Saturday, September 28, 2013

O capitalismo é moral? II


Todos nós nos vemos confrontados com essas quatro ordens comuns (deixando a eventual quinta ordem à fé ou à não-fé de uns e outros), que resumo: a ordem tecnocientífica (ou econômico-tecnocientífica), estruturada internamente pela oposição entre o possível e o impossível, mas incapaz de se limitar por si mesma, limitada portanto do exterior por uma segunda ordem, a ordem jurídico-política, a qual é estruturada internamente pela oposição entre o legal e o ilegal, mas tão incapaz quanto a precedente de se limitar por si mesma; limitada portanto, por sua vez, do exterior por uma terceira ordem, a ordem da moral (o dever, o proibido), a qual é completada, "aberta por cima" para uma quarta ordem, a ordem ética, a ordem do amor.

O problema dos limites e da distinção das ordens

Por que o problema dos limites? Porque, quando se renuncia ao "tudo é permitido" do tolo, da geração 68 ou do canalha, coloca-se a questão de saber o que não é permitido. Ora, perguntar o que não é permitido é colocar o problema dos limites.

A ORDEM MORAL

[...] O que é a moral? Para abreviar, responderei com Kant: a moral é o conjunto dos nossos deveres - o conjunto, para dizer com outras palavras, das obrigações ou das proibições que impomos a nós mesmos, não necessariamente a priori (ao contrário do que queria Kant), mas independentemente de qualquer recompensa ou sanção esperada, e até de qualquer esperança. É o conjunto do que vale ou se impõe incondicionalmente, para uma consciência.

Essa moral, quanto à sua origem, é histórica, cultural, logo também relativa: ela é o conjunto das normas que a humanidade criou (de maneira ao mesmo tempo diferente e convergente em todas as civilizações do globo) para resistir à selvageria de que se originou e à barbárie que, de dentro, não pára de ameaçá-la. Mas nem por isso ela deixa de funcionar, subjetivamente, como um absoluto: moralmente, há o que devo fazer (o dever) e o que não devo fazer (o proibido, que nunca é mais que um dever negativo). É por isso que a moral não é tudo (muitas ações, felizmente, não dependem del: elas não são nem moralmente proibidas, nem moralmente exigíveis). É por isso que ela tampouco é nada. 

Coloca-se no entanto a questão de saber se é preciso limitar por sua vez essa terceira ordem, e com o quê.

Limitá-la, parece-me, não é a palavra que convém. Das duas primeiras ordens, devemos temer o pior. Da moral, se ela for bem compreendida, não. Vê-se perfeitamente o que poderia ser um canalha legalista, na ordem nº. 2, um canalha competente e eficiente, na ordem nº. 1... Tenho certa dificuldade para ver o que seria um canalha moral, na ordem nº. 3. Talvez vocês imaginem que há muitos canalhas moralizadores... Concedo-lhes integralmente esse ponto. Mas, precisamente, é essencial à moral que não seja a mesma coisa ser moral  e ser moralizador. A diferença é tão simples que, às vezes, nem dá para perceber. A diferença é a seguinte: ser moral é cuidar do seu dever; ser moralizador é cuidar do dever dos outros - o que é muito mais fácil, admito, muito mais agradável, mas completamente diferente. Alain dizia: "A moral nunca é para o vizinho". Ele tinha razão. Dizer ao vizinho "Você deve ser generoso" não é dar prova de generosidade. Dizer ao vizinho "Você deve ser corajoso não é dar prova de coragem. Ora, ser moralizador é exatamente cuidar da moral do vizinho. Não é moral, portanto. É o que distingue a "ordem moral", no sentido de Mac-Mahon ou dos puritanos, do que chamo de ordem moral. Quando a "ordem da moral" ameaça, o que pode acontecer, é que ela deixou de ser moral para se tornar moralizadora.

Se vocês me concederem essa distinção, hão de me conceder, creio, que dá para perceber perfeitamente o que pode ser um canalha moralizador, mas muito mal o que seria um canalha moral; e que, nesse sentido, essa ordem da moral não precisa ser limitada, em todo caso não no mesmo sentido que as duas precedentes, no sentido que se poderia esperar o pior dela.

Em compensação, se ela não precisa ser limitada (como se fosse possível ser moral demais), ela necessita ser completada - porque em si mesma a moral é insuficiente. Imaginem um indivíduo que cumpriria sempre com o seu dever, mas que  faria o seu dever. Não seria um canalha, é claro, mas não seria ele o que em nossa cultura, com ou sem razão historicamente, chamamos de um fariseu? Um fariseu, isto é, aquele que sempre respeita a letra da lei moral, mas costuma-se considerar que lhe falta sempre alguma coisa, que lhe falta uma dimensão, como se diz, ou mesmo que talvez lhe falte o essencial. O que falta ao fariseu? Dois mil anos de civilização cristã, talvez até três mil anos de civilização judaico-cristã, nos respondem com uma clareza e uma insistência notáveis o que falta ao fariseu: é, evidentemente, o amor. É por isso que creio ser importante marcar pelo menos o lugar - nem que ele devesse ficar em boa parte vazio - de uma quarta ordem, que proponho (apoiando-me numa distinção terminológica que a língua sugere) chamar de ordem ética: a ordem do amor.

André Comte-Sponville - O Capitalismo é Moral?

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