Monday, February 24, 2025

Cemitério alagoano (Trapiche da Barra)

Sobre uma duna da praia
o curral de um cemitério,
que o mar todo o dia, todos,
sopra com vento antisséptico.

Que o mar depois desinfeta
com água de mar, sanativa,
e depois, com areia seca,
ele enxuga e cauteriza.

O mar, que só preza a pedra,
que faz de coral suas árvores,
luta por curar os ossos
da doença de possuir carne,

e para curá-los da pouca
que de viver ainda lhes resta,
lavadeira de hospital,
o mar esfrega e reesfrega.

João Cabral de Mello Neto. A Educação Pela Pedra.

Tuesday, February 18, 2025

18 de fevereiro de 2016

 

Ao contrário do que está parecendo, Miriam Dutra Schmidt não veio a público falar de filhos bastardos, ou fazer futricas sobre o tempo em que foi amante de Fernando Henrique Cardoso.

Miriam deu uma longa entrevista em que o centro da questão é um caso seríssimo de assédio moral. Como de hábito, a mulher que denuncia é imediatamente desqualificada. O pessoal que trabalha nas Defensorias aponta essa tendência dominante: a culpa, sempre, "só pode ser dela". Quem se aproveitou antes, agora quer ganhar mais um pouco. Leviana, como diria o Aécio.

Pois bem, o Palmério Dória, em artigo publicado hoje, diz o seguinte sobre o estado de espírito de Miriam em 2000: 'Mirian, procurada pelo repórter João Rocha, em Barcelona, foi cortês. Pelo telefone conversaram longamente. Miriam demonstrou querer falar, mas não falou. Já era uma mulher amargurada, quando disse uma frase reveladora ao ser perguntada pela paternidade de Tomas: 'pergunte para a pessoa pública'.

Palmério fez parte da equipe que em abril de 2000 levantou o caso do filho extraconjugal de FHC para a Revista Caros Amigos. Diz o Palmério: "O então presidente da República foi procurado e não quis se pronunciar. Os editores dos principais jornais, revistas e telejornais deram suas versões, todas publicadas. Mário Sérgio Conti, chefão da Veja, atendeu meu telefonema com frieza que foi substituída por um ataque de ira e impropérios publicados na íntegra".

Em outro artigo, de 2011, Palmério manda essa: "a operação cala-a-boca-da-Miriam foi organizada por uma força-tarefa: Alberico de Souza Cruz; o então deputado federal José Serra; e Sérgio Motta, que tinha coordenado a campanha de Fernando Henrique para o Senado, seu amigo mais íntimo".

Motivos para tirar a limpo o que essa mulher está dizendo não faltam. Mas há uma forte corrente de opinião que aponta para o perigo de, com isso, praticar apenas fofoca. Miriam, suposta vítima de brutal assédio, fica relegada a segundo plano. Aliás, o lugar que ocupou nos últimos 24 anos.

Se Miriam foi conivente, foi conivente como um antílope é conivente com o leão que o caça. Sem dúvida, ambos fazem parte da mesma cadeia alimentar. Mas um é predado, enquanto o outro tem os atributos para ser o predador.

Reduzir esse grande conluio entre poderosos ao direito de se discutir ou não o uso que FHC dá para o próprio bilau, convenhamos, parece um respeito meio totêmico pelo bilau dele. Freud explica.

https://issuu.com/brazilcomz/docs/web_1_

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/02/1740563-fhc-usou-empresa-para-me-bancar-no-exterior-afirma-ex-namorada.shtml

Saturday, February 15, 2025

Líderes do conformismo nacional

Com o falecimento de Cacá Diegues, ontem, começou a circular esta imagem, acredito, do final da década de 1970.

A mim me chamam a atenção o lugar de destaque de Glauber Rocha e a íntima camaradagem entre os retratados.

Em tempos de rede social — quando o próprio tempo parece ter sido abolido — a foto leva a gente a enxergar um quarteto harmônico que a devida contextualização histórica desmente.

Lembrei do artigo de Francisco Alambert — 'A Realidade Tropical' — publicado em 2012 na Revista IEB n. 54, em que o professor transcreve trechos da entrevista concedida por Glauber a Elio Gaspari, Heloisa Buarque de Hollanda e Zuenir Ventura para o livro '70/80: Cultura em Trânsito'.

Os entrevistadores fizeram apenas uma pergunta ao cineasta:

— O que você tem a dizer sobre a questão das Patrulhas Ideológicas que vêm invadindo a imprensa e as paixões nesse último mês?

Estávamos em março de 1980 e, em resposta, Glauber disparou uma vez mais sua famosa metralhadora giratória.

Um outro tipo de retrato de época emerge da diatribe glauberiana, ele, antes e mais que qualquer um, persona polêmica de fio a pavio.

Vejamos.

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[o Cebrap]  "é cofinanciado ou patrocinado pela Fundação Rockfeller ou pela Fundação Ford (…), tem inclusive ligação com o liberalismo americano (…). Os liberais democratas do Brasil são apenas capitalistas progressistas ligados a multinacionais, que lutam contra o arcaísmo da economia política brasileira, que é a dominante".

(...) "o grupo capitalista do cinema brasileiro hoje, que é formado por Luiz Carlos Barreto, Bruno Barreto, Arnaldo Jabor, Walter Clark e Carlos Diegues, é oriundo do Cinema Novo".

(...) "os intelectuais e artistas comunistas, ligados ao PC, foram para a Rede Globo".

(...) "acho que o debate aqui tinha de ser colocado em outro nível: o da busca da identidade nacional pela compreensão dos processos econômicos e culturais da colonização. (...) E esse salto é importante, tem que se superar essa feijoada ideológica, multi-ideológica, com uma visão clara do problema".

(...) "aqui você tem que adorar Deus, MDB, Flamengo, e ser fã de Maria Bethânia. A MPB, vanguarda crítica dos anos 1960, passou a liderar (ao lado do futebol e da política de centro) o conformismo nacional, uma vez liquidado seu aspecto revolucionário".

(...) "intelectual aqui é um palhaço da burguesia, são as mesmas figuras da revista Interview, das colunas sociais de O Globo (...). Show da Gal Costa, espetáculo de Ney Matogrosso, teatro de Dias Gomes é tudo uma porcaria só".

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As fontes:

https://revistas.usp.br/rieb/article/view/49116

https://www.estantevirtual.com.br/livro/7080-cultura-em-transito-da-repressao-a-abertura-1YK-1970-000