge tanta gente.

O diferencial é que ele empresta voz de autoridade para o senso comum.

O senso comum é coisa muito importante. Hannah Arendt diz que é o sexto sentido humano. O sentido que garante que não estamos "vendo coisas", delirando. Ele traz também consigo, claro, seus perigos. É o senso de manada. O disparador de mecanismos nossos muito primitivos. Pode guiar os linchamentos, por exemplo.

Pior do que um intelectual que encaixa o senso comum em molduras douradas é o intelectual a quem falta o rigor. No post mais recente de Janine, está escrito, logo no início: "Com atraso, a esquerda reage. Os erros foram muitos – a inabilidade política de Dilma, a demora de Lula a aceitar o ministério, a ingratidão dos beneficiados por 12 anos de políticas públicas quando as vacas emagreceram". Começamos mal quando as mães do Bolsa Família, os bolsistas do Prouni, ou o celetista abaixo de 5 salários mínimos são computados no campo "esquerda" da planilha. E piora se "ingratidão" vira categoria política. Difícil seguir em frente a partir daí.

Mas vamos.

"O empresariado apoia, na falta de coisa melhor, o governo que está aí". Ou escreve mal, ou é reaça, ou não leva a sério o Facebook e escreveu nas coxas. O que quer dizer essa frase? Que a gestão Dilma justifica o empresariado apoiar o Golpe? Isso no mesmo dia em que Rudá Guedes Ricci compartilha artigo sobre o patrimonialismo atávico do setor produtivo privado brasileiro (na foto do artigo: Paulo Skaf)? Difícil, professor!... mas, sigamos.

O uspiano Janine repisa a tese do encantamento perdido do PT e, com isso, despreza duas pesquisas da maior seriedade: a que o professor Marcos Nobre desenvolve sobre o peemedebismo (e suas imposições) e a do professor André Singer sobre o lulismo (e suas limitações). Ao, em seguida, menosprezar a força do ataque da Direita na construção de nossa atual ruína deixa de lado o debate que se iniciou ainda em 2010 sobre o crescimento da onda conservadora liderada pelos setores partidários das igrejas neopentecostais. A perda da hegemonia da esquerda é reflexo de um conjunto de fatores muito mais complexo do que a "gritaria" que elegeu o PT como o "único partido corrupto do país". Reduzir, aliás, a esquerda ao PT é outro cacoete comum ao senso comum do Facebook.

O erro mais crasso do post, no entanto, é aquele que forma o núcleo da argumentação. A saber, a esquerda, com atraso, reage. Ontem, Dia Nacional de Luta contra o Golpe, foi, segundo Janine, o discreto turning point da resistência, o ponto do percurso que indica que "começa a ser possível desfazer o impeachment". Bobagem. A foto que ilustra este meu comentário não deixa dúvida: o ato de ontem na Paulista foi dos mais esvaziados dos últimos tempos. Repare: a multidão se desfaz antes da primeira transversal. O 17 de março, não muito grande também, levou quase o dobro de gente. É com esses relativos êxitos e fracassos que a resistência vem sendo formulada e não de qualquer outra maneira. A temperatura da manifestação ontem na avenida, segundo os relatos, estava inversamente proporcional aos termômetros da capital. Lula botou fogo. Mas na velha militância. Onde isso se diferencia do que vem acontecendo desde o final de 2015, momento das primeiras grandes concentrações vermelhas? Ou dos primeiros escrachos do Levante Popular da Juventude? O crescimento tem sido constante, contínuo. É tática conhecida: pressão ininterrupta. Qualquer manual de guerrilha ensina isso. Tem alguém reagindo com atraso nessa história. É o professor Renato Janine Ribeiro.

"Nos seus olhos também posso ver as vitrines te vendo passar" diz a letra de Chico Buarque. A tradução poética da vaidade, do autocentramento. O jogo de espelhos do Facebook, quando trata de política, sempre tende ao voluntarismo, ao "desejo de potência". Ao pensamento mágico. Autocentramento não dá em potência. Dá em onipotência, que por sua vez, gera sintomas de depressão. Janine tem contribuído para a perenidade do mito da "vontade política". A grande falácia das esquerdas que, 50 anos depois do Golpe de 64, talvez, estejamos vendo ser, finalmente, posta diante da prova de realidade, pelas mãos da mãe-boa-o-suficiente Dilma Rousseff.

Quem "faz" a história, caro professor, são os narradores. Nós, quando muito, padecemos a história. Por isso, narrar é coisa pra ser levada muito a sério. Não pode ser tratado como quem escreve pros amigos do Facebook antes de dormir.

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