Wednesday, August 24, 2011

A última alça de luz escorregou do ombro do querubim. A penumbra engoliu o jardim. Inteiro. Como uma píton. Luzes se acenderam na casa.

Rahel podia ver Estha em seu quarto, sentado em sua cama arrumada. Estava olhando para o escuro fora da janela gradeada. Ele não podia vê-la, sentada ali fora, no escuro, olhando a noite.

Dois atores aprisionados numa peça recôndita, sem nenhum indício de trama ou narrativa. Tropeçando em seus papéis, cuidando da tristeza de outro. Sofrendo o sofrimento de outro.

De alguma forma incapazes de mudar seus papéis. Ou comprar, por algum preço, alguma forma barata de exorcismo, de algum conselheiro diplomado que sentaria os dois e diria, em uma de muitas formas: "Vocês não são os Pecadores. Vocês são as Vítimas do Pecado. Eram apenas crianças. Não tinham controle da situação. São as vítimas, não os perpetradores".

Teria ajudado muito se eles tivessem conseguido fazer essa passagem. Se pudessem ter usado, mesmo que temporariamente, o trágico capuz de vítimas. Então eles teriam sido capazes de dar uma cara a tudo aquilo, e conjurar fúria pelo que aconteceu. Ou procurar compensação. E até, talvez, acabar exorcizando as lembranças que os assolavam.

Mas não havia raiva disponível para eles e não havia nenhum rosto para colocar nessa Outra Coisa que eles seguravam com Outras Mãos pegajosas, como uma laranja imaginária. Não havia onde pousá-la. Não era deles para que pudessem dar. Ia ter de ser carregada. Com cuidado e para sempre.

Arundhati Roy - O deus das pequenas coisas

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