Tuesday, January 14, 2025

Salvar o Fogo

Se seu rosto foi se apagando como uma pintura malconservada ou como as abstrações que nos escapam dos sonhos, o mesmo não ocorreu com o restante de sua figura. As vestes escuras, pesadas e com cheiro de naftalina, que pareciam quentes, continuaram a surgir vivas em meus pensamentos, assim como as gotas de suor a sobressair num rosto para sempre enevoado. Seu andar lento e os movimentos sincronizados ao seu discurso também permaneceram plenos no que me restou de recordação. Da mesma forma, os sermões ora ponderados ora inflamados, os questionamentos ásperos que nos dirigia sem esperar por respostas, pareciam na mesma medida suaves e revoltos ao encontrarem nossos ouvidos. Foi dessa maneira que quis saber se gostava da ideia de estudar. Respondi que sim. Quis saber também se ajudava a Luzia em casa e, sobretudo, se temia a Deus. Luzia fez questão de recordar a dom Tomás do meu batizado por suas mãos para que não crescesse pagão. "São tantas crianças", disse, justificando a falta de memória. Sem demora, informou que minhas aulas começariam logo após o início da Quaresma. Luzia poderia retirar o uniforme uma semana antes do Carnaval. Guardei daquele encontro uma genuína felicidade. Poderia sair só de casa, teria um ambiente diferente para estar com outras crianças. Aprender a ler e a escrever era o passo firme a caminho do mundo adulto, ainda que muitos dos que vivessem ao meu redor não tivessem tido a mesma oportunidade. Quem deixava a Tapera a caminho da cidade dizia ser preciso saber ler para encontrar as ruas, usar o transporte, se virar de todo jeito. Sem contar as chances de conseguir um trabalho melhor, que não exigisse tanto esforço físico, como o de meu irmão Joaquim carregando fardos do cais para o saveiro, e do saveiro para a cidade, e com o que mais trabalhava quando já se encontrava distante da aldeia.

Salvar o Fogo © 2023 Itamar Vieira Júnior. Todavia, SP.

🎨: Aline Bispo

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